Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância (I) a (LXXVIII) – (*) Mendo Henriques, Professor da Universidade Católica-

Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância – LXXVIII

14 de novembro

. Sonhos sem sentido?

A Ucrânia consolida a recente vitória de Kherson mas qual o passo seguinte?

Se olharmos pelo retrovisor, podemos procurar as raízes profundas de um século de história que trouxeram a Rússia de Putin até ao impasse presente.

Para o efeito, nada melhor que as duas primeiras páginas do livro Reforma e revolução, 2011 de Vladimir Karamurza – (ver Crónica XXII de 13 de abril, O Outro Vladimir).

Vladimir Karamurza

Nela, o político e historiador , duas veze envenenado por ordem do Kremlin e na prisão desde 24 de abril, mostra em que mostra como o mais improvável também acontece na história.

 

A força dos revolucionários não está nas ideias dos seus dirigentes, mas em uma pequena dose de exigências moderadas que não são satisfeitas em tempo oportuno.

Otto von Bismarck

Sei que que em algumas reuniões do Zemstvo, se levantam as vozes de pessoas que gostam de sonhos sem sentido sobre a participação de representantes zemstvos em matéria de administração interna. Quero que todos saibam que… manterei o princípio da autocracia com a mesma firmeza com que a manteve o meu inesquecível falecido pai

Foi com estas palavras, proferidas em janeiro de 1895, que o imperador Nicolau II começou o seu reinado. A Rússia era a única das potências europeias a entrar no século 20 sem uma instituição parlamentar nacional. As intenções dos monarcas anteriores, que pensavam em introduzir os princípios da representação popular, tiveram por destino ficar no papel.

Em 1809, em nome de Alexandre I, o Secretário de Estado M.M. Speransky preparou um plano para convocar um corpo legislativo eleito – a Duma estatal – mas o plano não foi implementado, e o autor caiu em desgraça. A segunda tentativa de Alexandre foi a promessa feita na abertura do Sejm [assembleia] polaco em 1818, para conceder uma instituição legislativa semelhante no resto da Rússia: o projeto de “carta estatutária do Estado”, que previa a criação de uma câmara estatal bicameral [Seimas) foi desenvolvido por N.N. Novosiltsev, mas rejeitado após a [fracassada] revolta dezembrista de 1825.

A ideia de representação popular regressou com Alexandre II – o czar-libertador; durante os anos do seu reinado na Rússia, entre outras coisas, a servidão foi abolida, e foram introduzidas o zemstvo e a autonomia municipal, a publicidade dos processos judiciais e os julgamentos com júri, a autonomia das universidades e algo diminuída a censura à imprensa.

No início de 1881, o Ministro do Interior M. T. Loris-Melikov apresentou um relatório ao imperador que previa a introdução de funcionários eleitos de Zemstvos e cidades em duas comissões estatais para a preparação de novas transformações. “Mas isto são Estados Gerais!” – exclamou Alexandre, ao ver o documento, e aprovou-o . A discussão do projeto pelo governo foi agendada para 4 de março*. No 1º de março de 1881, o imperador Alexandre II foi assassinado em São Petersburgo, no Canal Ekaterininsky por uma bomba lançada por I. Grinevitsky, do grupo revolucionário Vontade do Povo. No entanto, o período de “contra-reformas” de Alexandre III foi uma trégua temporária: as transformações do czar-libertador tiveram tempo para criar raízes na sociedade.

O Zemstvo e as instituições criadas por Alexandre II com o “terceiro elemento” que se lhes associou – professores, médicos, agrónomos, funcionários – formaram uma base social de apoio às reformas. Até então considerada uma corrente restrita de intelectuais citadinos, o liberalismo transformou-se em movimento social. A partir dos anos 70 do século XIX houve instituições municipais – Tver, Novgorod, Samara, Tauride – que redigiram petições ao imperador para convocar uma representação popular nacional.

Foi essa a principal exigência do congresso de líderes zemstvo, que se reuniu em São Petersburgo em novembro de 1904. A incapacidade da autocracia para lidar com os desafios socioeconômicos manifestaram-se de modo óbvio, quando no início do século 20 o país foi sobrecarregado com uma onda de protestos que se intensificou ainda mais com o massacre de uma manifestação pacífica em São Petersburgo, a 9 de janeiro 1905, e com a derrota na guerra com o Japão.

A agitação camponesa, manifestações laborais, e as greves estudantis foram acompanhadas por exigências de liberdades civis por parte de sindicatos recém-formados da intelligentsia que queriam uma constituição.

Publicado em 6 de agosto de 1905, o manifesto czarista sobre a convocação de uma Duma Legislativa. A Duma de Bulygin (assim chamada devido ao nome do autor do projeto, o Ministro do Interior A.G. Bulygin) satisfazia amplamente as exigências públicas.

No outono de 1905, o movimento de protesto atingiu o clímax: Greves em toda a Rússia, muitas fábricas, centrais de energia, instituições de ensino paradas, comunicações ferroviárias interrompidas. “Não há escolha”, escreveu o presidente do Conselho de Ministros – Sérgio Witte – em memorando de 9 de outubro, entre o czar se tornar a cabeça do movimento que tomou conta do país, ou ser dilacerado pelas forças profundas. Ironicamente, foi Nicolau II quem teve de realizar os “sonhos sem sentido” dos liberais. Em 17 de outubro de 1905, o imperador assinou o manifesto que conferia ao povo “os invioláveis fundamentos das liberdades civis” e estabelecia “como regra inviolável que nenhuma lei poderia entrar em vigor sem a aprovação da Duma do Estado.

Afinal, o sonho sem sentido aconteceu.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância – LXXVII

10 de novembro

. Não é só Kherson que cai

A 18 de Outubro (ver Crónica LXXII) o general Surovikin, recém-nomeado comandante das tropas invasoras, declarava que “a situação é tensa” e não descartava “as decisões mais difíceis” em relação à região de Kherson. Durante três semanas, foram-se sucedendo os avisos e os factos: a evacuação de quartéis-generais e depósitos de armas russos, populações e colaboracionistas, obras de arte e bens materiais, tudo o que parece valioso. Até um comboio infantil apareceu a ser rebocado em direção à Crimeia.

Entre verdades e mentiras, a cidade foi desertificada, e o vice-presidente da região invadida, o esquisito Kirill Stremousov, porta-voz da resistência e do tudo “segue conforme o plano” apareceu morto num acidente a 8 de novembro.

 

…aparato da fuga

Ontem, 9 de novembro com a coreografia pesada que a Stavka utiliza para dissimular o pânico, o Kremlin fez questão que todo o mundo escutasse o general Surovikin a comunicar em direto ao ministro Shoigu que era preciso evacuar Kherson. O público russo já estava preparado; exceto alguns z-patriotas vidrados, os canais telegram e as televisões dos propagandistas registaram os factos. Mesmo Prigozhine e Khadirov, do “partido da guerra” e críticos da retirada de Lyman, vieram elogiar a retirada de Kherson. Que remédio!

Desde Lisichansk, a 2 de julho, há mais de quatro meses que o Kremlin não consegue capturar uma única cidade. Desde finais de agosto, a Ucrânia está em modo de contra -ofensiva, colocando a Rússia perante os dois cornos do animal. Ataques persistentes na frente de Kherson; ofensiva rápida na frente de Kharkiv; e agora, de novo, ofensiva acelerada em Kherson.

Muitos comentadores perdem tempo a interrogar-se se a retirada será verdade ou armadilha. Esquecem o princípio básico da dissimulação e do espião triplo “eu sei que tu sabes que eu sei…”.

A preparação da opinião pública através da duplicidade faz parte da estratégia militar de informação e contra informação que o lado russo sabe praticar: mas o lado ucraniano é superior, ou não estivesse à sua frente um génio militar como é o major-general Kyrylo Budanov, de 36 anos, diretor dos Serviços de Informação do Ministério da Defesa da Ucrânia.

Foi o seu comandante em chefe, general Valerii Zaluzhnyi cuja estratégia de 2022 será estudada em todos os futuros cursos de estado-maior, quem veio comunicar que, desde o 1º de outubro, as tropas ucranianas avançaram 36,5 km em profundidade na frente de Kherson, recuperando mais de 1.300 km2 e dezenas de povoações. O avanço foi possível porque os depósitos e as rotas logísticas e de abastecimento russos foram e continuam a ser sistematicamente destruídas pelos sistemas de artilharia de alta precisão fornecidos pela aliança ocidental; e o sistema de controle e comando dos invasores está comprometido por bombardeamentos e interferência eletrónica.

Desde que a ponte Antonovsky foi destruída, Kherson tornou-se um caldeirão de onde o Kremlin não tinha outra escolha senão fugir. Mas ao escolher o momento, trouxe reforços para ganhar tempo, minar estradas e edifícios, destruir pontes, e travar combates de retaguarda.

  • Pontes destruídas na retirada russa, na região de Kehrson

Neste 9º mês de guerra, o exército russo já aprendeu a recuar e reposicionar unidades. E não é difícil ver os contornos da retirada para a margem direita do rio Dnieper onde estão a construir uma espécie de linha Maginot em formato pequeno.

1) A retirada não exclui a manutenção de linhas de defesa, com a missão de infligir perdas máximas às forças armadas ucranianas e sair com perdas mínimas.

2) O estado maior russo contempla travar uma batalha urbana em Kherson, conforme as circunstâncias de abastecimento e moral;

3) O estado maior russo luta para ganhar tempo para o apelo desesperado de negociações por parte de Putin.

A perda da capital da região de Kherson será mais um passo no colapso estratégico, moral e político da Federação Russa.

Depois disso, ninguém acreditará que a guerra pode ser ganha e os pedidos frenéticos de negociações são uma confirmação quotidiana do erro fatal de Putin.

A invasão, pese embora o horror que continua, foi um fracasso. A mobilização está a apressar o fim do regime. E na raiz desta série de erros de cálculo está o grande erro de o Kremlin tentar recriar a URSS usando os métodos da URSS.

Após a guerra terminar, virão à superfície os avisos repetidos dos ucranianos a Vladimir Vladimirovich e seus cúmplices para que não se intrometessem na Ucrânia.

Amanhã é outro dia!

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância – LXXVI

7 de Novembro

 

. E agora, o Irão (1ª parte)

 

No pânico generalizado que o assaltou desde a derrota de Kharkiv em Setembro, um dos recursos do o Kremlin foi estreitar os laços com o Irão, de forma a obter armas para o campo de batalha. Em Outubro, os drones iranianos começaram a cair sobre as cidades ucranianas e tudo indica que em breve chegarão mísseis pelas conhecidas vias de terra, mar e ar. Iniciada na guerra civil da Síria, a colaboração entre os dois regimes está a alargar-se, tendo como provável contrapartida um apoio russo ao programa nuclear iraniano.

restos de drone iranianoO que é este Irão que parece o único aliado fiável de Putin, juntamente com a Coreia do Norte? O que todos vemos é como o estado dos Aiatolás reprime brutalmente manifestações em todo o país que exigem o fim do regime. Em 2019 (e antes) houve uma vaga de protestos semelhantes, com mais de 300 vítimas mortais. O que é diferente desta vez?

Antes de respondermos, é indispensável saber que, por detrás do regime e da repressão, está o Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica (Sepāh-e Pāsdārān-e Enghelāb-e Eslāmi). Os Guardas (Pasdarans) são um estado dentro de um estado. Têm um braço económico e outro braço político; têm o seu exército e milícias. São o principal pilar do regime, com a força e o poder para impor a vontade do líder supremo da República Islâmica, dentro e fora do Irão.

General Qasem Soleimani

Uma face muito visível dos Pasdarans era o general Qasem Soleimani, liquidado em Bagdad, a 3 de janeiro de 2020. Era o comandante da Força Quds e responsável por centenas de operações clandestinas e muitos milhares de mortos fora do Irão. Outra face dos Pasdarans são os pobres diabos da Polícia de Costumes que torturaram a jovem Masha Amini, de 22 anos, até a deixarem em coma e morte em 16 de setembro, desencadeando as vagas de manifestações.

Ouvimos falar em vários países de um estado profundo. No Irão existe o que o professor especialista Side Golcar designou sociedade profunda, 20% da população, mais de 15 milhões de iranianos. Abarca muita gente desde o supremo líder Al Khamenei e quase todo o clero; as elites que enviam os filhos a estudar e passear no Ocidente; os juízes, reitores e técnicos de confiança; os dirigentes de grandes e pequenas empresas e seus assalariados e famílias; a massa de funcionários de todos os estratos sociais e famílias. E, finalmente, o corpo de Guardas que controlam o país través da repressão e terror e grande parte das Forças Armadas

A poderosíssima rede de interesses dos Pasdarans controla cerca de 40% da economia iraniana. Os seus objetivos de jihad, e que estão consignados na Constituição, consistem em disseminar a lei da Sharia em todo o mundo. Estes objetivos ideológicos e a base económica e social permitem sustentar o regime e as atividades da linha-dura islamista; quanto a linha moderada, não existe, a não ser na mente dos que não sabem o que é exportar uma revolução.

O plano de exportar a revolução islâmica para territórios onde existem maiorias xiitas tem vindo a ser posto em prática desde a revolução de 1979. A militância xiita criou alguns dos mais letais grupos terroristas no Médio Oriente, como o Hezbollah no Líbano ou as milícias Quds que colaboram com Bashar al-assad e Vladimir Putin na repressão de civis na Síria.

Através da sociedade profunda, o regime dos Aiatolás não defende objetivos nacionais, mas sim objetivos clericais. A República Islâmica distingue radicalmente entre defensores e forasteiros, os que apoiam e os que não apoiam o islamismo xiita. A nacionalidade conta para 65 milhões de xiitas iranianos. Mas são igualmente importantes os cerca de 90 milhões de xiitas que constituem a maioria, ou quase, em países como o Iraque, Líbano, Yémen e Síria.

Mapa de influências

As ações da República Islâmica visam satisfazer a base de apoio dos Pasdarans que constituem a grande minoria de 20% da população, suficiente para controlar os restantes 80%. Ao apelar a esta base, e ao reforçá-la com doutrinação, os Aiatolás controlam aquela sociedade profunda que faz contra-manifestações, reprime violentamente os conterrâneos e apoia as aventuras externas do regime.

República Islâmica do Irão e Federação Russa tornaram-se regimes cleptocráticos e oligárquicos, essencialmente corruptos para se regenerarem, e que apenas se mantêm devido à violência interna e externa promovida pelos respetivos “grandes líderes” e com dificuldades económicas crescentes. A política externa violenta torna-os cada vez mais em párias da comunidade e internacional atraem cada vez mais hostilidade, nomeadamente a de Israel. Há apenas um ano, os acordos entre a Rússia e o Irão pareceriam uma aliança entre duas potências; no presente novembro assemelha-se a dois cegos que se procuram amparar enquanto caminham para o abismo.

Amanhã é outro dia.

 

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância – LXXV

1 de Novembro

. Cenas do Dia das Bruxas

O mundo conhece o terror há muitos séculos ou milénios. As grandes narrativas do passado começam com relatos de que Caim matou Abel e Gilgamesh falhou na sua missão após o grande dilúvio.

A guilhotina de 1791, o holocausto de 6 milhões de judeus, a morte de milhões no Arquipélago GOULAg e os massacres de Tutsis, Cambojanos estão muito perto de nós e o massacre de Oighours à nossa frente. Como escreveu o filósofo Hegel, os regimes violentos têm uma necessidade metafísica de terror, para mostrarem que os outros não valem, não prestam e podem ser eliminados.

É ao estádio de terror a que chegou o regime de Putin. Terror nos bombardeamentos com armas convencionais e ameaças terroristas verbais para serem ouvidas no Ocidente.

Na 19ª Reunião do Clube Valdai, Vladimir Putin, desesperado para convencer o estrangeiro de que está a construir a “nova ordem mundial multilateral”, deixou um recado para os seus propagandistas. A dada altura, Fyodor Lukyanov, lembrou-lhe os comentários de há quatro anos sobre o uso de armas nucleares. “Afirmou que todos nós iríamos para o céu, mas não temos pressa para chegar lá, certo?” Em resposta, Putin fez uma longa pausa teatral. Lukyanov observou: “Parou para pensar. Isso é desconcertante.” Estava em jogo a descida aos infernos da política externa russa, às táticas de terror nuclear. Putin com o atrevimento dos psicopatas no poer brincou com a coisa mais séria do mundo: “Fiz isso de propósito para deixá-lo um pouco preocupado. Missão cumprida.” Para Putin não há imperativos éticos nem civilizacionais para arrasar Kyiv ou lançar bombas nucleares. Os seus únicos obstáculos é se os meios funcionam ( o que não é evidente, dados os falhanços dos recentes testes nucleares de 20-23 de Outubro)  e se a resposta ocidental não será arrasadora.

Na segunda-feira, 31 de outubro, apropriadamente o dia dos Bruxas, as respostas de Putin foram propagandeadas na televisão oficial russa, sobretudo por Margarita Simonyan, diretora da RT.

A jornalista norte americana Julia Davis – que tem feito um magnífico trabalho de vigia destas vozes alucinadas em @JuliaDavisNews – descreveu a transmissão  liderada por Vladimir Solovyov ( o rouxinol) – que acaba de ser reeleito presidente do sindicato dos jornalistas russos jornalistas russos.

Vladimir Solovyov ( o rouxinol)

Os propagandistas do terror aproveitam as deixas de Putin para desviar as atenções do público da tentativa de conquistar território, população, riquezas, espaço vital – seja o que for que ajude a consolidar com meios externos o seu poder. Convém-lhes focar o discurso numa suposta luta de valores entre  a “Rússia pura” e o “Ocidente imoral”, entre o Bem e o Mal, esquecendo o velho conflito entre a liberdade e a tirania.

Simonyan afirmou-se pronta para o martírio pela causa do presidente Putin. Permanecendo de pé, de braços cruzado, faz a propaganda do terror como no seu tempo fizeram Saint-Just, Himmler e os Khmers vermelhos: o terror é apresentado como salvação.

Está em curso uma transformação do mundo e essa é a fonte de esperança.”, disse Simonyan. A reunião do Valdai “para mim, foi uma sessão de psicoterapia, como costumam ser as reuniões com Putin. Afirmou que vale a pena morrer pelas ideias de Putin. “O mundo está em um beco sem saída – antes de tudo, em termos de valores. Se o mundo ocidental continuar da mesma maneira e seguir a mesma trajetória insana, caminha para a destruição da humanidade – mesmo sem guerra”, disse. O seu discurso é o mesmo das direitas norte americanas e dos negacionistas europeus: “Mais cinquenta a cem anos e ninguém mais dará à luz. Com todas as terapias hormonais, com seus lobbies farmacêuticos, com lavagem cerebral na mentalidade de sua própria nação e dos outros, seu próprio povo e seus próprios impérios.”

E continuou a Simonyan: “Não quero viver neste tipo de mundo. É melhor ir para o céu imediatamente, como Putin disse: nós iremos para o céu e eles vão coaxar”. Os propagandistas admitiram que “todos estremeceram” após a pausa de Putin. E adiantaram que preferem a morte a viver em um mundo de “degenerados sexuais”. Simonyan proclamou a sua relutância “de viver no mundo onde eu seria proibida de colocar vestidos nas minhas filhas e explicar ao meu filho que ele é um menino”. Que um dos seus jornalistas Ksaviov tenha afirmado em público que se deviam afogar as crianças ucranianas não a preocupa. E concluiu: “Isso já acontece em muitos países. Para mim, é insuportável. Para mim, isso é pior do que a guerra.

