Nos artigos anteriores introduzimos o subtema Raízes da Cultura Ocidental e elaboraremos agora alguns dos seus elementos presentes na nossa sociedade. A cultura ocidental tem as suas raízes primárias na experiência coletiva das civilizações que viveram na Mesopotâmia, e particularmente os sumérios. Mas outros elementos culturais, filosóficos e religiosos ajudaram a forjar a nossa cultura e os paradigmas mentais, éticos e comportamentais da nossa sociedade. São estes a influência das culturas, filosofias e religiões egípcia, judaica, e greco-romana, o cristianismo, e ainda o pensamento e ética germânica num estágio mais tardio. No entanto, incontornavelmente um dos elementos mais marcantes do pensamento ocidental assenta nos princípios religiosos e éticos normativos da crença e do comportamento humano e social emanado da Bíblia, o livro sagrado dos judeus e dos cristãos.
No pensamento ocidental prevalecem as ideias fundamentais dos povos da Mesopotâmia sobre a cosmologia, a criação e a divindade. Depois do pré cerâmicos hussana e dos ubaidianos os sumérios desenvolveram tecnologias e organização social avançadas que influenciaram todas as civilizações antigas. Nos escritos que nos deixaram – Enuma Elish e The Gilgamesh Epic – revelam claramente o que acreditavam sobre a realidade do universo criado por Deus (ou deuses), e da realidade última depois da finitude da vida terrena com a evidente certeza do sofrimento e da morte. E responderam a essas questões essenciais dos seres humanos com a sua filosofia e os seus conceitos religiosos, cujas respostas acabaram por providenciar a essência da substância de todas as civilizações de todas as épocas, de acordo com J. William Angell. Questões como a sobrevivência, a origem de todas as coisas e da vida, a existência e a importância da moralidade e da virtude pessoal e social, e o conhecimento do que é certo e o controlo e erradicação do que está errado. E as gentes contemporâneas e conterrâneas de Abraão desenvolveram verdadeiros conceitos filosóficos políticos, tentando compreender e estabelecer o que era bom para o indivíduo e simultaneamente para todo o tecido social coletivo.
A história da chamada misteriosa por Deus a Abraão para se deslocar para ocidente – eventualmente para se reunir com o estranhíssimo sacerdote-profeta-rei Melquisedeque – ordem divina a que Abraão obedeceu sem questionar, bem como a história da destruição de Sodoma e Gomorra devido à prática desenfreada da homossexualidade, moldaram definitivamente a moralidade das gerações posteriores da civilização ocidental. O ato de Abraão oferecer Isaque em sacrifício e a provisão divina do carneiro para substituí-lo transformou definitivamente o antigo conceito do sacrifício, providenciando um conceito melhor como alternativa relativamente ao terrível sacrifício de seres humanos. O conceito da verdade e da força da fé tiveram também a sua revitalização então, e o relacionamento de todos os eventos particulares e sociais eram entendidos como interligados com a vontade e a ação soberana da divindade. E estas conceções mentais marcaram definitivamente o pensamento ocidental.
O eixo pivô civilizacional começou o seu percurso e tem estado sempre a seguir o seu curso histórico no sentido ocidental, estabelecendo-se durante algum tempo no Egito. Mas o fato é que o pensamento hebraico teve muito mais impacto na cultura ocidental devido ao seu caráter moral independentemente e firmemente superior. E o próprio Egito foi impactado pela cultura judaica. No entanto, a civilização do Nilo também contribuiu para o desenvolvimento da cultura ocidental evidentemente com a sua metodologia estatal administrativa, o desenvolvimento arquitetónico e técnico, a agricultura, as pescas e o comércio internacional através do Nilo e do Mediterrâneo. E através da sua escrita contribuiu definitivamente com a linguagem da comunicação visual ainda hoje usada na nossa civilização pela média ligada à publicidade.
O monoteísmo hebraico enraizado no pensamento religioso e filosófico de Abraão na Suméria e de Melquisedeque no Reino de Jerusalém a ocidente estabeleceu-se na cultura ocidental, e iniciou a abolição do paganismo primitivamente praticado, ultrapassando-o, subalternizando-o, e diabolizando-o. A Festa Pascal ilustrou os perigos da idolatria, do pensamento religioso pessoal liberal, da injustiça social, e da imoralidade. O conceito da omnipresença divina estabeleceu as sementes do conceito da “universalidade transcendente” e a religião bíblica dos hebreus imprimiu a realidade suprema ulterior com a sua metafísica como base e traço característico do ideário da cultura ocidental. Este ideário sempre foi entendido relativamente à história e a toda a humanidade, concebido no pressuposto misterioso da natureza e do propósito eternos de Deus. Constituiu-se assim a compreensão geral de que Deus revelou os Seus atos e planos misteriosos à humanidade no tempo e no espaço, cujo entendimento do último significado e valor só podem ser alcançados pelos olhos interiores da fé. E mesmo quando Israel foi levado cativo para a Babilónia os Profetas bíblicos atualizaram a compreensão e a aplicação das verdades teológicas antigas para serem relevantes, interpretando-as como apocalípticas para os seus dias, apesar das circunstâncias adversas a que estavam sujeitos no exílio. Desta forma o pensamento teológico, moral e filosófico do povo hebreu transformou-se para judaico e misturou-se no caldeirão de fusão cultural que era a Babilónia, o centro nevrálgico cultural, económico e de desenvolvimento social e político do mundo de então.
