Crónica da Invasão da Ucrânia
. Resiliência recompensada
Mendo Henriques
23 de Abril de 2024
Mais de dois anos se passaram desde que Putin ordenou a invasão da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022. Lançado na agressão externa e no regresso à história imperial, e mal informado pelos seus generais e serviços de informações, pensava “conquistar Kyiv em três dias” e estabelecer ali um governo colaboracionista; na realidade, foi derrotado em um mês. A trilha de 60 km de veículos militares que se dirigiam à capital, destruídos ou obrigados a recuar, tornou-se um símbolo da arrogância e ineficiência russas, tal como os massacres de Bucha e Mariupol.
A resistência ucraniana, auxiliada pelos aliados ocidentais, foi heróica e patriótica. Putin teve de reduzir os objetivos de guerra, concentrando-se, no final de Março, no Donbass e regiões do sul.
Após derrotarem a Blitzkrieg russa, os ucranianos libertaram gradualmente uma parte dos territórios ocupados. O seu exército lançou duas grandes contra-ofensivas, ambas bem-sucedidas, entre setembro e novembro de 2022: a primeira na região de Kherson, a segunda ao sul de Kharkiv.
As vitórias obrigaram o exército russo a recuar com perdas maciças, e levaram à expectativa de que prosseguiria o avanço ucraniano e a libertação dos territórios ocupados. Pensava-se que este objetivo seria alcançado com armas novas e mais poderosas fornecidas pelo Ocidente.
Os russos trabalharam para estabilizar a frente. Criaram séries de linhas de defesa, cavando trincheiras, colocando barreiras, usando “dentes de dragão” para bloquear os avanços ucranianos em 2023. Também conseguiram, à custa de subsídios maciços e com mobilização de 300 mil homens, recrutados sobretudo nas regiões ultraperiféricas, formar novas unidades e reforçar outras que até abril de 2024, segundo especialistas, sofreram cerca de 500.000 homens (meio milhão) mortos e feridos. As baixas ucranianas são estimadas em 120.000.
Contudo, a estratégia segue sempre objetivos políticos. E a geopolítica ocidental tem oscilado entre duas linhas vermelhas; por um lado sustentar a soberania integral da Ucrânia; por outro lado, não desmantelar a federação russa, devido ao risco das armas nucleares. A relutância dos aliados em fornecer à Ucrânia armas poderosas e de longo alcance – nem sequer as mais modernas – deveu-se a esta moldura estratégica, muito cautelosamente trabalhada.
A Ucrânia teve de adaptar a estratégia à medida que chegavam as armas. Primeiro vieram os sistemas de mísseis; depois, algumas dezenas de tanques pesados. Os caça-bombardeios F-16 ainda não chegaram. Ao longo de 2023 as forças ucranianas lançaram ataques atrás das linhas inimigas usando mísseis de médio alcance como HIMARS; destruíram parte da frota russa do Mar Negro, muito castigada em Sebastopol; fizeram operações de forças especiais e com drones no interior profundo da Rússia, até mais de 1000 km da fronteira, atacando bases aéreas e casernas; na guerra económica, conseguiram destruir parte das refinarias russas e manter a exportação de cereais e outros produtos.
A confiança dos ucranianos em libertar o país foi estimulada pelo apoio consistente dos europeus e a maioria dos norte americanos e outros países ocidentalizados como o Japão e Coreia. Contudo, foi subestimada a determinação da ditadura do Kremlin que encara a guerra que provocou como um reforço da ditadura. Como escreveu Vladimir Kara-Murza, a agressão externa é a outra face da repressão interna. Após o pronunciamento falhado de Prygozhin de junho de 2023, Putin reforçou a autarcia económica e eliminou adversários, fazendo-se reeleger em março de 2024 para novo mandato.
Do lado ucraniano, a “contra-ofensiva da Primavera de 2023”, não foi eficaz. Os aliados não forneceram meios de cobertura aérea nem equipamentos suficientes. No Outono, o ímpeto dos ucranianos estagnou, deixando aos russos a iniciativa, bem como a superioridade em munições e números.
A ofensiva russa também não foi eficaz. Os ataques persistentes à cidade de Bakhmut, o “moinho de carne”, valeu-lhes mais uma vitória pírrica, deslocando a frente alguns quilómetros. Em meados de Fevereiro de 2024, após dois anos de intensos combates e a perda de 50 a 70.000 militares, os russos conquistaram a cidade de Avdiivka, e mais uns escassos quilómetros de frente.
Na sequência da retirada ucraniana, o Presidente Zelensky deu uma chicotada psicológica nos mandos militares. Procedeu à destituição do popular e vitorioso General Zaluzhny que se queixara abertamente da real falta de condições para a ofensiva. O novo comandante-em-chefe, General Syrsky, o vencedor de Kyiv em 2022, confirmou a sua reputação de oficial determinado. Mais que mudança de estratégia, houve um novo tempo da sua execução, ditado pelas limitações de munições e outras armas e apoios; a partir de Novembro e durante seis meses, os republicanos pró-Trump, no Congresso norte-americano bloquearam as ajudas. Putin apostou tudo neste cessar das ajudas sem as quais as Ucrânia teria de terminar a guerra.
Valeu à Ucrânia a resiliência da população, com índices de mais de 85% de aprovação na libertação do território; a eficácia das forças armadas, que salvo exceções, têm-se batido com heroísmo; a sabedoria política da equipa do presidente Zelensky que veio para ficar. E a mudança de conjuntura.
Em Abril de 2004, a resiliência ucraniana foi recompensada com o apoio há muito merecido. Deve-o em parte à nova conjuntura mundial. O Irão passou do apoio passivo à Rússia ao ativo, nesta terceira guerra mundial aos pedaços, como diz o Papa Francisco. Em 13-14 de Abril, pela primeira vez atacou Israel como Estado em vez de recorrer a parceiros como o Hamas, Hizbollah e Houthis.
A reapreciação desta nova conjuntura mundial levou a Câmara dos EUA a finalmente aprovar, a 20 de abril, um novo pacote de ajuda à Ucrânia de cerca de 60 biliões de dólares. O apoio americano, efetuado + prometido, soma 135,6 biliões, aproximando-se do apoio europeu de 166,5 biliões.
Amanhã é outro dia!