Ficarão para a história do terror, juntamente com as de Saint-Just, Beria e HItler as declarações de Simonyan sobre a beleza da guerra, em oposição às liberdades sociais. A guerra tem objetivos. Junto com tragédias, dor e outras coisas compreensíveis, a guerra tem orgulho, a felicidade da vitória e certo crescimento pessoal. Há mudanças na personalidade que levam a uma autoconsciência mais profunda como parte da nação, como parte de certos valores e ideais”, disse. “E o que tem o lixo fascista ultraliberal? Não sei. Espalha-se como tumor incontrolável, contra o qual a quimioterapia é ineficaz. Se permitirmos isso em qualquer lugar perto de suas fronteiras, antes que perceba, estará vivendo em um país que está ditando que você deve viver de uma determinada maneira. Com a nossa mentalidade, viver assim é insuportável.

Confirma-se que na Rússia, as mulheres são mais articuladas que os homens. Symonian acrescentou que voltar aos assuntos quotidianos após a “sessão de psicoterapia” com Putin é “assustador” e questionou: “Vamos vencer? Temos força suficiente? Temos armas suficientes? Não falo de uma vitória sobre a Ucrânia… está bem claro que estamos a lidar com a origem daquele tumor, com o organismo monstruoso que é conhecido como mundo ocidental coletivo. É poderoso, bem-sucedido, bem armado e, ao mesmo tempo, totalmente ferrado, impetuoso e totalmente sem educação”.

As táticas de terror do Kremlin contra os civis ucranianos estão à vista com os bombardeamentos das cidades. Mas até onde Putin está disposto a liquidar civis da sua nação?

No programa, houve quem interpretasse o silêncio de Putin como recusa de usar armas nucleares. O tenente-general Evgeny Buzhinsky avançou a possibilidade de negociações com o Ocidente, mas foi logo interrompido: “Qual é a fonte desse otimismo?” disse Solovyov: Quem tem uma mente positiva está mal informado”.

Evgeny Buzhinsky

Buzhinsky replicou:Eu gostaria de pensar em coisas boas e não em todos nós irmos embora, embora entenda que é bom estar no céu… mas o presidente não deu uma resposta clara sobre se estamos com pressa para lá chegar”.

Solovyov e parceiros continuaram a propaganda de que morrer é preferível a ser derrotado. Um professor Dmitry Evstafiev avançou com a hipótese de que, se os russos perdessem, seriam exibidos em jardins zoológicos americanos. “Os ocidentais gostam do colonialismo… Querem-nos nos seus zoológicos. Eles virão e verão – ali está um elefante e aqui está um russo… Não se aproxime e não tente alimentá-lo através da gaiola”.

Dmitry Evstafiev

Os propagandistas fizeram o seu trabalho. Os amigos da liberdade têm de fazer o seu, começando pelo que diz o major-general ucraniano Kirilo Budanov; as armas nucleares não são “armas” que se usem; são meios de dissuasão, e a Rússia não as usará na Ucrânia.

Amanhã é outro dia!

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância – LXXIV

29 de Outubro

. O discurso de Valdai: a fuga à realidade

 

Há duas maneiras de fazer a cronologia da guerra da Ucrânia; contar os dias que passaram desde a invasão e contar quantos dias faltam para Putin sair de cena.

Passaram 248 dias desde 24 de fevereiro. Ainda não sabemos quando dias faltam para Putin sair, mas cada passo desastroso seu e cada discurso patético aproximam essa data.

Este é o sentimento que vem ao de cima ao escutar Putin no Clube Valdai, onde é a estrela desde a primeira reunião em 2004. É uma espécie de Davos do Leste. Este ano inclui 111 especialistas, políticos, diplomatas e economistas de 41 países a debateram com os círculos do poder na Rússia.

Clube de Valdai

O momento alto do Valdai é o longo discurso do presidente e as suas respostas. Nesta fase de pânico crescente, falou para reforçar as forças da direita anti globalista, e semear a desunião nos Estados Unidos e na Europa. Nem sequer se preocupou muito com os diplomatas e intelectuais na audiência nem com o moderador que o interrogou sobre a guerra da Ucrânia.

Putin voltou aos temas que pretende ver agitados nos media ocidental– os temas que servem para esconder as suas derrotas militares, os seus desastres logísticos, a sabotagem interna, o descontentamento dos mobilizados e muitas outras ansiedades russas neste final de outubro de 2022.

Enquanto as suas tropas estão implicadas em assassinatos em massa, Putin queixa-se de que houve entidades que deixaram de tocar a “Abertura 1812”, de Tchaikovsky e de dar cursos sobre Dostoiévski, romancista genial mas que abusava de uma teoria da conspiração contra o Ocidente.

Tchaikovsky, com a devida vénia a Archive/Getty Images)Nada disto é cancelar a cultura russa, mas a acusação serve aos idiotas úteis. Fica bem citar Demónios de Dostoiévski e Putin acrescentou num momento de candura: “Eram grandes pensadores e estou grato aos meus ajudantes por encontrar essas citações. São livros muito longos

O discurso foi a manifestação da degradação a que Putin conduziu a Rússia. A sua maneira de ver o mundo está tão completa, tão redonda que já não pode ser questionada. E o problema da ditadura é que ao expulsar a possibilidade do contraditório obriga-se a fabricar mentiras

Putin preferiria que discutíssemos os direitos das minorias homossexuais em vez de quantos sistemas de artilharia e tanques devemos enviar para a Ucrânia. Os comentários patéticos em Valdai podem parecer tagarelice e lembram os Tischreden de Hitler, mas o agente KGB sabe o que faz. Cabe ao mundo livre garantir que estas jogadas de propaganda não funcionem

Putin está cada vez mais emocional, como disse na MNBC um seu antigo guionista e a sua mão direita tem uma mancha negra de necrose. A sua grande incoerência leva-o a oscilar entre duas afirmações: afirma a necessidade existencial de a Rússia destruir o chamado monopólio norte americano da ordem internacional; e neste sentido, pouco lhe importa o que sucede à Ucrânia. Por outro lado, para desafiar essa suposta ordem, desencadeou uma operação militar na Ucrânia que está a correr cada vez pior e que ele não sabe como concluir e que o arrasta para o abismo.

Esta grande incoerência leva-o a ele, e a todos que o servem, a uma escalada de ameaças, muitas delas atribuídas ao inimigo como mandam as regras de agitprop. Ameaças nucleares, ameaças de bombas sujas, ameaças de armas biológicas, ameaças de destruição da barragem do rio Dnieper. Os propagandistas da televisão e os “diplomatas” russos levam esta escalada oral até limites do descrédito e do ridículo total.

O presidente exibe cada vez mais um traço a que os russos chamam naglost, a audácia insultuosa, o atrevimento sem limites, provocação. Enquanto manda bombardear centrais elétricas na Ucrânia, conta anedotas sobre alemães cheios de frio. É simplesmente nojento e mostra que estamos a lidar com um sociopata.

Estou convencido de que a democracia real em um mundo multipolar”, disse Putin, “é sobre a capacidade de qualquer nação – enfatizo – qualquer sociedade ou civilização de seguir seu próprio caminho e organizar o seu próprio sistema sociopolítico”. Entretanto, os militares russos continuam a tentar apagar uma nação ucraniana com um número de mortos que os especialistas estimam ir já em 150 mil.

Os factos revelam outro apagamento: o dos militares russos que, como em 1917, irão virar as suas espingardas contra o poder que os sacrifica como carne de canhão.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância (LXXIII)

23 de Outubro

. Mendo Henriques

Ursula von der Leyen, heroína discreta

Um dia agradeceremos melhor a esta senhora que mantém a calma, o sangue-frio e o coração quente, à frente da Comissão da União Europeia, onde as tensões são diárias e para a qual se aproxima mais um período difícil.

Tendo sido ministra de Angela Merkel em vários cargos, e tendo seguido a política alemã externa corrente de Westbindung – integração ocidental – e Ostpolitik – paz pelo comércio com a Rússia – faz parte das dirigentes surpreendidas pelo 24 de fevereiro; como iria reagir à agressão?

Sabia-se da sua coragem em tomar decisões contra corrente como seja apoiar a chanceler Merkel quando se tratou de acolher os refugiados sírios, em 2015, a maior parte fugidos da guerra civil, como agora fugiram cerca de 400 mil russos. A integração fez-se sem problemas de maior. Sabia-se também como defendeu a integração de filhos de casais homossexuais, chamando a atenção que não havia estudos que mostrassem que tinham evoluções piores que os filhos dos casais normais.

Com a invasão da Ucrânia, depressa veio ao de cima quem é Ursula von der Leyen. Nascida em Bruxelas, a sua formação como médica e humanista e depois como estadista na Alemanha, permite-lhe olhar para o mundo sem preconceitos e colocar acima de tudo a diminuição do sofrimento humano.

Revelou-se um pilar da liberdade em toda a Europa e o seu apoio intransigente ao Presidente Zelensky é uma das garantias que o mundo não irá ceder às chantagens do psicopata do Kremlin. Ficou para a história a sua ação de, em sete semanas, preparar o dossier para a adesão da Ucrânia, e que normalmente , como ela disse, levaria sete anos.

É ainda ela – e Josep Borrell – quem está por detrás das vagas de sanções financeiras que está a gripar a máquina de guerra russa, a ponto de Putin ter de pedir armas às ditaduras do Irão e Coreia do Norte.

É ela que concordou em congelar a parte dos 350 biliões de dólares / euros (a cotação está quase igual) das reservas financeiras russas na Europa, uma das primeiras e decisivas sanções em março de 2022. Neste momento começou em Bruxelas o plano de aplicar essa soma congelada na reconstrução da Ucrânia onde se calculam os prejuízos já em 1 trilião de dólares.

Seguindo o exemplo da Lei Magnistsky, estabelecida em 2012 por iniciativa de Bill Browder e Vladimir Kara-Murza, foi ela quem fez ir para a frente os pacotes de sanções aos oligarcas russos, retirando-lhes biliões, e proibindo-lhes de gozar dos seus, iates, palácios e lazeres na Europa.

Uma coisa sabe Ursula von der Leyen, médica, humanista e governante. É que não há preço que pague os mortos e os mutilados de guerra. A homenagem que lhes podemos fazer é garantir que não se repetirão os massacres da Ucrânia – cujos números aterradores ainda estão por apurar – e tudo fazer par que os russos se libertem dos seus governantes inadequados.

A frente europeia de apoio à Ucrânia vai atravessar um período tenso nas próximas semanas, devido à instabilidade inglesa, aos governos quase ditatoriais da Hungria e Polónia e à possibilidade uma cambada de republicanos conquistarem lugares no Congresso Americano nas eleições de Novembro, voltando a Trump e ao isolacionismo e ameaçando a aliança euro-atlântica. Quanto à Itália, a nomeação de António Tajani para ministro dos estrangeiros parece suficiente para impedir derivas direitistas do novo governo. A primeira-ministra Meloni já anunciou que a sua primeira vista será a Kyiv.

As importações europeias de gás e petróleo russo ainda fornecem cerca de 1 bilião de dólares por dia à Federação Russa. Neste assunto, não há milagres mas o caminho feito é surpreendente. Muito ajudou o tiro nos pés que foi o fechamento do Nordstream pelo Kremlin.

O fracasso da Grã-Bretanha em ter uma política económica autónoma está a prejudicá-la para além do que se pensava. Antes do Brexit a economia inglesa valia 90% da economia alemã; agora caiu para 75%. E a governanta que durou o tempo de uma alface conseguiu, além de assistir à morte da rainha, fazer cair a libra, a bolsa, os ministros e a si própria.

As eleições de autocratas em países europeus, e os ganhos dos republicanos cretinos nos EUA vão ser uma das últimas esperanças de Putin para dividir o Ocidente e a NATO. Os serviços russos de contra informação têm agitado furiosamente esta possibilidade nos canais oficiais e nas redes sociais informais.

A equipa de Ursula von der Leyen vai ser posta à prova; tudo o que tem feito até aqui, mostra que vai resistir a estes assaltos contra a liberdade.

Amanhã é outro dia!

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância (LXXII)

18 de Outubro

. A recuperação de Kherson

Kherson está prestes a ser recuperada pela Ucrânia. Os sinais não enganam. O general Surovikin, recém-nomeado comandante da totalidade das tropas invasoras, em entrevista de hoje, declarou que “a situação é tensa” e não pode descartar “as decisões mais difíceis” em relação à defesa da cidade. Entretanto, o governador da região fantasma tem repetido os pedidos de evacuação de civis pró-russos.

The GeneralComo se chegou aqui? E por que razão a dinâmica da guerra convencional cada vez mais favorece a Ucrânia e só uma situação muito excecional poderá dar vantagens à Rússia?

No final de agosto, após semanas de preparação e de concentração de pessoal e equipamentos recebidos do Ocidente, a Ucrânia lançou a sua primeira grande contra-ofensiva, na região sul, em Kherson. Os avanços foram então muito limitados, mas forçaram a Rússia a enviar tropas para esse setor sul, retiradas das frentes leste e nordeste.

Em setembro de 2022, a Ucrânia lançou uma outra contraofensiva na região de Kharkiv, e norte do Donetsk. Os russos, apanhados em contrapé, pois haviam enviado reforços para o saliente de Kherson, foram obrigados a abandonar as regiões e cidades de Izium, Kupyansk e Lyman e as tropas ucranianas retomaram uns 2.500 km² de território.

Em ambas as contra-ofensivas, os ucranianos começaram por dizimar depósitos de munição e centros de comando russos atrás da linha de frente, graças aos equipamentos HIMARS e M777s. Os aviões AWACS da NATO fornecem aos ucranianos os alvos e eles escolhem.

Him

No norte, avançaram com grupos de reconhecimento ocupando pontos muito à frente da linha de combates e induzindo os russos a retirar para não serem cercados. Uma estratégia brilhante do general Zaluznhny.

No caso de Kherson, os ucranianos começaram por danificar as pontes vitais que atravessam o rio Dnipro com o objetivo de isolar as tropas invasoras na margem ocidental do rio. Os ataques de precisão com HIMARS contra a ponte Antonovsky e contra as pontes secundárias no canal da barragem de Kakhovka, impediram o trânsito regular de veículos. As pontes flutuantes que os russos têm usado são demasiado vulneráveis. E assim, cerca de 25 mil militares russos dos 58º, 49º e 5º exército de Armas Combinadas correm o risco de serem isolados. É o que já se sabe há mais de um mês e que o general Surovikin veio agora preparar a opinião pública em casa.

O Kremlin percebeu de tal modo a ameaça de setembro que foi forçado a decretar o que mais temia: a mobilização de conscritos, que nesta primeira fase, parecem ser em número de 300 mil.  É a primeira mobilização russa maciça desde a segunda guerra mundial e não está a correr bem, por muitas razões que deixamos para outra crónica.

Do ponto de vista estratégico, começou assim em setembro uma terceira fase da guerra.

O comandante em chefe ucraniano colocou o estado maior russo perante um dilema fatal: ou os russos reforçam a frente sul de Kherson ou a frente leste do Donbass; e possivelmente, ou escolhem perder numa ou noutra.

É esse o sentido das declarações de Surovikin que, como qualquer militar, conhece o dilema chamado dos “dois cornos do animal”. Os ingleses conheceram-no ao serem derrotados pelos Zulus na batalha de Isandlhwana com o “impondo zankomu”. E o estrategista Liddell Hart elevou o princípio estratégico a razão de ser das grandes vitórias na 2ª guerra mundial.

No futuro imediato, quanto mais tempo passar, mais estarão ligados os destinos das frentes leste e sul.

Kherson fica a 100 quilómetros da Crimeia, ilegalmente anexada pela Rússia em 2014. A menos que a Ucrânia comece a fazer escolhas desastrosas no campo de batalha, a vitória russa parece fora de alcance. Quanto ao uso de armas nucleares ,prejudicaria a Rússia a longo prazo, mais do que qualquer ganho imaginado por Putin.

Tudo indica que os russos irão retirar de Kherson, numa manobra que, nos próximos dias, será manipulada como “um gesto de boa vontade”, uma oferta de paz.

Aproxima-se uma data importante pois Kherson é á única grande cidade que caiu em poder dos invasores, devido à não destruição da ponte Antonovsky por elementos cuja traição está a ser apurada.

Amanhã é outro dia.

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Crónicas da Invasão da Ucrânia, à distância

17 de Outubro – (LXXI)

. Como terminará a Guerra Russo-Ucraniana?

A princípio, quase ninguém imaginava que a guerra russo-ucraniana pudesse começar.

E ainda assim começou.

E agora, ninguém imagina como vai acabar. E, contudo, terminará porque a guerra é a continuação da política por outros meios. Ao estar a vencer no campo de batalha, a Ucrânia está a exercer pressão sobre a política russa; e se as decisões de Putin são cada vez mais prejudiciais para o mundo e agora para a própria Rússia, as consequências estão a ficar à vista

Os ucranianos tornaram-se grandes soldados. Combatem com calma e sangue-frio, mesmo com o inimigo a cometer crimes contra civis e a destruir infraestruturas. E contudo, é difícil ver como a Ucrânia chega à vitória para quem está preso a uma única variante de fim de guerra: a guerra nuclear. A propaganda putinista empurra-nos para esse cenário e usa e abusa da nossa imaginação sobre os cogumelos atómicos para gerar ansiedade, dificultar o pensamento e impedir-nos de nos preparar para os futuros mais prováveis. Uma vitória ucraniana pode melhorar o mundo em que vivemos.

A guerra pode terminar de várias maneiras. Mas de acordo com o princípio chamado da navalha de Occam, é mais importante focar-nos na variante mais provável. E o que as notícias cada vez mais mostram é que uma derrota militar convencional russa está a desencadear uma luta pelo poder em Moscovo, o que exigirá a retirada das suas tropas e mercenários na Ucrânia. É uma sequência de eventos conhecida como o fim dos impérios, nomeadamente o russo em 1917, e 1991. Não tem, necessariamente, de ser sangrenta.

Existe muito ruído em torno da guerra nuclear e Putin quer que nos sintamos vítimas. Os seus aliados objetivos no ocidente coletivo, os idiotas úteis, e os media capitalistas que só querem vender papel e bytes, falam do fim do mundo. E contudo, desde 1945, existem estados e potências nucleares que perdem guerras sem usar armas nucleares, como os EUA contra o Vietname em 1975, a China contra o Vietname em 1984, a Rússia contra o Afeganistão em 1987.

arma nuclear

A chantagem nuclear de Putin leva os mais timoratos a falar de paz a qualquer preço, para aliviar a pressão psicológica; e os mais capitalistas como Elon Musk, a aliviar a pressão sobre os seus negócios. Não nos podemos deixar manipular desta maneira.

Putin está a perder a guerra convencional. O seu único grande trunfo é a chantagem nuclear para dissuadir as democracias de entregar armas à Ucrânia, dando tempo a que as reservas agora mobilizadas atuem no terreno. É possível que essas reservas nem façam grande coisas; mas a escalada retórica está montada.

Ceder à chantagem nuclear não termina a guerra convencional na Ucrânia. Fazer concessões a um chantagista é garantir que ele obtém o que pretende. Ensina a futuros ditadores chantagistas, que tudo o que precisam é de uma arma nuclear e fanfarronice para conseguir o que querem. E contribui para proliferação das armas nucleares, como se fosse o único e decisivo modo de defesa das sociedades.

A ameaça nuclear é dirigida contra os ucranianos que já resistiram sete meses; se eles podem, porque não podemos também? A Rússia afirma que já mobilizou 222 mil homens e sem dúvida que vai mobilizar mais. Putin iria assumir o risco de mobilização em grande escala, enviar os russos para a Ucrânia e depois detonar lá armas nuclear com tropas sem equipamentos de proteção NBQ?