Cerca do sétimo século anterior ao advento do cristianismo a religião de Moisés foi assim atualizada e substituída pela invenção do judaísmo com as suas sinagogas. No desespero político e nacional a que estavam sujeitos, os seguidores de Moisés não tinham agora mais altar de sacrifícios, nem templo, nem sacerdotes credíveis, nem independência nacional e política. Nos campos de concentração junto ao Rio Quebar havia a séria dúvida se o deus dos babilónios não seria mais forte do que o Deus de Israel, porque afinal os seus seguidores os tinham derrotado e forçado ao cativeiro para longe do seu espaço territorial sagrado. Assim o problema israelita não era apenas de perca da independência mas acima de tudo uma crise de identidade nacional, espiritual e de ética filosófica. Surgiram então Profetas como Jeremias, Amós, Ezequiel (chamado o pai do judaísmo), e Isaías com a sua interpretação fresca do pensamento divino, e nasceu o judaísmo com as suas características: A continuação da reverência a Deus apesar de estarem longe do que lhes era sagrado; a reverência pelas Escrituras Sagradas (Os livros do Velho Testamento); a mensagem apocalíptica e profética clara; a redefinição dos conceitos teológicos sobre a natureza e propósito divinos devido à exposição e trauma cultural a que agora estavam sujeitos naquele caldeirão cultural estonteante; e a clarificação do destino profético comum do povo israelita numa visão global. Respondia-se assim ao dilema: “Onde está Jeová nestes terríveis campos de escravidão e de concentração?” Está com o Seu povo e tem um plano específico e uma razão séria para o sofrimento atual e que é impactar a sociedade à escala global com a Sua mensagem, a Sua verdade e os Seus princípios morais.
Os Profetas de então tomaram a sério a responsabilidade de preservar as verdades e os valores que tinham recebido dos seus antepassados. Fizeram-no com criatividade extraordinária, interpretando os conceitos e atualizando-os. Para eles, a vontade divina não era afinal que Israel vivesse fechado sobre si mesmo no exíguo território palestino, experimentando a sua fé longe dos ímpios e dos gentios, independentemente e sem complicações culturais. Pelo contrário, a atitude dos Profetas foi revolucionária, afirmando que era o genuíno desígnio divino que a Sua mensagem – pregada e ensinada nas sinagogas e ilustrada pela vida prática diária do Seu povo – influenciasse o mundo, e se estabelecesse como fermento transformador positivo no centro civilizacional por excelência que era a cidade e o país da Babilónia. Não tinham o altar dos sacrifícios, os sacerdotes eram percebidos como corruptos, e também não tinham o templo que agora estava destruído e abandonado lá longe na Terra Santa. Mas tinham a sua fé no Deus único e verdadeiro, tinham uma interpretação fresca e atualizada das profecias, tinham as Escrituras Sagradas, e tinham os Profetas – apesar de serem às vezes socialmente sem classe ou desprovidos de direitos sacerdotais genealógicos – bravamente, corajosamente, intelectualmente acutilantes e moralmente incontornáveis para os liderar nos tempos apocalípticos que experimentavam. Afinal o Messias estava quase a chegar. Por isso estavam na capital do mundo, no centro mais cosmopolita de então. Para servirem os propósitos divinos de infiltrar e influenciar decididamente o cerne cultural e comportamental da civilização mundial. E esse destino foi cumprido e os judeus passaram a estar presentes em todas as transições civilizacionais, de capital para capital, até aos nossos dias. São por isso esses Profetas obrigatoriamente estudados pela filosofia, para se compreenderem bem as raízes subjacentes contribuídas por eles para o nosso paradigma de pensamento cultural e comportamental com vontade de desenvolvimento.
Nestes tempos de crise de identidade Portugal precisa de “Profetas” nacionais com olhos que veem, boca que apregoa, e coração corajoso que lidere corretamente.
(Continua no próximo artigo)
Por Fernando Silva