Mísseis nucleares

Os americanos e europeus tiveram meses para pensar numa resposta a esta chantagem e há indicações claras de que essa resposta, mesmo sem armas nucleares, é incapacitante para as forças armadas russas e humilhante para o Kremlin. Ao usar uma única arma nuclear, tática que fosse, o Kremlin perderia o resto de apoio que ainda tem no resto do mundo.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância (LXX) – (*)

10 de Outubro

. A fúria do desespero

Esta madrugada, 10 de outubro, Putin lançou sobre quinze cidades ucranianas os mais destrutivos e assassinos ataques desde fevereiro de 2022, com mais de uma centena de mísseis.

Zaporozhye e Kyiv foram das cidades mais sacrificadas. E a anteceder a reunião de emergência do seu Conselho de Segurança no Kremlin, avisou que o próximo dia 12 de outubro ficará na história como o início de nova escalada.

Cidade de Kviy

Esta fúria desesperada do Kremlin vem na sequência de derrotas e humilhações sucessivas. A derrota na frente de Kharkiv com a perda das cidades de Izyum e Kupyansk. A derrota na frente norte da região de Kherson, onde os Ucranianos avançam em direção ao rio Ingulets. A incompetência grosseira na mobilização seletiva de centenas de milhar de militares em que muitos têm de comprar os seus equipamentos porque a corrupção da logística russa não tem como lhos fornecer.

Além da escalada prevista para dia 12 e da intensificação de bombardeamentos, Putin nomeou mais um novo comandante em chefe das forças invasoras, o general Surovikin.

General Surovikin

Como capitão, foi um dos poucos oficiais soviéticos que mandou disparar contra os manifestantes em agosto de 1991, matando três. A sua reputação de general de 4 estrelas, é a de obedecer cegamente às ordens, como nas razias da Síria. E contudo, até Igor Girkin, no seu canal do Telegram, um dos mais radicais sanguinário russos e (ex-?)coronel do FSB, está surpreendido com esta escolha de quem foi detido e condenado (em liberdade condicional por 1 ano) por tráfico de armas.

O desespero da Rússia nota-se nas grandes decisões de Putin, mas também nas pequenas coisas. Na Rússia, uns 15% a 20% da população está preparada para se sacrificar pelo regime devido a mais de vinte anos de trabalho de propaganda e lavagem cerebral.

A diretora da escola Bulaeva Maya, Valerievna denunciou um seu aluno de 11 anos porque usava um avatar com as cores da Ucrânia nas redes sociais. A polícia foi prender o rapaz durante as aulas.

Na TV oficial, os paranóicos Vladimir Solovyov e Margarita Symonian, lamentam-se em direto, sobre a inação do exército russo. “Onde está o exército?” perguntam. E de facto, boa parte do exército está debaixo de terra e nos hospitais e a primeira vaga de mobilização de 200 mil homens ainda não se fez sentir e debate-se que impacto poderá ter uma massa de homens mal equipada.

Prigozhin, o antigo cozinheiro de Putin e agora empresário militar continua a recrutar gente nas prisões para o grupo Wagner. Promete-lhes, sem garantias, que após seis meses de luta serão libertos. Os canais russos Telegram mostram muitos que já estão com os membros estropiados. Alguns fugiram com carros e equipamentos. Em Bakhmut não conseguem derrotar os ucranianos há mais de dois meses.

O discurso oficial do Kremlin – e dos seus aliados putinistas no ocidente e dos apaziguadores tipo Chamberlain – é que foi obrigado a esta resposta brutal pelo ataque de 8 de outubro à “Ponte da Crimeia”.

Putin não precisa de provocações, ele que é um provocador por profissão. Cada vez se torna mais provável que o incidente da Ponte da Crimeia tenha sido uma provocação interna. Putin começou a segunda guerra da Chechénia e o seu sucesso politico em 2000 após ter ordenado ao FSB as explosões em apartamentos que mataram mais de 300 russos mas que foram atribuídas a Chechenos. Putin não precisa ser provocado para a obsessão de atacar o Ocidente e cometer crimes hediondos. E como declarou o ministro Dmytro Kuleba – que interrompeu a sua viagem a África – a resposta a estes ataques bárbaros será um apoio ainda mais resoluto à Ucrânia e o envio acelerado de sistemas de defesa aérea e antimísseis.

Acresce que a Ponte da Crimeia é um alvo militar legítimo mas o bombardeamento indiscriminado de cidades feito pela Rússia é terrorismo, considerando que terrorismo é um ato de violência contra alvos exclusivamente civis, o que a Rússia faz desde fevereiro.

Perante o agravamento da situação, o Congresso dos EUA vai considerar dois projetos de lei:

a) Reconhecer a Federação Russa como Estado terrorista;

b) Reconhecer as ações da Federação Russa na Ucrânia como genocídio.

Se isso acontecer, as regras do jogo mudarão drasticamente.

O desespero de Putin devido às derrotas no campo de batalha vai tomar formas previsíveis nos próximos dias. A Ucrânia não é o primeiro país que ele invadiu e não será o último se a sua fúria não for aqui e agora detida.

Amanhã é outro dia!

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Crónicas da invasão da Ucrânia

Oh, troika, Quem te inventou? (LXIX)

. 6 de outubro de 2022

Nikolai Gogol, nascido em Poltava, Ucrânia, escreveu um dos parágrafos mais conhecidos da literatura russa no romance Almas Mortas, na década de 1830.

Capa de “Almas mortas “

Comparou a nação a uma troika, puxada por três cavalos, que corre sem saber para onde. Vale a pena reler o parágrafo em que Petrushka, Tchichikov e Selifan se deliciam e se horrorizam com a cavalgada, com os nossos olhos postos na guerra europeia e global iniciada em fevereiro de 2022.

Oh, troika, coche-alado, troika! Quem te inventou? Tu não poderias nascer senão de um povo ousado, nesta terra que nunca fez as coisas a meio termo e que se estendeu como uma mancha de azeite por metade do globo, na qual se cansariam os olhos antes de ter contado exatamente o seu número de verstas! (…)

TroikaE tu, Rússia, não voas como uma troika relampejante, que não se poderia
alcançar? Passas com estrépito entre uma nuvem de pó, deixando tudo atrás de ti.
O espectador detém-se, confundido com este prodígio divino. Não será um raio
caído do céu? Que significa esta desenfreada carreira que provoca espanto? Que
força desconhecida encobrem estes cavalos, que o mundo jamais viu? (…)

«Para onde corres? Responde!» Não há resposta. Os guizos tilintam melodiosamente;, o ar revolto agita-se e converte-se em vento; tudo quanto se encontra sobre a terra é ultrapassado e, com olhar de inveja, as restantes nações afastam-se para lhe dar livre passagem.

O que há de extraordinário nesta passagem, que faz voar a imaginação sem fugir da realidade, é que ensina mais sobre a identidade da Rússia do que toneladas de livros, artigos twitters e blogues. E diz-nos muito sobre o imperialismo e a bagunça política criada por Putin.

Com Gogol, a Rússia interroga-se sobre a sua própria identidade. Rússia, onde estás tu? És revolucionária ou conservadora? Ateia ou religiosa? Europeia ou Asiática? Gogol mantém a pergunta viva, não a encerra com uma resposta definitiva.

Putin, pelo contrário, está a fazer o mundo sofrer com a tentativa desesperada de liquidar a questão. A Rússia não é europeia. Está contra a Europa, os EUA, o Ocidente global. Tem uma missão radicalmente diferente das ideias ocidentais de progresso. Mas como chegou aqui o ditador do Kremlin?

Quando terminou a guerra fria em 1989-1991, muito se escreveu sobre o “fim da história” e de que o mundo convergia para uma civilização centrada no capitalista democrático. A este grande preconceito de que a história é sempre progresso, acrescentou Fukuyama a ideia de que se atingirmos o mercado livre, a política torna-se democrática e a sociedade liberal. Esta ideia da marcha da história faz parte do discurso corrente de governantes e agências noticiosas do tal Ocidente global.

F. Fukuyama

Barack Obama reagiu à eleição de Donald Trump em 2016, afirmando que era um passo atrás, mas que, em breve, os EUA dariam dois passos em frente.

Não é assim. A história não tem partitura, tem cisnes brancos e negros, e o seu fundo é a probabilidade, sem termos de cair no exagero dramático de Shakespeare de que a história é um conto contado por um idiota. Todas as culturas que aprofundaram o assunto nos falam de escolhas que temos de fazer e que o futuro depende do valor humano e da fortuna. Como a guerra da Ucrânia volta a revelar.

Este confronto entre uma história que alguém presume saber para onde vai e outra em que inserimos o nosso propósito, adquiriu um sentido próprio após o final da Guerra Fria. A visão de Fukuyama tornou-se mais do que uma remota reflexão académica ou um conselho para dirigentes. Tornou-se uma maneira condescendente, de fazer recomendações de modernização a todos os países, incluindo a Rússia dos anos 90 que vivia a sua oportunidade democrática.

Em 1998, John Gray escreveu Falsa Madrugada sobre o desastre das políticas de “terapias de choque” aplicadas na Rússia nos anos 1990. A ideia básica era que, uma vez instalada uma economia de mercado, o resto iria ao lugar; a política ficaria democrática e a sociedade liberal. Na Rússia não foi assim. Ygor Gaidar fez as reformas do mercado, mas a sociedade russa não fez o resto do trabalho. Surgiram uns duzentos oligarcas bilionários, os russos normais passaram da mediania à pobreza e o estado entrou em carência. Em 2000, ano em que Putin chegou ao poder, afundou-se o submarino nuclear Kursk, o orgulho da frota, porque nem dinheiro havia para inspeções ao material.

Igor Gaidar

O anarcocapitalismo dos anos 90 passou a ser encarado pelos russos como uma experiência ocidental, uma modernização à força. A perceção corrente era de que essas políticas se revelaram catastróficas. E ficou uma ferida, um ressentimento. E por isso mesmo, o desconhecido Vladimir Putin foi eleito no Natal de 1999 como uma esperança de renovação, pelo menos uma surpresa. Contudo, o seu desempenho histórico, ajudado pela fortuna da alta do petróleo e do gás, foi assegurar o futuro dos oligarcas, encerrar, uma a uma, as fontes de democracia e aumentar o ressentimento dos russos. Foi deitando sal nas feridas ideológicas enquanto lhes propunha em alternativa a visão de uma Rússia outra vez grande.

Para o comprovar, basta comparar o que Putin disse sobre Lenine e Estaline. Ambos promoveram o assassínio em massa de compatriotas, embora Lenine em escala muito menor. Mas sobre Estaline, Putin nada diz de especial a não ser que a União Soviética é a continuação do império russo por outros meios, enquanto a Lenine tem verdadeiro rancor. No discurso que antecede a operação militar especial, referiu-se-lhe uma vez mais com ódio, afirmando que, além de desmilitarizar e desnazificar a Ucrânia, era preciso descomunizá-la e liquidar Lenine.

Por detrás da guerra imposta à Ucrânia e à Europa, está a obsessão de Putin contra a experiência comunista de 1917 e a experiência liberal de 1991-1999. Para ele são utopias ocidentais em solo russo, com uma história muito semelhante: organize a economia, e a política e a sociedade irão atrás. Lenine teria trazido essa ideologia da Europa como um agente estrangeiro que armadilhou o país com o regime soviético. Gorbachev e Yeltsin teriam deixado apanhar-se na mesma armadilha. Então, vamos invadir ou anexar a Ucrânia como uma maldita armadilha do Ocidente Global que inclui os EUA e outras nações democráticas, e dar-lhes um pontapé definitivo para assumir o destino histórico da Rússia. A troika descrita por Gogol começou a cavalgar. Correu muito mal até agora e vai piorar bastante, antes de poder melhorar.

Putin está a responder ao que considera a “falsidade ocidental”, com a falsidade ainda mais destrutiva da identidade russa anti-ocidental. Como está convicto de que a Rússia deve ir contra a Europa, mata ucranianos, corta o gás à União Europeia, e consulta os shamans da etnia Tuvan. As empresas capitalistas abandonam a Rússia? É uma oportunidade de nacionalizar o que resta. As sanções ferem a economia? Basta resistir mais que a Europa e, dentro de vinte anos já ninguém se lembrará delas, mas só de quem ganhou a guerra. Os direitos individuais? Que interessam à ditadura fascista de um só povo, um só poder e um só dirigente, como dizem os seus ideólogos e lambe-botas? Quanto aos blocos do poder no Kremlin, estão a avaliar o chefe, cada vez mais preso à sua cavalgada.

O ditador do Kremlin convenceu-se de que consegue transformar o que chama a “ordem global” em “mundo multipolar” e neste inserir uma Rússia grandiosa, com muito petróleo, gás e armas nucleares, uma economia sem valor acrescentado. Quando o famigerado jornalista Vladimir Solovyev (o rouxinol) produziu em 2016 o documentário “Ordem Mundial”, baseado numa entrevista a Putin, está lá a frase sinistra do ditador: “Para que serve o mundo, se nele não houver lugar para a Rússia?”  Esta síndrome do império perdido foi-se agravando com o passar dos anos; ganhou crédito com a anexação da Crimeia em 2014, até dar nisto da guerra aberta em que os cavalos da troika de Gogol puxam todos na direção da Ásia, da ditadura e do fanatismo.

E contudo, há mais de trinta anos, desde o referendo da independência em 1991, que a valorosa Ucrânia saiu da cavalgada russa e declarou querer pertencer à Europa. Não quer a troika a bombardear cidades e a fugir das mesmas, levando consigo uma pilha de máquinas de lavar e deixando para trás fossas com assassinados.

Amanhã é outro dia!

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Crónicas sobre a invasão da Ucrânia

1 de Outubro de 2022 (LXVIII)

. O Testamento Político de Vladimir Putin

Na manhã de 30 de setembro – tal como no convés do Titanic se tocava música para passageiros de 1ª classe – Putin leu o que a história porventura assinalará como o último discurso de vitória, ao assinar a anexação das regiões da “nova Rússia” após a paródia dos referendos. No brilhante salão de S. Jorge, do Kremlin, perante mais de 500 figuras oficiais, do Conselho de Segurança, ministros do governo, representantes da Duma, e das regiões anexadas, apresentou o seu testam

O mundo político que há mais de vinte anos segura o regime, estava presente. Na primeira fila do lado direito, figuras de confiança pessoal como o porta-voz Peskov; Patrushev, presidente do Conselho de Segurança (SB, Sovet Bezopasnosti) e Medvedev, vice-presidente; Anton Vaino, chefe de gabinete: Matviyenka, porta-voz do SB, e Volodin, presidente da Duma. Mais para trás, ministros como Lavrov e Shoigu. Na primeira fila do lado esquerdo, representantes das regiões; caras conhecidas como o político e traficante Pushilin do Donetsk, e Pasechnik, do Luhansk; e dois desconhecidos de Zaporizhiya e Kherson a quem a história em breve se encarregará de fazer desaparecer.  E ainda Anatolievna, vice-presidente da Duma que terá um papel importante a desempenhar a seguir seguir. Quase nenhum militar.   

Após saudar os “referendos“, uma paródia resultante da mesma máquina eleitoral que o elegeu presidente em 2018, Putin arrancou alguns parcos aplausos quando referia a “unidade russa”. Mas dedicou 40 dos 45 minutos de discurso a afirmar que a guerra é a única forma de lutar contra um Ocidente que coloniza o mundo, e usa dinheiro e tecnologia para lançar um “imposto de hegemonia“. Mal referiu a Ucrânia, o “regime de Kiev”. Nessa mesma tarde de 30 de setembro, a Ucrânia arrancava corajosamente a cidade de Lyman às garras do 1º exército blindado das Guardas.

Putin projeta no inimigo as próprias intenções. A Rússia é uma velha civilização que não aceita as regras impostas pelo que chama “Ocidente coletivo” que já violou povos, países e fronteiras, ao longo da história, e agora trava uma guerra híbrida.

Com pequenos apartes orais, Putin leu uma lição da história em que acredita enquanto a assistência manifestamente só pensava “Qual vai ser o fim de tudo isto?” O Ocidente colonizou, traficou escravos globalmente, fez genocídio de nativos, pilhou a Índia e a África, forçou a China a comprar ópio. Quanto à Rússia está orgulhosa por ter “liderado” o movimento anticolonial que ajudou os países a reduzir a pobreza e a desigualdade. A russofobia resulta de o Ocidente não admitir um estado russo forte e centralizado e em paz com as grandes religiões. O Ocidente tentou desestabilizar a Rússia desde o século XVII, o tempo das perturbações. No final do século 20 chamaram amigos e parceiros à Rússia enquanto extraiam triliões de dólares

Nós não esquecemos”, repetiu Putin. Tomando a parte pelo todo, no que os linguistas chamam sinédoques e os lógicos falácias, e os juristas falso testemunho, e as pessoas comuns meias-verdades, continuou a sua diatribe contra o Ocidente, de uma forma que desafia o bom senso; mas o bom senso não é uma caraterística peculiarmente russa. Afirmou que o mundo unipolar é antidemocrático por natureza; que usou armas nucleares, criando um precedente; que arrasou cidades alemãs, sem “necessidade militar” (entre as quais Dresden, onde era agente do KGB). Coreia e Vietname foram arrasados. “Ocupa” o Japão, a Coreia do Sul e a Alemanha. Agora investiga armas biológicas e faz experimentos humanos “inclusivamente na Ucrânia”. E destrói o conceito de verdade com falsificações e propaganda extrema. É topete.

A verborreia de Putin apresenta as habituais generalidades das doutrinas geopolíticas de Alexander Dugin ou de John Mearsheimer. (ver crónica de 6 de maio) Os EUA governam o mundo pela força e quem desafiar a sua hegemonia torna-se inimigo. As elites ocidentais resolveram os problemas no início do século XX com a Primeira Guerra Mundial; após s Segunda Guerra mundial, os EUA estabeleceram a hegemonia através do dólar. E resolveram a crise dos anos 80 “saqueando a Rússia”. Agora querem “quebrá-la”.  Em contrapartida, um mundo multipolar ofereceria às nações liberdade para se desenvolver e Putin aproveitou para agradecer o apoio dos seus amigos de direita nos países ocidentais.

Em nota ideológica vulgar, falou de movimentos minoritários como representativos do Ocidente; anti-homofóbicos, transgéneros, e formas de abandono da religião que roçam o satanismo. Na mente distorcida de Putin, estão decerto dois dos principais adversários: a sr.ª Ursula von der Leyen que é cristã luterana e tem sete filhos; e o presidente Joe Biden que é católico e teve dois filhos, um falecido.

Putin encerrou o discurso com a frase totalitária e identitária, A verdade está connosco, a Rússia está connosco”. Ao declarar lutar pela “grandiosa Rússia histórica” e para quebrar a hegemonia do Ocidente, citou no final Ivan Ilyin, um doutrinário dos russos brancos ( ver crónica de 7 de abril ). E para qualquer pessoa saudável é penoso escutar esta paródia dos valores religiosos, a invocar jesus Cristo e afirmar que os nossos valores são: amor ao próximo, compaixão e misericórdia. Isto quando Timothy Snyder calcula que em Mariupol podem ter sido mortos mais de 70 mil ucranianos.

Após as assinaturas da anexação, Putin armou um comício a gritar “Rússia, Rússia” de mãos dadas com os representantes das regiões. Os cerca de 500 participantes aplaudiram e houve um ou outro sorriso. Mas durante 45 minutos a TV oficial apenas mostrou rostos cerrados, sem qualquer júbilo.

Foi um discurso recheado do complexo de vítima, em que Putin se revelou muito semelhante ao czar-gendarme Nicolau I, ao Pan-Eslavismo de Alexandre III, e ao expansionismo de Estaline e sucessores; todos lutaram contra o Ocidente. E está longe de Alexandre I, anti napoleónico, e de Alexandre II, o libertador dos servos, e mesmo de Nicolau II e Lenine, que penderam para a Europa. No movimento pendular crónico dos russos entre o Oriente e o Ocidente, e após as derrotas sofridas, Putin não tem como senão pedir auxílio à China e ao Irão. Não é evidente que o ajudem muito mais.

O discurso é de um estadista que deitou tudo a perder com a invasão de 22 de fevereiro, mas que tem mais de 6000 ogivas com armas nucleares.  Nada aprendeu, nem nada esqueceu com a queda da União Soviética que voltou a considerar a maior tragédia da história recente, como na conferência de Munique, em 2007. Para com o falecido Gorbachev, que queria os russos livres, e para com Yeltsin, de quem recebeu o poder, teve palavras de desdém, sem lhes citar os nomes.

O passo a seguir a esta sessão de anexação das regiões, em que se vai avaliar a força de Putin, será a votação na Duma. Dos cerca de 600 deputados e senadores quantos estarão ausentes por doença? Alguém votará contra, como fez o solitário Ilya Ponomarev, em 2014 contra a invasão da Crimeia, o mesmo Ponomarev que agora divulga atentados de resistentes russos nos seus canais de media?  Os deputados nomeados da Duma, concordaram em ser bandidos e ladrões, mas não assassinos e violadores.  No salão de S. Jorge, apresentavam um ar sofredor. Ser deputado é agora um passivo; quase todos estão sob sanções e não podem usar os seus biliões de rublos para o lazer nos países ocidentais. Quem votar contra a anexação dos territórios ucranianos terá o ódio do Kremlin, mas a atenção do Ocidente.

Putin quebrou a promessa feita ao povo “Deixem-me fazer guerras com profissionais e eu não vos obrigo a lutar“. Mas a mobilização de setembro quebra este contrato tácito, e exige o sacrifício de centenas de milhares de jovens. Com os referendos de faz de conta e a anexação das regiões invadidas, obrigou os seus seguidores a lutar de costas contra a parede. A estratégia de sem recuo é quase sempre a pior. Será este o momento em que o poder de Putin começará a colapsar?

Amanhã é outro dia.

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21 de setembro 2022 – (LXVII)

Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância 

 

. это не блеф – Ucrânia e mundo livre saberão responder

 

É uma ilusão da maior parte dos media, e de muitos comentadores, considerar que Putin está a jogar xadrez com os adversários internos e internacionais, calculando a melhor jogada. Nada disso. Desde que iniciou a grande invasão da Ucrânia a 24 de fevereiro Putin está a jogar poker. Mas após as derrotas de Kyiv em Abril e a derrota de Kharkiv em Setembro, com a hora da verdade a aproximar-se, as suas jogadas e pronunciamentos revelam uma insegurança e aceleração crescentes. Putin sabe que tem pouco tempo até que as elites do poder no Kremlin o removerem como um perdedor.

Foi assim que se lançou para a declaração no dia 21 de setembro de mobilização parcial de 300 mil homens das reservas militares. A declaração veio culminar anúncios anteriores de referendos regionais nos territórios invadidos e da modificação do código penal para sancionar eventuais desertores. No dia 19, Vladimir Putin ordenou ao vice-chefe da administração presidencial, Sergei Kiriyenko, para realizar “referendos” sobre a adesão em todos os territórios ucranianos ocupados – Donetsk, Luhansk, Zaporozhya e Kherson na próxima semana. Ordenou ainda à Duma do Estado e ao Conselho da Federação para introduzir no Código Penal os conceitos de “mobilização”, “lei marcial” e “tempo de guerra”.

Sergei Kiriyenko

A introdução dos 300 mil militares da reserva não será imediata pois têm de ser mobilizados, re-treinados e dotados de equipamentos. Também é possível que sejam enviados como tropas de guarnição e o estado maior russo traga para frente muitas das dezenas de unidades militares e parte das centenas de milhares de homens, estacionados nas fronteiras da Europa e da Ásia. É aliás um dos casos mais notados a “dissipação” – o termo de Clausewitz – do exército russo. Com cerca de 1.050.000 de efetivos em tempos de paz não conseguiu mobilizar para a guerra da Ucrânia até agora mais de 200. 000.

Quanto a ameaças nucleares Putin já fez várias desde o início da invasão, mas a desta quarta-feira foi a mais explícita até agora, reforçando-a com a expressão isto não é bluff. No discurso de 21 de setembro veio afirmar:  “Se a integridade territorial do nosso país for ameaçada, certamente usaremos todos os meios à nossa disposição para proteger a Rússia e o nosso povo … Não é bluff”. No bluff, há dois parceiros e as nações livres sabem responder. E que mais poderia dizer um governante derrotado na Ucrânia e que conseguiu unir contra si mais de sessenta nações livres e que foi admoestado pelos presidentes da Índia e da China que o caminho da paz seria preferível?

Conforme afirmou a vice-primeira-ministra da Ucrânia, Iryna Vereshchuk, as ameaças de Putin valem o que valer as respostas do Ocidente.  “A capacidade analítica do círculo de Putin é baixa–não entendem os riscos do que estão a fazer”, afirmou o importante conselheiro  Podolyak. “É difícil fazer previsões quando uma pessoa é irracional.”

Iryna VereshchukDo que se sabe, os Estados Unidos e a coligação das nações livres já alertaram a Rússia sobre retaliação em caso de tentativa de anexações de território por referendo. Entre as respostas estará a permissão para as Forças Armadas da Ucrânia usarem armas fornecidas para destruir alvos no interior da Federação Russa e novas armas para atingir alvos a uma distância de mais de 300 km. Quanto à utilização de armas nucleares táticas na Ucrânia, os avisos têm sido de uma resposta ocidental maciça com armas convencionais levando à aniquilação dos sites russos de lançamento de mísseis. O que os HIMARS fazem a nível tático, o arsenal de mísseis balísticos e hipersónicos ocidentais faria a nível estratégico. Restam os submarinos, é claro.

Perante as crescentes perdas russa, a agitação nas elites do Kremlin e o pânico silencioso na maior parte das grandes instituições é enorme. O grupo dos “ainda mais duros” tem um aparente protocolo com Putin da sua substituição pelo filho de Nicolau Patrushev. A presidente do Banco Central, Elvira Nabbiulina pediu, de novo a demissão, porque condicionara a sua permanência em 27 de fevereiro a não haver mobilização. Quebrada a promessa, veremos se Putin a aceita a demissão. É um caso a seguir com atenção até porque as ações na Bolsa russa já caíram 10%.

Shoigu nesta quarta-feira apresentou a sua mais recente mentira oficial sobre perdas: 5.937 militares mortos. Uma mentira particularmente patética porque o SITREP matutino do Kremlin a 21/09/2022, fala da perda irrecuperável de 59.373 militares. Isto excluindo o número de 4.638 mortos da Guarda Nacional e de 17.561 mortos dos mercenários. Por muito estranho que pareça, Shoigu dividiu por dez o número de baixas.

É só um número para a propaganda.

As estimativas ocidentais estão a aproximar-se de 90.000 mortos e feridos russos.

 

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia

30 de agosto 2022 – (LXVI)

. A filha de Dugin e a morte de Gorbachev (parte 2)

Neste dia em que morreu Mikhail Gorbachev, que conseguiu retirar a Rússia da etapa final totalitária em que a tinham colocado os gerontes soviéticos, cria uma estranha sensação de agonia histórica.

Mikhail Gorbachev

Passaram quase quarenta anos desde que Gorbachev iniciou a Glasnost e a Perestroika em 1985. Passaram trinta anos desde o golpe de estado de 1991 e a oportunidade democrática criada por Yeltsin.

Mas a Rússia está de novo mergulhada numa deriva totalitária e antiocidental.  Apesar do tumulto e do aumento brutal do custo de vida, a esmagadora maioria dos russos na década de Gorbachev e Yeltsin tornou-se pró-ocidental e pró-democracia. Só isso explica o golpe sem grande sangue de 1991. Como é que essa essa paixão extraordinária pelo Ocidente, terminou em extraordinário ressentimento, em deceção e rejeição, faz parte da perversão refletida em Vladimir Putin.

O desaparecimento de Darya Duguina é revelador desta deriva totalitária da Rússia à medida que sofre o atrito infligido pelas corajosas forças militares ucranianas. Na cerimónia de despedida da militante, o dirigente Leonid Slutsky do partido “democrático liberal” russo (ultranacionalista) declarou-se a favor de um povo, um império, um líder. É a afirmação típica do autoritarismo ocidental, que tanto serve ao rei Luís XIV, como a Hitler. E é preocupante que este tipo de discurso esteja a ser normalizado na Rússia onde cada vez mais grupos o proclamam sem inibições.

Putin porta-se como um equilibrista que tem de manter a população russa despolitizada e desmobilizada enquanto ele segue na corda bamba, a fazer o que quer no exterior desde que não mexa muito no custo de vida; ao mesmo tempo, precisa de mobilização extra para apoiar a guerra, manter a narrativa, e encontrar voluntários para as fileiras. Há uma minoria de russos, entre os dirigentes e entre a população, que são “ainda mais duros” que Putin e querem a escalada. Entre eles contava-se a Dugina.

As implicações da sua morte para a Ucrânia são limitadas. Além de ameaçar usar armas nucleares (e químicas e bacteriológicas) a Rússia não consegue fazer muito mais do que agora. A suspensão de Sergei Shoigu, Ministro da Defesa desde 2012 e ministro das Situações de Emergência entre 1992 e 2012, revela que Putin tem cada vez mais dificuldades em sustentar o atrito e corrosão das forças no território ucraniano.

Sergei Shoigu

A questão de fundo é que, para os russos, a guerra voltou a casa. A invasão da Ucrânia fez como o boomerang e tornou-se a “exvasão” da Rússia. Para o tenebroso Alexander Dugin isso é bom, como afirmou na cerimónia memorial da filha. “Não é possível fazer a guerra, através de véu de um sonho”… “É preciso encarar a realidade e envolver-se com esta guerra dentro de si”. Descodificando: quer a mobilização geral.

A invasão da Ucrânia está a voltar à Rússia de muitas maneiras. Para já nos cerca de 80 ou 90 mil mortos e feridos em combate, segundo fontes ocidentais. E quando os cerca de 200 mil militares russos já empenhados na Ucrânia voltarem a casa, sem ser num caixão, treinados na arte de matar, muitos deles embrutecidos e traumatizados, e alguns participantes em crimes de guerra, que vão fazer? Deslocados na vida civil e à procura de emprego, aumentarão os seus traumas e os das populações.

A morte da Duguina vem reforçar este efeito de boomerang, em que a guerra voltou ao território russo através de dezenas de sabotagens contra ferrovias, centros de recrutamento, fábricas e laboratórios, e personalidades. Os que no Kremlin querem ir ainda mais longe com a mobilização militar, politização popular, e repressão interna, têm mais um pretexto para declarar guerra a todos os inimigos, como só os regimes totalitários sabem fazer.

A morte de Darya Duguina esclarece ainda as tenebrosas relações entre a sua família e os políticos da direita pós-democrática. A Europa está em crise com políticos de direita que deixaram de ser conservadores e ameaçam as instituições democráticas. É o caso típico de Le Pen e Orbán. É ainda o caso da Itália em que Berlusconi e Salvini são fascistas, e dos quais a dirigente Giorgia Melloni se tem afastado ao apoiar a Ucrânia.

A morte da Duguina deve ainda servir de aviso para esta deriva à direita dos que desistem da democracia, dos que desistem de eleições e imprensa livres. São políticos que nem eles próprios percebem como é que a realidade política se inclina impercetivelmente para outra direção. A política ocidental está repleta de deformações à esquerda e ao centro mas esta deformação à direita, estas trevas que nos cercam, é a pior ameaça à democracia na década de 2020.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia

29 de agosto 2022 – (LXV)

. A filha de Alexander Dugin

A pior coisa que pode suceder a uma mãe ou pai é perder um filho ou uma filha. Darya Platonova tinha 29 anos e era uma fanática nacional-bolchevique (ou fascista) em ascensão, e decerto a preparar uma carreira política. Da mãe, Natalia Melentyeva, pouco se fala ou sabe. Quanto ao pai, Alexander Dugin, é um dos ideólogos que serve os objetivos de Putin, talvez mais conhecido no Ocidente do que na própria Rússia.

Darya Duguina morreu a 21 de agosto, devido à explosão por controle remoto do seu Toyota Land Cruiser Prado. Tinha assistirdo com o pai ao festival Tradição em que eram convidados de honra. À última hora, o pai decidiu seguir para casa noutra viatura.

Apoiante entusiasta da operação especial, a Duguina propagandeava o direito da Rússia em conquistar a Ucrânia. Teve o seu momento triunfante nas televisões, em Mariupol e afirmou que o massacre de 300 ucranianos em Bucha era apenas uma “dramatização exagerada”. Fazia afirmações deste calibre: “A Rússia precisa de conquistar parcelas da Ucrânia para cumprir o seu destino histórico”. “A filosofia nasce onde existe a morte”. “A Rússia é um espaço com significado filosófico, um espaço que nasce num império e é graças a essa fronteira que a Rússia pode existir”.

Tudo isto é puro Alexander Dugin, um ideólogo radical do Euroasianismo, e figura de culto da direita (ver Crónica XVI, 7 de abril).  Afirma que a civilização russa deve separar-se do ocidente, e a Rússia precisa de mais espaço vital, Lebensraum, como gritava Hitler. Em declarações nauseantes sobre o “espaço ontológico da Rússia”, a “fenomenologia do Império”, Dugin aproveita-se e perverte termos técnicos da filosofia para justificar o euroasianismo com grandes frases obscuras.   Na realidade está a falar de projetar a identidade russa, conquistar territórios, impor uma paranoia, sem cuidar de saber se são vivos ou mortos aqueles por quem anseia.

Alexander Dugin

Para ele, Putin é um líder de transição e um “ditador soberano”.

Em linguagem descodificada isso significa que Putin está mais interessado em si próprio do que na Rússia; é um ditador ainda sem a ideologia apurada e, para Dugin, enquanto esta não estiver estabelecida, tanto vale o liberalismo ocidental quanto o putinismo.

Dugin não é um animal político e as suas ideias não atingem as massas; talvez seja mais conhecido no Ocidente do que na própria Rússia, devido a grupos de direita, jornalistas irresponsáveis e comentadores mal informados. Os círculos radicais russos e as direitas ocidentais alavancam o mito de Dugin, apoiando-se mutuamente. Quanto ao que Putin pensa é fácil; uma dose de duguinismo é indispensável para estimular o sonho imperial; duguinismo a mais implica uma politização indesejável da população.

Não se sabe ainda por que motivo Dugina foi morta e poderemos nunca saber. Mas não faltam hipóteses, umas mais fortes do que outras, e algumas que parecem delirantes a quem esquece que a Rússia é “um enigma, envolto em mistério, dentro de uma incógnita“, como escreveu Winston Churchill.  Vejamos algumas delas.

O intrigante “General SVR” afirmou que Darya foi assassinada pela “linha mais dura” de Patrushev; pasme-se ou não, com o consentimento do próprio pai que ao contrário de Abraão, quis sacrificar a filha ao deus da morte. Sem conhecimento de Putin. A retórica de Dugin vai no sentido dos bodes expiatórios. Mas assassinar a filha?

Segundo o russo Ilya Ponomarev, ex-vice-presidente da Yukos oil e ex-deputado da Duma, foi obra do Exército Nacional Republicano, um grupo clandestino. As atividades dos grupos de sabotagem dentro da Rússia são bem conhecidas e reivindicadas no seu canal “Rospartizan  e no videocanal Manhãs de fevereiro. Mas todos os atentados?

Segundo o especialista Mark Galleoti, pode ter sido um resultado de lutas entre grupos radicais de direita ou grupos do Kremlin inseguros quanto ao futuro. Os assassinatos políticos na Rússia estão sempre na ordem do dia.

Mark GaleottiValery Solovey, um propagador de boatos, sugeriu que podia ser um aviso do Kremlin para os radicais ficarem sossegados, caso a Rússia tenha de recuar na Ucrânia.

O FSB atribuiu o atentado bem-sucedido a uma mãe que viajava com a filha, dos serviços secretos ucranianos, e que fugiu para a Estónia num Austin Mini Cooper!!! A propaganda da televisão ampliou o recado: Veja o que fizeram esses ocidentais ou ucranianos a uma honrada figura política! Bem: o FSB já teve dias melhores.

Seja quem for o autor do ataque, encaixa-se na jornada tenebrosa da Rússia em direção ao totalitarismo criado por Putin.

Amanhã é outro dia

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Crónica da invasão da Ucrânia (LXIV)

14 de agosto 2022

. A resistência ucraniana

Segundo o governador de Mykolaiv, Vitaliy Kim, o comando do exército russo em Kherson passou para a margem leste do rio Dnipro, no que pode ser o prenúncio da evacuação.

Vitaliy KimA crónica de hoje traduz o artigo do historiador Alexandre Motyl, um especialista dos impérios, e nomeadamente da Rússia, sobre a crescente oposição nos territórios ocupados que torna a vida cada vez mais difícil aos invasores.

Entre 6 de julho e 2 de agosto, ocorreram pelo menos 33 atos de resistência, 17 de protesto não violento, e 16 de violência. A maioria na província de Kherson, onde as forças armadas ucranianas preparam uma contra-ofensiva. Nove no Donbas; quatro na província de Zaporizhzhya e na Crimeia; um em Kharkiv.

Existe confiança ucraniana crescente, em particulr em Kherson e Crimeia, de onde Putin já retirou parte da frota do Mar Negro; onde não se celebrou o dia da Marinha após um ataque com drone; e, sobretudo, onde nove ou dez aviões de combate foram destruídos no aeródromo de Saki a 12 de agosto por forças especiais.

6 de julho, Kherson: explosão na estação ferroviária, depósito de munição destruído.

6 de julho, Severodonetsk, província de Luhansk: panfletos contra chechenos

8 de julho, Nova Kakhovka, província de Kherson: o colaboracionista Serhii Tomko, vice-chefe da força policial local, baleado e morto.

9 de julho, Nova Kakhovka: sinalização pró-ucraniana.

10 de julho, Sebastopol, Crimeia ocupada: panfletos anti-Rússia.

11 de julho, Velykyy Burluk, província de Kharkiv: colaboracionista Yevhen Yunakov assassinado em carro-bomba.

11 de julho, Kherson: bomba desarmada, destinada a matar o colaboracionista Volodymyr Saldo, chefe da administração da província controlada pela Rússia.

11 de julho, província de Zaporizhzhya: tiros disparados contra o colaboracionista da administração distrital de Melitopol, Andrii Sihuta.

11 de julho, Sudak, Crimeia ocupada: um grupo de soldados russos agredidos por moradores locais, possivelmente tártaros da Crimeia.

11 de julho, Simferopol, Crimeia ocupada; Kherson; Melitopol, província de Zaporizhzhya: emergem os movimentos de resistência da Faixa Amarela.

12 de julho, província de Kherson: Coronel Aleksei Avramchenko baleado e morto.

14 de julho, Mariupol, província de Donetsk: fábrica “Satelit” incendiada.

16 de julho, Kherson: fitas azuis e amarelas na cidade.

16 de julho, Sebastopol, Crimeia ocupada: cartazes oferecendo US$ 15.000 por informações ou “liquidação” do capitão Anatoly Varochkin, que ordenou ataques com mísseis em 14 de julho contra civis em Vinnytsia.

Cap. Anatoly Varochkin

20 de julho, Mariupol, província de Donetsk: panfletos pró-ucranianos.

20 de julho, Kherson e Berdyansk, província de Zaporizhzhia: grafittis anti-russo

21 de julho, Kherson: outdoor pró-Rússia desfigurado, pichação anti-Rússia aparece, bandeira ucraniana hasteada em local público.

22 de julho, Kherson: folhetos e grafitti pró-ucranianos.

22 de julho, Mariupol, província de Donetsk: símbolo nacional ucraniano no centro.

23 de julho, Kherson: bandeiras pró-Rússia desfiguradas.

25 de julho, Chaplynka, província de Kherson: símbolos pró-ucranianos

25 de julho, Berdyansk, Zaporizhzhya: explosão na fábrica de Pivdenhidromash.

27 de julho, Kherson: polícia colaboracionista morto, outro ferido com carro-bomba.

27 de julho, província de Kherson: guerrilheiros matam “grupo de ocupantes”.

28 de julho de Kherson: guerrilheiros distribuem panfletos pedindo à população que deixe a cidade antes da ofensiva ucraniana.

29 de julho, Sebastopol, Crimeia ocupada: cartazes anti-russos aparecem na cidade.

29 de julho, Kherson: sinais pró-ucranianos aparecem na cidade.

29 de julho, Mariupol, província de Donetsk: grupo de resistência Nemesis incendeia campos de cereais para evitar o confisco pela Rússia.

30 de julho, Kherson: O movimento de resistência Yellow Ribbon oferece recompensas por informações sobre eventos russos.

30 de julho, Enerhodar, província de Zaporizhzhya: explosões em frente ao hotel que abriga tropas russas; pelo menos seis feridos. Possivelmente o trabalho da resistência.

30 de julho, Svyatove, província de Luhansk: guerrilheiros destroem a sinalização ferroviária e os dispositivos de comunicação.

1 de agosto, Krasne, província de Kherson: bandeira russa do prédio da Câmara queimada; grafite pró-ucraniano e anti-russo.

2 de agosto, Crimeia ocupada: panfletos anti-russos.

2 de agosto, Luhansk: o governador da província, Serhii Hayday, afirma que os partidários de Luhansk destruíram infraestrutura vital.

2 de agosto, Troitske, província de Luhansk: panfletos anti-russos.

Amanhã é outro dia.

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Crónicas da Invasão da Ucrânia (LXIII)

13 de agosto de 2022

. Roleta russa em Zaporizhzhya

 

A situação é de emergência e o mundo está a suster a respiração, enquanto vê a maior central de energia nuclear da Europa transformada em arma nuclear por Putin.

É um jogo de roleta russa radioativa, em um país que já conheceu o desastre de Chernobyl em 1986. É também um sinal da cruel guerra híbrida. Os refugiados foram as primeiras vítimas. Depois veio a insegurança alimentar. E agora a chantagem nuclear acrescenta um ato de imprudência inaudita à violência e à quebra do direito e da moral.

Já todos temos na retina a imagem da central nuclear de Zaporizhzhya com seis reatores e torres de resfriamento, situada à beira do grande reservatório formado pela gigantesca barragem do rio Dnieper, em Kherson.

Central Nuclear

Na margem oposta está Nikopol, uma cidade de 100.000 habitantes, conhecida pela indústria de tubagens e metalurgias. A distância entre ambas as cidades é de sete quilómetros ou 15 segundos, o tempo que leva um míssil russo Grad disparado em Zaporizhzhya até atingir Nikopol que vivia em relativa tranquilidade acolhendo refugiados do Donbass e outras regiões.

Cidade de Nikopol

A central foi conquistada há mais de quatro meses e desde então ficou na linha de frente.  Os funcionários da Energoatom, o operador ucraniano, foram sequestrados. A agência nuclear russa Rosatom controla a central e iniciou obras para ligar a instalação à rede elétrica da Crimeia ocupada.

A partir de 12 de julho, novo desenvolvimento. Com a estagnação da ofensiva no Donbass, os russos deslocaram esforços para o sul da Ucrânia e começaram a bombardear Nikopol, com sistemas de armas colocados na central. Metade dos 100.000 habitantes foi-se embora. “É uma loucura completa da Rússia. Sabem que o exército ucraniano não pode responder”, afirmou Olexsandr Vilkul. Em Nikopol, os jornalistas não vêm quaisquer sinais de atividade militar ucraniana.

Olexsandr Vilkul

A 5 de agosto as tropas de ocupação bombardearam partes da central, destruindo infraestruturas de ligação ao sistema de energia da Ucrânia. Os projéteis caíram perto do quartel de bombeiros e de uma unidade de armazenamento de fontes radioativas. Houve cabos de alta tensão derrubados e uma estação de bombeamento de águas residuais danificada.

O Diretor Geral da Agência Internacional da Energia Atómica, Raphael Grossi, exigiu acesso à central e condenou a ação:Estou preocupado com o bombardeamento da maior central da Europa, e do risco real de uma catástrofe nuclear. Exorto todas as partes a exercerem o máximo de contenção

A 6 de agosto, os serviços de informação ucranianos confirmaram que a central foi minada. O presidente Zelenskiy instou a ONU e a comunidade internacional a agir contra a “chantagem nuclear direta” e o risco de os russos criarem uma provokatsiya, destinada a imputar as culpas dos bombardeamentos a Kyiv a fim de a desacreditar perante parceiros internacionais. Como recentemente sucedeu em Olevnika.

O secretário-geral António Guterres emitiu um apelo para criar uma zona desmilitarizada em torno da central; a 12 de agosto, a representação permanente da Rússia na ONU declarou que não aceita tal apelo. Nesse mesmo dia, a Rússia lançou 120 mísseis Grad, matando 16 civis em Nikopol e Marhanets, e ferindo dezenas.

A principal preocupação é uma fuga de radiação, como em Chernobyl. Os reatores foram reforçados desde 2001 e não se prestam tão facilmente a explodir. Mas a interrupção de energia elétrica pode provocar a falta de água que arrefece os reatores. Além disso, a probabilidade de falha humana aumenta porque os técnicos trabalham há quatro meses em ambiente de guerra e de coação.

Há quatro meses que Raphael Grossi, da IAEA, tenta obter acesso à central, mas precisa da autorização da Ucrânia e de Putin para as suas equipas observarem a Central. A Ucrânia é a legítima detentora da central nuclear e essa soberania tem de ser respeitada no pedido de acesso; mas sem o acordo dos invasores russos que controlam as instalações, nada feito. Por isso Grossi insiste no acordo das partes, para verificação independente dos danos. Não é uma questão política, mas de segurança humana global.

Ao usar a central de Enerhodar como arma nuclear, como quis fazer com Chernobyl no início da guerra, Putin revela uma parte do seu desespero e como a Rússia está cada vez mais vulnerável. Até quando os russos deixarão um criminoso político brincar com o fogo?

Amanhã é outro dia.

Nota: O Professor Doutor Mendo Henriques esteve dia 11 de Agosto em Oleiros onde apresentou este Seu novo livro, acolhido com entusiasmo. Esteve acompanhado do Editor e do General Rodolfo Begonha e voltará a apresentar a obra no dia 26 de Agosto às 15H00 na Feira do Livro de Lisboa

Mendo Henriques

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Crónicas da Invasão da Ucrânia, à distância. (LXII)

27 de julho de 2022– Mendo Henriques

. A economia russa a cambalear

A informação na era digital é tão abundante que nem mesmo os governos autocráticos a tentam bloquear. Em vez disso, disseminam informações falsas ou irrelevantes. Como é impossível ocultar a informação negativa, inunda-se o público com relato e pistas falsas. Há tantas narrativas contraditórias que é difícil saber qual acreditar. Há tanta coisa apenas a um clique de distância que é difícil concentrar-se, e se a economia, política ou ciência parecerem demasiado complicadas, há quem mude para temas de animais, celebridades ou pornografia.

Vale isto para situar as notícias contraditórias que correm sobre o impacto das sanções aplicadas ao Kremlin pela Europa e EUA. Com a invasão no quinto mês, surgiu um estudo abrangente sobre o impacto das sanções, conduzido pelo professor Jeffrey Sonnenfeld e a equipa da Chief Executive Leadership Institute, da Universidade de Yale, com conclusões esmagadoras: a economia russa está a cambalear.

O estudo destrói a narrativa lançada pelo Kremlin – e acolhida por putinistas da direita e da esquerda – de que o enfrentamento da Rússia se transformou em “guerra de desgaste económico” em que o Ocidente está a perder, dada a “resiliência” russa.

Os “manipuladores” e os “idiotas úteis” distorcem e deixam-se distorcer por narrativas que só divulga dados escolhidos a dedo pelo Kremlin, apresentando os mais favoráveis e descartando os desfavoráveis; por exemplo; a Rússia vende cada vez menos gás e petróleo, mas recolhe mais dinheiro dada a subida dos preços unitários; esconde que os lucros do Governo não se refletem em redistribuição na população e a venda ao desbarato à China e Índia – $35 a menos por barril – não é um “mercado de futuro”.

Muitas estatísticas são veiculadas sem critério por agências de notícias e depois ampliadas por quem serve interesses objetivos de Putin. Em vez disso, a equipa de Yale recorreu a fontes diretas russas, recolheu dados de grandes consumidores, cruzou comunicados de parceiros comerciais, fez mineração de dados de remessas, e chegou a uma conclusão muito clara: as sanções dos Aliados e o êxodo das 1000 grandes empresas estão a provocar a catástrofe, apesar de desesperadas tentativas de disfarce e da chantagem exercida sobre a Europa com o gás.

– A Rússia comprometeu a sua posição de grande exportador de mercadorias; está a cair nos principais mercados e terá muitas dificuldades em se virar para a Ásia com exportações como gás e petróleo que não são fungíveis.

– As importações russas entraram em colapso e o país tem dificuldades crescentes para garantir materiais, peças e tecnologia cruciais, levando a uma escassez de suprimentos que a impede de produzir automóveis, aviões, ferramentas, medicamentos e armamentos. A venda de automóveis caiu para 5% de 2021.

– O Kremlin lança as ilusões de autossuficiência e substituição de importações, mas a produção doméstica não tem capacidade de substituir negócios, produtos e talentos perdidos; mais de 200 mil especialistas de IT abandonaram o país e com eles, a inovação e as mais-valias. O aumento dos preços – de 40% a 60% em setores como cuidados de saúde, máquinas, automóveis – está a levar os consumidores ao desespero. Se produzir carros ou aviões comerciais serão do nível dos anos 80, escreveu Branko Milanovic.

– Em cinco meses, a Rússia perdeu empresas que representavam 40% do PIB; foi isolada dos mercados financeiros internacionais; os mercados internos têm o pior desempenho do mundo pois não há crédito para as pequenas e médias empresas;

– O Kremlin pratica intervenções fiscais e monetárias para cobrir esta situação insustentável. O rublo só parece estável porque nenhum país nem empresa do mundo o transaciona. O orçamento federal está já deficitário no primeiro semestre; as reservas de moeda estrangeira estão a desaparecer e já houve um incumprimento por bancarrota; apesar dos preços altíssimos da energia, o Kremlin está a fechar os seus gasodutos e oleodutos numa chantagem desesperada para criar inflação na Europa.

As sanções económicas aplicadas pela Europa e EUA vão já na sétima vaga, resultante de um trabalho de equipa. Mario Draghi sugeriu o congelamento de US $300 biliões de dólares das reservas do Banco Central Russo.

A Lei Magnitsky – em memória do jovem advogado russo assassinado na prisão – serviu de precedente para as sanções individuais que estão a enfurecer os privilegiados de Putin, nos media, na política nos negócios. É um mundo que está a desabar.

Universidade de Economia de Kiev

A Escola de Economia de Kyiv e o Grupo de Trabalho do embaixador McFaul e Andrei Yermak, chefe de gabinete do Presidente Zelensky lideraram o caminho ao propor sanções adicionais.

Embaixador Michael McFaulAndrei Yermak, Chefe de Gabinete do Presidente ZelenskyEnquanto os aliados permanecerem unidos nas sanções contra a Rússia, não terá sido em vão que os Ucranianos morreram pela dignidade de serem livres e justos. Como disse Stoltenberg, secretário-geral da NATO: os aliados pagam em dinheiro; os Ucranianos pagam em vidas, um exemplo à Europa e ao mundo.

Amanhã é outro dia.

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Crónicas da invasão da Ucrânia (LXI)

25 de julho – Mendo Henriques

. Quem passa no teste?

150 anos atrás, o chanceler alemão Bismarck declarou que nenhum tratado com a Rússia vale sequer o papel em que foi escrito. Menos de 24 horas após assinar um acordo de exportação de cereais com a Ucrânia, intermediado pela ONU e Turquia, a Rússia violou-o grosseiramente, bombardeando Odessa.

O ataque foi um embaraço para o presidente Erdogan e o secretário-geral Guterres.

Recep Tayyip Erdogan, Presidente da Turquia

António Guterres

Os armadores só vão enviar navios aos portos da Ucrânia se tiverem seguros subsidiados, talvez pelos EUA, e uma escolta naval ou cobertura aérea da NATO, ou ambos. Sem navios dispostos a arriscar, de pouco vale o acordo.

Houve quem ficasse muito animado pelo acordo, esquecendo a dura frase de Clausewitz de que a guerra é uma atividade tão perigosa que os erros advindos da bondade são os piores. É muito importante a Ucrânia exportar 20 milhões de toneladas de cereais e mitigar a crise alimentar mundial. Mas não é isso que vai eliminar a guerra. Tal como armou a guerra dos cereais, Putin armadilhou os recursos energéticos, o gás, o petróleo e os refugiados ucranianos na Europa e na Rússia. Nenhum destes fatores da sua guerra híbrida total contra o ocidente está resolvido e alguns estão-se a agravar.

Enquanto essa causa primeira da guerra não for corrigida, há apenas paliativos e soluções temporárias. E a coragem e bravura do povo ucraniano continua a ser o melhor fator para impor a Putin uma solução que deixe de fazer sofrer o mundo livre.

Os esforços da ONU para mitigar a fome provocada de Putin são louváveis. Mas para além do acordo sobre cereais, seriam precisos acordos sobre carvão, aço, minerais ferrosos e mais mercadorias ucranianas que só podem ser exportadas pelo Mar Negro.

A Ucrânia já teve dezenas de acordos com a Rússia, com vários governos, mas Putin sempre violou esses acordos e o direito internacional subjacente. O único meio de haver paz duradoura é fazer desaparecer as exigências de Putin, e a Ucrânia recuperar os territórios ocupados. Não é uma questão de otimismo. É que não há outra opção para a paz. Os ucranianos estão a lutar pelo território, pela independência, pela liberdade. Estão a travar uma guerra de princípios, com o apoio de mais de 50 nações livres que conjuntamente lutam pela liberdade, fornecendo dinheiro, armas e solidariedade.

Putin lançou a invasão de fevereiro confiante de que o mundo livre não se moveria. Se Putin porventura ganhasse, todos os autocratas desde Belarus à Coreia da Norte iriam assumir o controle do mundo, enquanto os putinistas ocidentais – Trump, Órban, Melloni, Le Pen – procurariam fazer-lhe favores.

Victor Órban, PM da Hungria

É cetro que há cada vez mais indicações – como afirmou Richard Moore, diretor do MI6 – de que a Rússia está a perder o fôlego e que a Ucrânia pode vencer. Podemos até acreditar que a Ucrânia vai ganhar esta guerra. Podemos acreditar que o mundo livre continuará a sustentá-la. Podemos acreditar que a guerra de atrição corre mal a Putin e que o seu lado será o primeiro a quebrar.

O que não podemos é subestimar a Rússia. É um país gigante com enormes recursos, mas que ainda nem os conseguiu mobilizar devido à repressão interna e à corrupção. Tem países próximos dispostos a ajudar na luta contra a democracia, como a China, o Irão e cúmplices vários no Médio Oriente, África e América Latina. O eixo Moscovo Pequim ainda funciona e a única forma de não subestimar o poderio russo é reforçar o bom combate do povo ucraniano juntamente com o mundo livre

Será que ver a Rússia na mesa de negociações significa que reconhece ter falhado? Claro que Putin acreditou que podia conquistar a Ucrânia em três dias, no que falhou completamente. Também não conseguiu minar a unidade da União Europeia, apesar de prosseguir esforços nesse sentido. Não conseguiu minar o apoio bipartidário nos EUA, mas continua a tentar. Falhou em quase tudo, mas isso não significa que esteja pronto para um acordo de paz. Apenas assinou o acordo dos cereais, pressionado pela ONU, porque o memorando lhe permite exportar alimentos e fertilizantes que estavam, parcialmente, sob sanções europeias e americanas.

O alvo de Putin é que a Europa e os EUA e as nações do mundo livre sintam como fatais o aumento dos preços da energia, a inflação, e que, entretanto, surjam na Europa governos colaboracionistas como o de Orbán, que minem a democracia e o apoio à Ucrânia. Continua a marcar pontos neste objetivo de criar o caos nos povos independentes e livres do mundo.  Mas todos os dias surgem novos exemplos de como a Ucrânia e seus aliados estão a passar neste teste e Putin a reprovar.

Amanhã é outro dia.

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Crónicas da Invasão da Ucrânia (LX)

Mendo Henriques 22 de julho de 2022

. Traições em tempo de guerra

Nesta semana, o presidente Zelensky provou de novo ser estadista, resistindo a interferências da direita radical norte americana para mexer no seu gabinete. Em contrapartida, removeu dos cargos no dia 17 a procuradora-geral da República, Iryna Venediktova, e o chefe do Serviço de Segurança do Estado (SBU), Ivan Bakanov.

Iryna Venediktova

Nos dois casos, as razões citadas foram o alto nível de atividade de traição de agentes em ambas as organizações: 651 acusações desde o início da invasão.

Ivan Bakanov

Na Rússia, um caso destes redundaria em morte aos espiões mas a Ucrânia é um estado de direito. A remoção de Venediktova aguarda confirmação pelo Parlamento, a de Bakanov já foi confirmada. E há muitas questões sobre os primeiros dias da invasão que o seu sucessor terá de investigar.

Como foi possível a Rússia capturar Kherson tão rapidamente, deixando-se que as forças ucranianas não fizessem explodir a ponte Antonovskaya que cruza o rio Dnieper, e que só agora está a ser alvejada pela Ucrânia?

Ponte Antonovskaya

Como avançaram os invasores tão rapidamente a partir da Crimeia, quer na direção de Kherson quer na de Mariupol, sem que as forças ucranianas tentassem bloquear as estradas, dando tempo para estabelecer linhas de defesa?

Como é que no 2º dia da guerra, entraram colunas blindadas em Obolon, um subúrbio de Kyiv? E um tanque e um veículo blindado foram ter à Ópera de Kyiv? E tropas russas em Makariv, a 40 km a oeste de Kyiv? E uma coluna de tanques russos foi vista no norte de Zhytomyr Oblast, perto de Korasten, no 2º dia da guerra?

A remoção de Iryna Venediktova e Ivan Bakanov dos respetivos cargos permitirá levantar o véu do conúbio entre o SBU (Ucrânia) e o FSB (serviço de segurança estatal da Rússia) e ajudará a explicar os avanços russos nos três primeiros dias da invasão e, sobretudo, a presunção do Kremlin de que ia conquistar Kiyv em três dias.

Em busca de uma visão de conjunto, convém ter presente um artigo de Christopher Miller, um dos jornalistas mais respeitados e bem informados sobre a Ucrânia, de que a infiltração do SBU pelo FSB ficou à vista de todos em 2010, no início da presidência de Viktor Yanukovich, e agravou-se até o presidente pró-Rússia da Ucrânia ser deposto pela revolução do Euromaidan. Mas deixou rastos e agentes.

Antes de fugir de Kyiv em 22 de fevereiro de 2014, Yanukovych- que agora se encontra em Moscovo – ordenou aos seus agentes de confiança da SBU que se apoderassem dos dados da organização. Foram roubados dados de mais de 22.000 oficiais e informadores, e dados da cooperação entre a SBU e o FSB. O que não conseguiram levar, queimaram ou destruíram. Os registos de recrutamento também foram destruídos. Dias após a invasão de 2014, o diretor da SBU, Oleksandr Yakymenko, apareceu em Moscovo, com outros subordinados leais.

Como Miller descreveu, o roubo deixou o novo governo de Poroshenko sem um serviço de segurança fiável no momento em que a Rússia invadia o Donbass e anexava a Crimeia. Não se sabia quem era leal à Ucrânia ou quem trabalhava para o FSB.

Estados Unidos e NATO não forneceram informações à Ucrânia, crendo que seriam comprometidas. E o presidente Poroshenko viu-se envolvido em acusações de traição ou de duplicidade que ainda agora o perseguem.

A fim de reconstituir a SBU, presidente Zelenky indigitou para chefe Bakanov, um seu amigo de infância, um produtor de cinema na KVARTAL 95, seu diretor de campanha eleitoral, e ex-presidente do partido Servos do povo. Mas Bakanov não tinha experiência na área e vê-se agora substituído.

As demissões têm de ser contextualizadas com os ataques contra Zelensky lançados nesta semana congressista americano-ucraniana Victoria Spartz. Foi das primeiras congressistas a condenar a invasão mas após uma carta que escreveu ao Presidente Biden, parece agora apostada em lançar um divisionismo entre Ucranianos e Americanos. Em declarações muito infelizes e falsas sobre a transparência na monitorização de armamento entregue à Ucrânia, veio pedir a demissão de Andrii Yermak, chefe do gabinete da presidência de Zelensky.

Estas afirmações foram escutadas sem histeria pelo governo ucraniano que lhe respondeu à altura. Provou-se que não havia fumo sem fogo. Mas também se provou que a direita radical americana pode estar disposta a vender a Ucrânia para efeitos de política interna. É o que revelam os recados da sr.ª Spartz que pertence à ala radical do partido republicano (Tea Party) e que procura o apoio de Trump para ser reeleita em Novembro.

No Inferno de Dante, à medida que aumenta a gravidade dos pecados, desce-se mais um círculo: o nono círculo é o local dos piores pecados: a traição.

Até Lúcifer está aí condenado. Neste caso estamos a falar de organizações corroídas pela traição. Após 8 anos da Revolução da Dignidade, a SBU ainda não foi purgada completamente de agentes pró-russos mas um passo importante foi dado esta semana, agora que chegamos ao 150º dia de guerra.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (LIX)

17 de julho de 2022– Mendo Henriques

. Cazaquistão quer deixar de ser colónia económica

 

O presidente Tokayev está empenhado em alterar os acordos sobre energia entre a Rússia e o Cazaquistão que enriqueceram as elites russas e cazaques. Trinta anos de colonialismo económico foram colocados em causa com as manifestações de janeiro quando o preço do GPL passou de 50 Tenge para 120 Tenge (30 cêntimos) por litro.

As manifestações alastraram de Zhanaozen, a capital do petróleo e gás no sudoeste, para todo o país. Houve protestos na antiga capital, Almaty (2 milhões), no centro industrial de Aktobe (1,3 milhões) em Kyzylorda e em Astana. Os manifestantes incendiaram carros e prédios, e deitaram abaixo estátuas do ex-presidente Nazarbayev.

Cidade de Zhanaozen

A explicação dos protestos é simples: custo de vida e desigualdades. O PIB per capita caiu de cerca de US$ 12.000 em 2014 para menos de US$ 9.000 em 2019, enquanto a riqueza nacional multiplicou 8,5 vezes desde 2000. Um quarto da população vive na pobreza. E o GPL é usado para tudo: veículos, aquecimento e eletrodomésticos.

O Cazaquistão foi governado entre 1990 e 2019 por Nazarbayev, o primeiro-secretário do partido comunista em 1989. Em 2015 receberia 97,75% dos votos na sua quinta vitória presidencial e teve este comentário digno de Maquiavel: “Seria antidemocrático diminuir os números em meu favor. Em 2019 escolheu o diplomata Tokayev para sucessor. Em troca, permaneceu como presidente do Conselho de Segurança. Foi declarado Yelbasy, Pai da Nação. A nova capital do Cazaquistão, Astana, mudou de nome para Nur-Sultan. O Código Penal foi modificado para proteger o clã.

O Art.º 373 indica prisão de até 2 anos a quem insultar o Yelbasy, e até 5 anos a quem pressionar a família. O artigo 374 permite até 5 anos de prisão em caso de violação da imunidade, telefones, carros, apartamentos ou contas bancárias do Yelbasy e familiares.

O clã Nazarbayev com trinta anos de poder precisa destes subterrâneos. Rakhat Aliyev, ex-marido da filha e sucessora política de Nazabayev e pai putativo do jovem Aisultan, morreu em 2015 em uma prisão austríaca ao aguardar julgamento por acusações de assassinato.

Era chefe da polícia fiscal do Cazaquistão e embaixador na Áustria. O próprio Aisultan, neto de Nazarbayev, denunciou em 2020 os acordos do gás casaque para financiar dirigentes russos, incluindo Vladimir Putin. Afirmou que o gás cazaque foi vendido “por um cêntimo” vom lucros de cerca de US$ 1,5 bilião para os russos, enquanto o clã Nazarbayev – que renegou – recebeu cerca de US$ 700 milhões. Morreu aos 29 anos em Londres em 2020, devido a insuficiência cardíaca. Era casado com a filha do presidente da KazRosGas Rússia-Cazaquistão e admitiu o abuso de drogas.

Até janeiro, os partidos de oposição não contavam. O partido de Nazarbayev, Nur Otan (Pátria Radiante) ganhou 82,2% dos votos nas eleições parlamentares de 2014 e 71,1% em 2021. Mas a faísca do aumento de preço do GPL fez explodir a fúria reprimida das populações.

Ao liberalizar os preços, o regime do Cazaquistão atacou o elo mais fraco. O Cazaquistão produz muito mais GLP do que consome, mas quase só vende para o mercado interno. A produtora Tengizchevoil – onde correu a explosão de 6 de Julho – uma joint venture com a Chevron, ExxonMobile, Lukoil e Kazmunaigaz, exporta todo o GLP que produz. O Cazaquistão compra GPL a empresas russas com preços 3 a 8 vezes maiores do que os internos.

O drama económico do Cazaquistão é semelhante ao que à Ucrânia descobriu nos anos 2000 e que levou ao sobressalto cívico do Euromaidan em 2013. A corrupção das elites locais permitia preços do combustível “socialmente aceitáveis”, mas causava dívidas enormes à Rússia. Os contratos obscuros de fornecimento de gás entre empresas cazaques e russas têm o mesmo segredo maldito, de exportadores de gás com enormes lucros. Um país que poderia ser uma superpotência regional energética depende da Rússia. A joint venture KazRosGaz e a Novatek compram gás no Cazaquistão; enviam-no para a Rússia, onde é processado e parcialmente revendido ao Cazaquistão.  Em 2020, a Gazprom Export extraiu 5,7 biliões de metros cúbicos de gás e entregou ao Cazaquistão 3,4 bcm.

Esses acordos de reexportação são semelhantes aos esquemas dos modelos coloniais do século XVIII; a metrópole extrai recursos dos territórios dominados – mediante contratos com as elites locais – e revende-lhes produtos acabados com grandes lucros.

Conseguirá o programa de reformas de Tokayev inverter este ciclo colonial e retirar à Gazprom e à máfia dos negócios de Putin mais uma fonte de rendimento?

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (LVIII)

16 de julho de 2022– Mendo Henriques

. Má vizinhança

 

Ser vizinho de Putin é mau; a vida pode acabar a qualquer momento. Ser vizinho da Rússia também é perigoso. Que o diga a Ucrânia e agora o Cazaquistão.

A 6 de julho correu uma explosão no campo petrolífero de Tengiz, no Cazaquistão, o sexto maior do mundo com reservas estimadas em 3,2 biliões de toneladas. Houve mortos e 4 mil trabalhadores foram suspensos. No mesmo dia, um tribunal russo ordenara ao Caspian Pipeline Consortium (CPC), que suspendesse as operações durante 30 dias devido a “irregularidades administrativas”. A decisão foi aparentemente revertida a 11 de julho.

Campo Petrolífero de TengizA 4 de julho, o presidente Tokayev, do Cazaquistão, anunciara que iria acelerar a produção de petróleo para a Europa, sobretudo a partir de Tengiz.

Presidente Tokayev

Foi mais um episódio do conflito cada vez mais agudo entre Moscovo e Astana, um conflito que se afigurava quase impossível há apenas seis meses. Uma solidariedade de aço parecia unir os dois países desde que Nursultan Nazarbayev assegurara o domínio do país no longínquo ano de 1991 até 2019, mantendo-se presidente do Conselho de Segurança e o aparente controlo da vida política do país.

Vieram então as manifestações armadas de Janeiro de 2022.  Perante a revolta popular a crescer, o presidente Tokayev em pânico pediu apoio militar à CSTO, submetida à Federação Russa, e após parte das forças de segurança se terem juntado aos manifestantes no ataque a edifícios estatais. O apoio russo foi imediatamente concedido, e os regimentos paraquedistas começaram a chegar, ajudando a segurar os ativos decisivos que o Kremlin mantém no antigo território soviético; minas de urânio, cosmódromo de Baikonur, entre outros. Mas, pormenor importante, na noite de 5 de janeiro, Tokayev anunciou a renúncia de Nazarbayev do Conselho de Segurança.

Na sequência do 24 de fevereiro, aguardava-se que o Cazaquistão cumprisse os pedidos/instruções de Putin para participar na agressão à Ucrânia. Grande surpresa. Não só Tokayev rejeitou o pedido para as tropas cazaques se juntarem à invasão, como se recusou a reconhecer as duas repúblicas fantoches no leste da Ucrânia. Os EUA e a União Europeia tomaram boa nota.

O Kremlin ficou furioso com estes sinais de independência. Durante quatro meses travou-se uma luta surda entres as duas capitais, enquanto Tokaiev modificava o xadrez político local. E por ocasião do Fórum Económico Internacional de São Petersburgo, a 17 de junho, Tokayev fez explodir uma bomba política ao afirmar que respeitaria as sanções ocidentais contra a Rússia. “Sanções são sanções; se as violarmos, destruirão a nossa economia”.

O Fórum de São Petersburgo é um evento em que o Kremlin procura projetar influência económica e diplomática. O Fórum de 2022 foi um fiasco. O único presidente estrangeiro presente – precisamente Tokayiev – declarou em direto à sinistra diretora da RT, Margarita Simonyan, que não reconhecia as “entidades quase-estatais” no Donbas. “Se fossemos reconhecer o direito das nações à autodeterminação, em vez de 193 estados-membros da ONU, teríamos mais de 500 ou 600. Seria o caos. Não reconhecemos Taiwan, Kosovo, Ossétia do Sul nem Abkhazia. E portanto, nem Luhansk e Donetsk. Na mesma ocasião, Tokayev acusou os políticos russos de “semearem discórdia” entre ambos os países e recusou a oferta da Ordem de Alexandre Nevsky.

O abalo no Kremlin perante este desafio foi brutal. No dia seguinte a Rússia anunciou a suspensão dos embarques de petróleo cazaque em Novorossiysk. De acordo com o Kommersant , as autoridades russas referiram como pretexto a descoberta de munições não detonadas perto do terminal onde termina o oleoduto do Cazaquistão.

A propaganda russa entrou em ação com ataques e ameaças, sempre muito violentos e brutais, mas parecem mais vazios em cada dia que passa.  Konstantin Zatulin afirmou que o desafio de Tokayev a Putin poderia custar-lhe uma invasão para proteger a minoria russa no Cazaquistão e anexar território. Há muitas cidades com população russa que têm pouco a ver com o chamado Cazaquistão”. “Gostaria que Astana não esquecesse que não levantamos questões territoriais nem discutimos com amigos e parceiros. Quanto ao resto – como, por exemplo, com a Ucrânia – tudo é possível”.

A classe dirigente do Kremlin atropela-se em declarações provocatórias. O presidente da Duma, Vyacheslav Volodin, ameaçou retomar o Alasca se os Estados Unidos congelassem ou confiscassem ativos russos. Medvedev, emitiu uma série de ameaças aos vizinhos do país, à OTAN e aos EUA.

Vyacheslav Volodin (Duma)

Em resposta a estas ameaças, o líder do Cazaquistão declarou que poderia usar rotas alternativas e retaliar de várias maneiras, incluindo a interrupção dos movimentos de carvão russo pelo território. Acrescentou ainda que o Cazaquistão se retirava do Acordo da Comunidade de Estados Independentes de 1995 sobre a Comissão Monetária Interestatal.

Com o Kremlin a retirar tropas de todas a frentes para reforçar a frente na Ucrânia, as ameaças militares parecem vazias. Fica por apurar o passo seguinte da fúria russa e como Tokayev vai melhorar um regime com pesada desigualdade social em que as elites cazaques e russas estiveram unidas desde 1991 em prosperar muito mais do que a generalidade da população. Afinal o fulcro dos regimes coloniais.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância.(LVII)

10 de junho de 2022 – Mendo Henriques

. Ucrânia e Vietname

.DISCLAIMER: Na infame invasão da Ucrânia, admiro e agradeço a atitude dos EUA e condeno o atual regime corrupto da Rússia.

 

Aparentemente, tudo separa o Vietname dos anos 1960 da Ucrânia de 2022: um estado sobretudo rural, nos confins do Sudeste asiático, e com uma longa história de identidade e resistência aos impérios vizinhos; e um estado moderno industrializado na Europa do Leste cuja independência é recente e na fronteira de impérios. Contudo, têm de comum terem sido invadidos por entidades imperiais, travando uma guerra para se defender; uma guerra bem-sucedida no caso do Vietnam contra a democracia EUA, e outra em curso contra a autocracia de Putin.

Em ambos os casos não houve declaração de guerra. Os EUA envolveram-se de forma gradual. A Resolução do Golfo de Tonkin de 7 de agosto de 1964 autorizou a escalada e o uso da força militar.  A Resolução assenta em relatórios de situação muito duvidosos do destroyer Maddox mas proporcionou ao presidente Johnson o que queria: um cheque em branco para uma guerra que considerou iria vencer nas suas palavras arrogantes “um pequeno país de quarta categoria de rabo esfarrapado.

Destroyer Maddox

No caso Putin, a mesma arrogância levou-o a desclassificar a Ucrânia como nação, a aceitar planos militares mirabolantes e a lançar uma “operação militar especial”, para recuperar o que considera russo. Um exemplo da marcha da loucura na história, conforme o título do livro da  historiadora Barbara Tuchman. Em que inclui o caso do Vietname.

Barbara TuchmanEm ambos os casos, os governantes revelaram o que se pode chamar dissonância cognitiva, um nome bonito para o “Não me venha confundir com factos”. Três presidentes americanos travaram uma guerra que não foi aceite como a “dos bons contra os maus”, desencadeando uma brutal crise de consciência nacional, e entre motins e protestos que fazem parte do direito de dissent na grande democracia americana. Quanto a Putin trava uma guerra em que a oposição formal está silenciada ou presa, mas em que crescem os protestos, vindos do interior e do exterior do regime.

Em ambos os casos, ambas as partes em conflito colocam condições para negociar a paz. Para os EUA, só haveria negociações após a punição do Vietname com a escalada de bombardeamentos e a contrainsurgência em terra. Para Hanói, só haveria negociações se além do fim dos bombardeamentos, o Vietcong integrasse o governo do Vietname do Sul. Por motivos semelhantes, Kiev insiste que sem evacuação russa dos seus territórios não há paz duradoura.

Três presidentes americanos, os seus gabinetes e as suas chefias militares tiveram a certeza de que poderiam forçar o Vietname do Norte a desistir da resistência, evitando confronto diretos com a China e URSS. A questão das armas nucleares não se colocou sequer. E todos falharam.

Primeiro o drama de Kennedy. Queria retirar do Vietnam, mas não teve a coragem pessoal e política de o fazer antes de tentar a reeleição. Teve uma boa oportunidade após triunfar na Crise de Cuba em outubro de 1962 e após o golpe de Estado em Saigão, em 1 de novembro de 1963 contra o presidente Diem e seu irmão Nhu. Dias depois era assassinado.

Robert Kennedy

Depois o drama de Lyndon Johnson cujo ego insaciável o levou a usar os plenos poderes, surdo a indicações. Dizia não queremos jovens americanos a lutar em vez de jovens asiáticos mas foi exatamente o que fez. Em meados de 1967, o general Westmoreland tinha 463.000 militares às suas ordens e pedia mais 70.000. Os adiamentos dos que frequentavam a universidades criou um sistema de recrutamento desigual para ricos e pobres. A mesma desigualdade existe na invasão da Ucrânia porque a maior parte da tropa de Putin vem dos confins da Federação e não dos russos étnicos de Moscovo ou Petersburgo.

1968 foi um ano de enorme violência nos EUA, com os assassinatos de Robert Kennedy e Martin Luther King, motins raciais, anarquia e reação de selvageria policial. Começou a espiral da compra de armas nos EUA que até agora não parou. Foi um ano de confusão espiritual segundo Luther King, pois os americanos sentiam-se pela primeira vez na história “os maus da fita”.

Finalmente, veio a dissonância de Nixon. Anunciou a retirada em junho de 1969. Em agosto, o primeiro contingente de 7.500 homens voltou para casa. Ho Chi Minh morreu em setembro, após cinquenta anos de luta. Em Outubro de 1970 Kissinger anunciou prematuramente que a paz estava à vista. Mas apesar de tudo isto, e de contínuas manifestações anti-guerra, Nixon fez um apelo à chamada maioria silenciosa e continuou a guerra estendendo o conflito ao Camboja e depois ao Laos.

No Natal de 1970, 12 dias de bombardeamento feroz reduziram Hanói e Haiphong a escombros.

Mao Zedong aconselhou os norte vietnamitas a iniciar conversações de paz . Começaram em Paris em janeiro de 1971. Após mais bombardeamentos e a chamada vietnamização da guerra, um acordo de paz foi assinado em 1973. A situação ficou muito semelhante aos Acordos de Genebra, de 1954 quando a França cedeu perante o Vietnam do Norte. Apesar de Kissinger ter aceite o prémio Nobel da Paz, Le Duc Tho recusou-o.

Não era ainda a paz. A conquista de Saigão pelo Exército Popular do Vietnam e o Viet Cong veio em 30 de abril de 1975, o início de um período que culminou na reunificação do Vietname.

Fez parte da marcha da loucura na história, subordinar o prestígio dos Estados Unidos à intervenção no Sueste Asiático, segundo a teoria do dominó para evitar a disseminação do comunismo. Quando a França perdeu a guerra da Indochina, o general Leclerc, herói da segunda guerra Mundial comunicou aos camaradas americanos que nem 500.000 militares no terreno conseguiriam derrotar os Vietnamitas.

E assim sucedeu. Em vez de reagir à guerra conforme os planos racionais dos estados-maiores, o Vietname reagiu humanamente. Defendeu-se teimosamente como uma nação, como os britânicos contra o Blitz alemão.

Tudo o que os Ucranianos até agora conseguiram, mostra que será como o Vietname. Após resistirem vitoriosamente à invasão de uma potência imperial, estão prontos para um primeiro acordo de paz.  Quanto à Rússia, está-se ainda a aguardar que apareça o Walter Conkrite russo, um “tio Vanya”, que diga a Putin temos de negociar a nossa saída, mas não como vencedores.

Amanhã é outro dia.

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Crónicas da Invasão da Ucrânia (LVI)

2 de junho – Mendo Henriques

. A guerra da segurança alimentar

O bloqueio dos portos do Mar Negro é a principal arma na guerra híbrida em grande escala que Putin move contra a Ucrânia e que está a criar uma crise alimentar global. Segundo David Beasley, diretor do Programa Alimentar da ONU: “Um país como a Ucrânia cultiva alimentos para 400 milhões de pessoas(…) O encerramento dos portos de Odessa é uma declaração de guerra à segurança alimentar global”.

David Beasley

A 14 de maio, os ministros dos Estrangeiros do G7 alertaram que é necessária “uma resposta multilateral coordenada para preservar a segurança alimentar global e apoiar os parceiros mais vulneráveis”.

A Ucrânia é um dos celeiros do mundo. Em 2019, produziu 35,9 milhões de toneladas de milho, 28,4 milhões de toneladas de trigo e ainda soja, óleos de canola e girassol. China, Índia, Estados Unidos, Indonésia e Brasil consomem grande parte da produção própria. Mas a Ucrânia com um PIB em 2021, de US$ 200 biliões, dos quais 166 biliões gerados na agricultura, tem muito para exportar. Com a invasão, perdeu metade das receitas de exportação, tendo 28 milhões de toneladas armazenados.

O trigo é crucial para o pão. Em 2020, a Ucrânia exportou 23,5 milhões de toneladas, em particular para países islâmicos.  Exportou 34 milhões de toneladas de milho, usado na alimentação animal, para a China, Espanha, Holanda, Egito e Irão.  Num mercado global já muito constrangido com problemas de produção, os preços globais do trigo duplicaram desde 2021, atingindo €400 euros por tonelada em 2022.

A alimentação é a questão política mais importante do mundo. Os governos querem alimentos a preços baixos. A escassez leva-os a proibir exportações. Os preços crescem e os mais atingidos são os países economicamente mais fracos.

É esta dimensão económica da guerra híbrida – título do manual de 2011 do comandante em chefe russo V. Gerasimov – que foi desencadeada pelo bloqueio russo do Mar Negro e de Azov, desencadeado  sob o pretexto de exercícios navais, a 13 de fevereiro. A marinha russa atacou 8 navios de carga, e afundou um estoniano. Além disso, minou os portos ucranianos, sendo que minas soltas atingem as águas territoriais da Mar Negro –Roménia, Bulgária, e Turquia.

Da produção ucraniana de 86 milhões de toneladas de cereais em 2021, cerca de 28 milhões estão retidas nos portos. Os cereais não se conservam para sempre e os agricultores ucranianos precisam de financiar as novas sementeiras e outros cuidados para a colheita do próximo ano.

A Ucrânia exportava 6 a 7 milhões de toneladas de cereais por mês.  Com a invasão, as exportações caíram 58%. O transporte ferroviário e rodoviário tem levado meio milhão de toneladas, através da Polónia e Roménia e poderá ir até 2 milhões, mas com atrasos dispendiosos devido a controlos de fronteira e sistemas de bitola. O Kremlin agravou a crise bombardeando e queimando depósitos de cereais no sul e leste da Ucrânia, e capturando centenas de milhares de toneladas de cereais.

Segundo o vice-ministro da Agricultura da Ucrânia, Taras Vysotskiy, do 1,5 milhão de toneladas armazenadas em território recém-ocupado, os russos tentaram reexportar 441.000 toneladas de cereais através do Bósforo para vários portos do Mediterrâneo. A Síria aceitou mas Chipre, Líbano e Egito recusaram-se a receber cereais roubados,

Os especialistas na economia russa – Karen Dawisha, Bill Browder, Catherine Belton e Anders Aslund – indicam que Putin está sempre envolvido em operações corruptas.

Ao investigar o caso Sergei Magnitsky, Bill Browder mostrou como o Kremlin opera. Dos US$ 230 milhões roubados ao fisco russo, os Panama Papers revelaram US$ 800.000 nas contas do presidente. O negócio de capturar e vender cereais da Ucrânia, está organizado ao mais alto nível do crime organizado. Desde 2014, que as empresas do Kremlin exportam carvão confiscado no Donbas.

Perante este desastre para o qual o mundo acordou tarde, o primeiro passo é reunir apoio internacional contra o bloqueio. Países como o Egito e Indonésia que não protestaram contra a invasão, estão agora a rever as suas posições. A única solução é abrir o porto de Odessa e a Assembleia Geral da ONU deveria exigir o fim do bloqueio naval no Mar Negro.

Em segundo lugar é preciso uma força-tarefa naval internacional para desminar águas costeiras e proteger os cargueiros. A coligação de estados dispostos a criar esse canal humanitário deverá incluir aliados na NATO e especialmente e Turquia com uma poderosa marinha de guerra. Na guerra de 2008, a Marinha norte americana garantiu a entrega de ajuda humanitária à Geórgia, sem criar uma escalada.

Com a guerra a continuar, a abertura dos portos é urgente para que milhões de pessoas não morram de fome e para a sobrevivência da Ucrânia.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (LV)

27 de maio – Mendo Henriques

. A guerra é mais que o dia a dia

 

Se fossemos medir uma guerra pelo que acontece em cada dia, ficaríamos convencidos que os aliados tinham ganho a Hitler em 9 de maio de 1940; que Hitler tinha ganho a guerra quando terminou a conquista de França em junho de 1940; que os aliados tinham ganho quando os alemães foram rechaçados de Moscovo em dezembro de 1941: e assim iríamos sucessivamente, de sobressalto em sobressalto, até ao desenlace final.

Tragicamente, as guerras não se medem no dia a dia, mas comparando objetivos pretendidos com obstáculos superados, o que custa muito sangue, suor e lágrimas.

A guerra da Ucrânia não é diferente das demais pois conta já mais pelo menos 50 mil mortos, entre civis e militares de ambos os contendores e mais de 150 mil feridos graves.

No terreno convém ser rigoroso no que se passa.

A 24 de fevereiro começou a invasão da Ucrânia, e nomeadamente do resto do Donbass ainda não ocupado pelas tropas de Putin, ou seja: o conjunto formado pelas grandiosas forças armadas russas, e ainda os contingentes de separatistas de Lugansk e Donetsk, os mercenários Wagner e chechenos.

A 25 de março o Kremlin anunciou a retirada dos exércitos da frente norte para se concentrar no Donbass.

A 18 de abril iniciou a tentativa do cerco do Donbas que, a pouco e pouco, se reduziu ao cerco do saliente de Severodonetsk. Desde há cerca de duas semanas que aqui realiza avanços de cerca de 10 a 20km em terreno aberto devido à esmagadora vantagem em armas pesadas de artilharia e lançadores de foguetes. Por isso a Ucrânia pede aos seus aliados a aceleração do envio deste tipo de armas.

Ao concentrar as forças e encurtar as linhas logísticas, a Rússia obtém alguns ganhos territoriais. As manchetes de 27 de maio indicam que os separatistas de Lugansk tomaram a povoação de Lyman, na estrada que conduz às cidades fortificadas de Sloviansk e Kramatorsk. Em Moscovo e nos grupos online pró-Kremlin, o avanço foi muito aplaudido; afinal, há três meses que não havia qualquer sucesso. Como aqui escrevi a 25 de maio, “mesmo que os invasores ocupem Lyman (provável),  Severodonetsk (possível) e Lysychansk (duvidoso), ficariam longe de ocupar todo o Donbas.

Se as tropas de Putin continuarem nesta senda, vai ter lugar a batalha por Severodonetsk, uma “Mariupol em microescala”. A conquista da cidade facilitaria à Rússia o controle de Lugansk, um dos objetivos apontados por Putin às tropas que cruzaram a fronteira ucraniana no final de fevereiro. Mesmo assim ainda teria de ultrapassar muitos cursos de água e terreno pantanosos e tomar as cidades fortificadas de Slovyansk e Kramatorsk, construídas ao longo de oito anos de guerra.

Atrás da linha da frente está o mais importante. Existem unidades de separatistas do Donetsk a recusar-se a participar na batalha do Lugansk. Os 104º e 105º regimentos estão em “greve militar”, invocando motivos administrativos.

O parlamento russo acaba de aprovar o decreto que permite a contratação para o exército atá à idade de 61 (sessenta e um) anos. O motivo invocado é obter “especialistas”. O motivo real é a falta de voluntários, apesar do salário de cerca de €3000 mensais (em rublos) quatro vezes o salário médio da Rússia. Os ainda mais duros que Putin continuam a invocar a necessidade de mobilização geral.

Raman Kadyrov (Getty images)

Raman Kadyrov, que se chama a si próprio o soldado raso de Putin, governante e senhor da Chechénia, multimilionário e senhor de três exércitos – a tropa comum, a guarda especial e os chamados assassinos de Delimkhanov – declarou que a Ucrânia é um “caso arrumado”. Agora “está mais interessado na Polónia”.

Delimkhanov

O historiador Timothy Snyder de quem a Bertrand acaba de reeditar Terras Sangrenta: entre Hitler e Estaline, escreveu há dias no New York Times o artigo “We should say it. Russia is fascist.” O título nem é adequado porque a Rússia de Putin não tem uma ideologia mobilizadora de massas; é antes um despotismo burocrático e o Kremlin até teve de inventar à pressa a narrat

Mas Snyder tem muita razão em afirmar que uma paz vitoriosa para os Ucranianos, e para os mais de 40 países do mundo livre que os apoiam, tem de ser preparada nos campos de batalha.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, LVIV

Mendo Henriques, 25 de Maio de 2022

. E S S A Y S BY U K R A I N I A N, Kyiv, 2019 (5)

 

Andriy Kurkov, o escritor ucraniano mais traduzido em inglês, além de outras trinta línguas conta que, no longínquo ano de 1966, tinha ele cinco anos, a família mudou-se para uma residência na estrada Novo-Hostomelske, nos subúrbios de Kyiv, em frente à fábrica de aviação Antonov.

Andriv Kurkov (Escritor)

O pai era piloto e a mãe era médica, de uma geração que não fazia distinções nacionais, porque se sentia “soviética” (SSSR, como se dizia.) Em 1973, a rua recebeu o novo nome de Tupoleva, como o engenheiro dos aviões. Para Kurkov, ambos os nomes significam o mesmo e ele continuará a escrever em russo. Em fevereiro de 2022 a rua foi bombardeada aquando da batalha pelo aeroporto de Hostomel. Os pais morreram há dois anos.

Numa breve passagem por Londres em abril, ao ser entrevistado, a aplicação do telemóvel que avisava dos bombardeamentos soou três vezes. “Muito útil”, explicou. “A esta hora , a minha esposa deve estar na cave”

Em 1991, a União Soviética foi dividida em 15 “ruas” separadas. Foi então que, para Kurkov, URSS e Ucrânia deixaram de significar o mesmo. URSS passou a ser um estado falecido, a Ucrânia um estado vivo. O grande problema é que a Federação Russa, pelas mãos de Putin ainda professa valores da era soviética, incluindo o “sistema de governo de partido único” e a “nação uniforme”.

E há uma inércia quase invencível na perceção estrangeira do território da ex-URSS. Ainda se olha para ela como uma área uniforme e com uma mentalidade. Quanto maior a distância geográfica da URSS mais forte é essa inércia. Tanto se encontra na Índia, onde a noção da “cultura soviética” ainda está viva como na Itália, nos círculos dos intelectuais de esquerda.

E contudo, diz-nos Kurkov, há muito que ucranianos e russos são diferentes, uma diferença que se enraíza em duas matrizes históricas diferentes que criou duas sociedades e dois estados diferentes.

A matriz histórica da Rússia é o czar.

Os seus habitantes sempre tiveram uma unificação em torno de um czar ou sua sombra  Mas a ideia também levou a um culto ao czar,não dinástico, ou antidinástico (Lenine, Estaline, Putin). Por vezes, os russos cansaram-se do czar, mataram-no e passaram a adorar o próximo. Tanto o regicídio quanto a divinização presumiam envolvimento de massas.

O território da Ucrânia abandonaram o sistema de príncipe-feudal em favor da sistema hetman-cossaco. Além disso, essa aversão à monarquia e ao poder em geral criou uma democracia de matriz anárquica na sociedade ucraniana dos séculos XVI-XVII.

Essa matriz renasceu na sociedade ucraniana após o colapso da União Soviética, quando passaram à história o coletivismo e a devoção ao secretário-geral do Partido Comunista.

Os ucranianos estão dispostos a participar das eleições e lutar pela vitória do seu candidato mas, tempos depois, começam a lutar contra ele. Os ucranianos esperam por um milagre e quando o milagre não ocorre imediatamente após a eleição, começa a insatisfação e a indignação populares. E passam a odiar quem elevaram ao poder.

A tradição de eleger os hetman que, conforme a situação, eram comandantes em chefe ou chefes de Estado, acostumaram os cossacos ucranianos à ideia de eleger «governantes. Na Rússia, pelo contrário, as pessoas acreditavam que o “czar é por graça de Deus”.

Em um país com eleições, há escolha, intriga e alianças que determinam o futuro. Em um país onde “o czar é de direito divino”, não há escolha e as potenciais intrigas e alianças são combatidas de forma sangrenta e brutal, mesmo antes de emergirem.

A sua explicação da guerra que a todos surpreendeu é o facto de muitos dos dirigentes ocidentais mantinham uma atitude positiva em relação à Rússia por razões económicas. Queriam os seus países a negociar com a Rússia ( e nalguns poucos casos a negociar com eles mesmos).

Jamais lhe passou pela mente que Putin prejudicaria essa relação. Mas de repente, Putin deitou fora toda a racionalidade, cospe em milhares de soldados mortos… Só lhe interessa entrar para a história como o homem que tornou a Rússia de novo grande, que recriou a União Soviética. Enquanto não estiver morto, a guerra continuará.”

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (LVIII)

24 de maio – Mendo Henriques

. Os que gritam, os que choram e os que lutam

 

Entrámos no quarto mês da guerra. Entre os que gritam está o primeiro-ministro Orban que declarou hoje o estado de emergência na Hungria, horas depois do Parlamento aprovar uma emenda constitucional que permite governar por decreto em situações como a de guerra em país vizinho.

Na reunião da CPAC em Budapeste de celebridades da direita republicana dos EUA, com vídeomensagem do ex-presidente Trump, Orban afirmou que o poder requer a construção de media e instituições próprias. E, sobretudo, abandonar as regras políticas correntes e “jogar de acordo com as nossas próprias regras”. Mais claro é impossível.

Outro dos que se juntou ao coro dos que gritam para a Ucrânia entregar território a um Putin insaciável é Henry Kissinger.

Kissinger com Putin

Esse estranho imperialista norte-americano pediu ao Ocidente que não submeta as forças russas a uma derrota esmagadora. Tal humilhação teria consequências desastrosas para a estabilidade a longo prazo da Europa. A este veterano da geopolítica não lhe interessa distinguir entre Rússia e Putin. Não quer saber da opressão da sociedade russa. Podemos contar com ele para estar do lado errado, desde a sua tese sobre o Congresso de Viena, em que defendeu a reação e a Santa Aliança, até ordenar o bombardeamento do Camboja como secretário de estado de Nixon

Entre os que choram estão as dezenas de milhar de vítimas ucranianas, civis e militares; e as famílias dos vinte mil soldados russos mortos em combate, além das dezenas de milhares de feridos. Sabemos infelizmente como as guerras prosseguem no mundo, desde o Iémen ao Sahel e que o sangue derramado tem a mesma cor em toda a parte. Vemos crescer as vítimas do conflito civil nos EUA, a “guerra porta a porta” onde numa semana há 14 assassinados no estado de Nova Iorque e, na semana seguinte, 14 mortos numa escola do Texas. As vítimas da guerra russo-ucraniana não são diferentes das de outras guerras; mas nesta, há uma oportunidade de mudar o curso da história, derrubando a tirania de Putin.

Entre os que lutam há russos e ucranianos. As forças russas estão a fazer um esforço com algum sucesso no saliente de Popasna para tentar fechar o cerco ao saliente de Severodonetsk.

O general Gerasimov enviou as forças separatistas de Donbas para Kharkiv, para tentar conter os esforços da Ucrânia em libertar a região ao redor da cidade até a fronteira. Mas nestas pequenas ofensivas, as forças de Putin perdem uma quantidade de tropas e equipamentos, apenas conseguindo ocupar fatias de terreno estrategicamente irrelevantes. Mesmo que ocupem Lyman (provável), Severodonetsk (possível) e Lysychansk (duvidoso), ficariam longe de ocupar todo o Donbas.

As fortalezas de Slovyansk e Kramatorsk, construídas ao longo de oito anos de guerra, parecem estar além das atuais capacidades russas.

Talvez a Rússia se detenha em Lyman, Severodonetsk e Lysychansk e queira declarar missão cumprida. Talvez queira afirmar que o plano era esse desde o início; que só queria uma ponte terrestre no sudeste da Ucrânia, entre o Donbas e a Crimeia. As suas forças têm estabelecido posições defensivas em território capturado a precaver-se contra a esperada contra-ofensiva que terá lugar logo que o general Valeriy Zaluzhny, chefe do Estado Maior das Forças Armadas da Ucrânia, considerar reunidas as condições.

General Valeriy Zaluzhny

 

E esta paragem é o momento certo para pedir ao coro dos negócios ocidentais que clame em uníssono por um cessar-fogo; assim Putin poderia negociar as conquistas e “salvar a cara”.

A determinação do governo norte americano e de quem mais pesa na Europa deverá impedir este resultado. A corajosa senhora Ursula von der Leyen denunciou em Davos como Putin usa os alimentos como arma global, da mesma forma que usa o setor da energia. O secretário de Defesa Austin garantiu o continuado envio de armas pesadas para Ucrânia, armas que fazem a diferença para os que lutam.

A Dinamarca vai entregar mísseis antinavio Harpoon que podem ser lançados de terra. Com um alcance de 120 km, não alcançam a base naval de Sebastopol, a 300km de Odessa, mas ameaçam os navios russos que se aproximam da costa para lançar mísseis de cruzeiro. Os Harpoons poderão afastar da guerra a Frota do Mar Negro e impedir mais um lote de vítimas.

Harpoon

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (LVII)

23 de Maio – Mendo Henriques

 

. A sabedoria da oposição russa

 

Alexey Navalny escreveu hoje, 23 de maio, na TIME: “Talvez a verdadeira missão de Vladimir Putin seja ensinar (…) Ele lembrou mais uma vez que um caminho que começa com “um bocadinho de manipulação eleitoral” termina sempre em ditadura. E a ditadura leva sempre à guerra. É uma lição que não deveríamos ter esquecido.” Um pouco mais à frente, diz: Putin ensina como anular os ganhos económicos obtidos em 20 anos.

Alexey Navalny

Para perceber a amargura, a revolta, a coragem e a determinação que se escondem por detrás desta avaliação de um dos governantes mais manipuladores da história russa, é preciso ter em conta a sabedoria da nação. Uma sabedoria em que o humor negro é, muitas vezes, a única maneira de ultrapassar a desgraça sem cair no ódio. Como no conto O nariz de Gogol. Ou O idiota de Dostoyevsky.  Ou os poemas de Mayakovsky .

Navalny lembra com amargura como os dirigentes mundiais falaram hipocritamente durante anos sobre uma “abordagem pragmática” e os benefícios do comércio internacional. Na realidade, sabemos do que se passou com o chanceler Schroeder, os italianos Berlusconi e Renzi, o francês Fillon e muitos outros da ala dos negócios europeus que se beneficiaram do petróleo e do gás russos, enquanto Putin se fortalecia.

Navalny lembra também a estupidez e as vistas curtas desses dirigentes. Entre sanções e ajudas militares e económicas, esta guerra custará centenas de vezes mais do que aqueles lucrativos contratos de petróleo e gás, cuja assinatura costumava ser celebrada com champanhe.

No ano passado foi envenenado com o sinistro Novichok. Tratado na Alemanha, regressou ao seu país, sabendo que ia ser preso; não quis abdicar da missão de liderar a oposição. Foi logo detido e em março deste ano, a máquina corrompida dos tribunais do regime condenou-o a 9 anos numa colónia penal de segurança máxima.

Após a sentença escreveu no Twitter. “9 anos. Ok, como dizem os personagens da minha série favorita de TV, “The Wire”: “Na verdade, são só dois dias. O dia em que se entra e o dia em que se sai“. Até estampou a frase numa T-shirt. Mas as autoridades prisionais, que não brincam em serviço, confiscaram-na, considerando-a propaganda extremista.

Juntamente com o dirigente e historiador Vladimir Kara-Murza – agora também preso desde abril de 2002 – Navalny herdou de Boris Nemtsov,  ex-vice-primeiro-ministro de Boris Yeltsin, a liderança da oposição russa.

Boris Nemtsov

No início de 2015, Nemtsov estava a preparar um relatório sobre a participação de tropas russas na luta dos rebeldes no leste da Ucrânia, o que o Kremlin negava. Já escrevera relatórios sobre Putin e Gazprom, Putin e a Crise, Putin e as Olimpíadas de Sochi. A 28 de fevereiro de 2015 foi assassinado a tiro, pelas costas quando caminhava pela Moskvoretki Bolshoi (Grande Ponte de Pedra) nas imediações do Kremlin. Tinha 55 anos.

“Ponte Grande” a Moskovoretk Bolshoi

O inquérito foi aberto mas sendo a Rússia o que é, só havia uma certeza, como escreveu Julia Ioffe: nunca se conheceria o verdadeiro mandante do crime. Foram identificados cinco chechenos, um deles ligados a Ramzan Kadyrov; foram e condenados a penas entre 11 e 20 anos. O assassino principal continuou à solta no Kremlin. Restam poucas dúvidas das ligações ao FSB. De acordo com a Bellingcat, Nemtsov foi seguido antes do assassinato pela mesmo grupo do FSB que depois também seguiria Kara-Murza, Dmitry Bykov e Navalny antes dos respetivos envenenamentos.

Putin declarou na altura que a morte “tem a marca de um assassinato encomendado e pode ser uma provocação“. Sendo a Rússia o que é, o presidente assumiu pessoalmente as investigações sobre o assassinato, como indicou o impagável Dmitri Peskov que continua a ser o porta-voz do Kremlin. O humor negro da nação é impagável.

Perante este regime de mentira orquestrada, 1984-2.0, só a coragem e a firmeza de dirigentes como Navalny poderão valer.

Alexei Navalny termina assim a sua nota da TIIME sobre Putin: “A questão principal – como parar um doido malvado que tem um exército, armas nucleares e é membro do Conselho de Segurança da ONU – ainda não foi respondida.”

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (LVI)

22 de maio – Mendo Henriques

. Só há paz sem Putin

 

Com violência implacável, Vladimir Putin invadiu a Ucrânia, destruindo um a um todos os pilares diplomáticos, económicos e políticos que garantiram a paz na Europa durante mais de setenta anos. Mas a deterioração no regime do Kremlin está a obrigá-lo a medidas desesperadas perante as quais será determinante a firmeza das mais de 40 nações livres que apoiam os bravos ucranianos.

Na Ucrânia invadida, a grande batalha anunciada de conquista do Donbas não aconteceu porque o exército russo já não tem capacidade para tanto. O que vemos é uma guerra de posições, a disputar pequenas vilas e ainda os bombardeamentos com todos os tipos de armas – desde morteiros de curto alcance a mísseis de cruzeiro – a alvos civis não só no Donbas como em Odessa e Mikolayv e agora, de novo, na frente norte.

A máquina russa todos os dias emperra um pouco mais. O Ministro dos Transportes confessou sérios problemas de logística por causa das sanções. “Essas sanções quebraram toda a logística do nosso país. E somos obrigados a procurar novos corredores logísticos.” Um desses corredores logísticos, na dúplice linguagem do Kremlin, é fornecido por empresas de fachada que operam no Cazaquistão e outros países e para onde algumas indústrias ocidentais enviam os seus produtos.

A máquina financeira está a quebrar. A Rússia gasta mais de 300 milhões de dólares por dia com a guerra; é o dobro das despesas anteriores em defesa, segundo o Ministério das Finanças divulgado pelo The Moscow Times

Entre janeiro e final de abril de 2022, o orçamento russo destruiu 681 triliões de rublos (US$ 24,6 biliões) em gastos militares. É o triplo do que gasta em educação, mais do dobro do que gasta em saúde e 10 vezes o valor para conservação e gestão ambiental que inclui também a proteção civil.

Face à deterioração, Putin usa a guerra pelo terror. Como afirmou ao Tagesspiegel  Rüdiger von Fritsch,  ex-embaixador alemão em Moscovo, a propósito do seu livro lançado a 17 de maio, Zeitenwende: Putins Krieg und die Folgen, Putin tenta criar com a invasão do celeiro da Europa uma crise de fome no Médio Oriente e Norte da África. Sabe que assim cria um novo fluxo de refugiados e aumenta a pressão para os europeus desistirem da firmeza em relação à Rússia.

Livro Putins krieg und die FolgenUm dos mais nojentos estadistas europeus, o ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi acorreu a aceitar esta chantagem e afirmou no Corriere della Sera que a Europa deve forçar a Ucrânia a aceitar os termos de Putin. “Acredito que uma Europa unida deve fazer uma oferta de paz, tentar persuadir os ucranianos a aceitar as exigências de Putin.”

Estas propostas correspondem a uma ofensiva concertada das forças da direita globalista; a parcela dos republicanos dos EUA ainda obediente a Trump atrasou durante uma semana no Congresso a lei do Lend-Lease e vai realizar em Budapeste a sua reunião de doadores da CPAC, apoiando Órban.A resposta da Ucrânia e dos aliados europeus e norte americanos a este pedido de suicídio será a mesma que deram ao Moskva quando tentou invadir a ilha das serpentes, antes de ser afundado em abril.

Existem muitos registos sobre cereais roubados e traficados pela Rússia. Um país como o Egito recusou, com muita dignidade, um navio russo carregado de cereais roubados na Ucrânia. O único modo de resolver a crise mundial produzida por Putin é terminar o bloqueio de Odessa.  A Estónia sugeriu trazer navios da NATO para o Mar Negro a fim de desbloquear portos ucranianos. Os portos da Turquia, Bulgária e Roménia poderão ser usados para apoiar a escolta de graneleiros a partir de Odessa.

A correlação atual de forças políticas na Europa e nos Estados Unidos  aceitará que é a Ucrânia a decidir os termos da paz pela qual luta. “A guerra deve terminar com a restauração da integridade e soberania territorial da Ucrânia”, é a posição. Esta nova fase da guerra está cada vez mais a revelar que o único obstáculo a esta paz é Putin. Só há paz, sem Putin.

Amanhã é outro dia

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (LV)

21 de maio- Mendo Henriques

 

. Yuri Shevchuk – Ventros de mudança

 

Sábado, 21 de maio, ficou marcado como o dia em que o nosso primeiro-ministro, após reuniões em Kyiv com o presidente Zelensky e o primeiro-ministro Shmyhal, anunciou 250 milhões de euros de ajuda à Ucrânia. Ações e não só palavras. Bravo.

No mesmo dia, o general Mark Milley, CEMGFA dos EUA, em discurso aos graduados da Academia Militar de West Point, anunciou que a América está perante tempos perigosos pois enfrenta duas potências mundiais, a Rússia e a China. Dois dias antes falara com o seu congénere V. Gerasimov, um dos responsáveis da invasão da Ucrânia, em que muito terá dito sobre a relação de forças.

General Mark Milley

António Costa com Zelensky

A 18 de maio, na longínqua cidade de Ufa, na rota do Transiberiano e perto das encostas dos montes Urais, um cantor Yuri Shevchuk interrompeu o concerto a que assistiam

Yuri Shevchukdez mil pessoas, para denunciar a invasão e depois clamar Quem precisa de cuidados não é o traseiro de Putin, mas a nossa Pátria. Foi aplaudido e os telemóveis enviaram o momento a todo o mundo.

No fim do concerto foi detido. No dia seguinte foi levado a tribunal, mas, ao abrigo do art.º 51 da Constituição, recusou-se a testemunhar os factos. Foi multado e seguiu para casa em S. Petersburgo. A Rússia é um país diferente.

O protagonista destes eventos é Yuri Shevchuk, de 65 anos, possivelmente a figura maior da música russa, a compor, tocar e cantar desde os anos 1980, baladas/rock sobre a liberdade, a libertação espiritual e política, e como criar uma nova Rússia democrática.

Com a guerra a durar, e o general Mark Milley a discursar, parece um momento estranho para fazer esta pergunta: o que será necessário para haver democracia na Rússia?

Yuri Shevchuk é o equivalente russo de Bono, mas sem indústria musical por detrás. Ou um cruzamento português entre Zeca Afonso e Zé Cid. Mas não é a mesma coisa.

Naquelas bandas, o rock é sinónimo de democracia porque nos tempos soviéticos era uma “forma nociva de decadência capitalista”. Era banido e tornava-se clandestino, underground, uma voz de desafio, um pedido de ajuda e um símbolo de liberdade.

Veio 1991, desapareceu a URSS e Shevchuk continuou como o vocalista e genial compositor da banda underground DDT (como o pesticida, sim). Cantava agora no ambiente do capitalismo selvagem, em que os oligarcas exploraram em seu proveito a privatização dos bens nacionais.

Nessa década, a maioria dos russos tinha liberdade, mas não tinha dinheiro e a mensagem de Shevchuk parecia mais lírica. Muitos diziam que a Rússia não está pronta para a democracia e democracia na Rússia equivale a caos. Uma coisa era certa: vivia-se um trauma coletivo, o pior inimigo da democracia. Os traumatizados afastam-se entre si. Os laços da vida social quebram-se.

Foi então que veio Putin a recriar uma identidade comunitária por meio do patriotismo, do orgulho nacional, da repressão interna e da violência externa. As guerras na Geórgia, no Donbas, e a anexação da Crimeia visavam recriar o império perdido, reconstruir o orgulho. Mas os meios só causaram mais traumas e Yuri Shevchuk voltou a brilhar e tornou-se ainda mais popular.

A 18 de maio, Shevchuk explodiu e já outros lhe seguiram as pisadas num concerto em S. Petersburgo, a 20 de maio com a multidão jovem a gritar “F*** Putin”.

A sociedade russa está a despertar aos solavancos do pesadelo da violência. Mas existirá um caminho a seguir para a democracia, ou é um ideal sem esperança, o reino de uns ativistas que arriscam as vidas por um sonho?

Que democracia poderá ser construída na sociedade russa, para curar as feridas nacionais e coletivas?

A democracia não se exporta nem se importa; como disse Yuri Shevchuk quando se recusou a fazer concertos nos EUA na década de 2010: Nós resolvemos estas coisas entre nós.

Amanhã é outro dia.

Video do concerto de Ufa, 18 de maio

https://twitter.com/i/status/1527537858306883585

 

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (LIV)
19 de maio 2022- – Mendo Henriques
. A história nunca é o que parece

Suécia e Finlândia entregaram pedidos formais de adesão à NATO, em mais uma reviravolta política causada pela invasão, pondo termo a uma neutralidade que
datava de 1945.

Após ser satisfeito o presidente Erdogan – que aproveita esta oportunidade
para consolidar o seu poder ameaçado pela crise política e financeira da
Turquia – a adesão dos dois países nórdicos fará do Báltico um lago ocidental.

O ” Tempo das Perturbações” dos atuais senhores do Kremlin ficará mais curto.
Essa é a parte da história viva que se registará nas próximas semanas.

A outra parte oculta é ainda mais curiosa pois afinal é da Suécia e da
Finlândia que provém o nome e a realidade da Rússia.
Quem tem direito a chamar-se “Rússia”?

Entre os ucranianos, diz-se  o nome de “rus”a Rússia “roubou”
o nome de “rus” à Ucrânia. Mas segundo Serhii Plokhy,
um dos grandes historiadores ucranianos, o assunto é mais
complexo.

A história nunca é o que parece. Tanto os príncipes de Vladimir,
Moscovo e outras “cidades-estado” do que mais tarde se tornou a Rússia,
como os senhores das terras ucranianas, chamavam-se príncipes de
Rus.
Em rigor, quem primeiramente tem direito ao nome Rus’ são os
suecos e finlandeses, mostra Plokhy. O nome vem do finlandês e significa
“remador”. Assim eram chamados os vikings que desciam com os seus
navios os grandes rios como o Dnieper e fundaram principados como
Novgorod e Kiev. Os vikings que saquearam a Grã-Bretanha e França, e
criaram estados nesses territórios, vieram da atual Noruega. Os vikings
que ajudaram a criar a Ucrânia vieram da Suécia (a Finlândia não tinha
existência separada).
A dinastia Rurikid, filhos / descendentes de Rurik, foi fundada pelo
príncipe viking que se estabeleceu em Novgorod em 862. Após a conquista
de Kiev por Oleg de Novgorod em 882, criou-se a dinastia Rus de Kiev. Os
Rurikids, descendentes de Yaroslav, o sábio, governante em Kiev, eram, de
facto, “Yaroslavychi” e uniram tribos diversas sob um nome e um chefe
comum. Só mais tarde transferiram essa identidade “Rus” para o povo que
governavam.

Passaram dois séculos e surgiram os principados sucessores de
Vladimir-Suzdal, Ryazan, Smolensk, Galicia-Volhynia (após 1199),
Chernigov e o Grão-Ducado de Moscovo.
Ivan o Grande uniu esses principados no Grão-Ducado de Moscovo
e a sua dinastia governou até 1610 e o Tempo das Perturbações, após o
que foram sucedidos pelos Romanov.

Como havia Rurikids em Moscovo, Novgorod e Kiev, todos tinham direitos
ao nome.
Então, “Rus” começou como um termo dinástico mas tornou-se uma
designação étnica. No século XVI, fala-se de guerra entre os Rus' da
Comunidade Polaco-Lituana – e os “russos” que no futuro se tornariam a
Rússia, chamada Moscóvia no ocidente. As duas partes acreditavam que
tinham direitos na sucessão de Kiev. Nascem então as reivindicações
moscovitas não porque quisessem o território de Kiev, mas porque
queriam o controle sobre Novgorod. “Se descendemos de Kiev, também
temos direitos sobre Novgorod.”
O nome Rússia, forma grega da palavra Rus', popularizou-se após o
Tratado de Pereyaslav de 1654.

E uma das figuras que mais contribuiu para o divulgar foi
Theophan Prokopovych, que nasceu em Kiev e é considerado o mais
importante autor ucraniano do Antigo Regime, um padre António Vieira
ucraniano, se quisermos uma analogia portuguesa.

Theophan ProkopovichAntes da batalha de Poltava ganha pelo czar Pedro I contra os
invasores suecos em 1709, Theophan Prokopovych falava de Dnipro
“Rossia” e de Kiev “Rossia”. Mais tarde, mudou-se para S. Petersburgo, e
tornou-se um ideólogo do absolutismo, passando a falar de uma só Rússia,
termo que chegou ao nosso tempo.
O absolutismo era a tendência que ganhava velocidade na Europa.
Quem não o seguia, perdia o estado, como foi o caso da Comunidade
Polaco-Lituana, sucessivamente partilhada entre Rússia, Áustria e Prússia
ao longo do século XVIII.
E assim voltamos ao presente. O absolutismo teve o seu último eco
nesta invasão da Ucrânia, um caso extremo de recolonização
extemporânea, um delírio de Putin para a criação da Grande Rússia
inspirado nas teses de Alexander Dugin.
Amanhã é outro dia.

NB: Ver o artigo “As Duas Rússias de Theophan Prokopovych”, do
historiador Serhii Plokhy no livro As Origens das Nações Eslavas.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (LIII)

18 de maio – Mendo Henriques

. A guerra e a identidade

A canção Stephania levou a Ucrânia a ganhar o festival da Eurovisão, já pela terceira vez, levantando a questão da identidade nacional ucraniana.

Escreveu Peter Pomerantsev em 2019 que uma das grandes curiosidades da Ucrânia é que poucos a sabem situar.

Peter Pomorantsev

Para o déspota Putin, é uma extensão da Rússia neo-czarista. Para outros, é mais um estado da Europa Central, uma Polónia com nacionalismo frustrado, com uma língua demasiado semelhante ao russo e sem instituições estatais fortes.

Segundo o Centro de Sociologia Nestor, o sistema de valores dos ucranianos rejeita o modelo russo paternalista da autoridade e o estilo estatal burocrático da Europa Central. Em alternativa, os ucranianos inclinam-se a fomentar laços de sociedade civil, família e igreja e pequenas empresas, o que os coloca na tipologia de países mediterrânicos como Itália e Grécia.  Igor Pomerantsev, pai de Peter, nascido na Ucrânia soviética, com língua russa, de inspiração austro-húngara e tornado cidadão britânico, antecipava estas conclusões em 1977: a Ucrânia swria parte de “um Mediterrâneo maior: num mapa, Kiev está algures perto de Alexandria.

Igor Pomerantsev

A Ucrânia seduz e confunde porque nela coexistem várias identidades. Tem uma parcela de identidade russa, mas não como a Rússia; é Europa Oriental, mas não como a Polónia; o seu Mediterrâneo não é o da Grécia. Uma tal polifonia confunde quem a quiser ver em coordenadas cartesianas. A Ucrânia rompe com os modelos habituais de identidade.

O bilinguismo nacional destrói a ideia convencional de que a linguagem faz a nação. Num país maioritariamente cristão ortodoxo, as minorias muçulmanas e judaicas sempre se ajudaram. O nacionalismo agora está com a democracia liberal, mas já esteve paredes meias com o fascismo.  É um país onde se desenrolam simultaneamente histórias muito diferentes do passado.

Enquanto países mais desenvolvidos têm colapsos nervosos para equilibrar a identidade com as flutuações da globalização, a Ucrânia há muito mais tempo negoceia os paradoxos de não ser uma nação linear. Neste sentido, está na vanguarda do presente.

Segundo Andriy Kulakov, a Ucrânia é ainda terra incógnita, até mesmo para os próprios ucranianos.

Apesar dos trágicos e emocionantes acontecimentos que a trouxeram para o centro das atenções do mundo, é ainda terra desconhecida, do ponto de vista geográfico, histórico e cultural. Aos próprios ucranianos custa-lhes entender o que lhes sucede e quais as razões para as suas derrotas e vitórias. Estavam à procura da singularidade numa massa de eventos de diferentes épocas, estados, etnias, religiões e sentimentos até que a invasão de Putin veio consolidar a identidade.

A Ucrânia não é apenas cultura tradicional rural com os cossacos, danças hopak e camisas bordadas vyshyvanka, mas uma sociedade tecnológica e urbanizada. Sofreu durante decénios com os oligarcas, mas tem serviços estatais informáticos modernos e indústrias de vanguarda de IT, hightech, moda e publicidade.

Tinha construído o maior avião do Mundo, até os invasores o destruírem no aeroporto de Hostomel. Mas bastará retomar os planos de construção e o Antonov An-225 Mriya voará de novo.

Antes da invasão de 2022, caso se fizesse uma sondagem à ignorância mundial, a Ucrânia seria a sopa Borchst, o futebolista Shevchenko, o Klitschko do boxe, o desastre de Chernobyl e, mais esperançosamente, a revolução de Maidan.

Ia-se ouvir falar de corrupção, emigrados e guerra no Donbas. Poucos saberiam que na Ucrânia nasceram o pintor futurista Malevich, o escritor Gogol, o imperador Francisco José, o filósofo Hryhorii Skovoroda, ou o poeta Paul Celan. Poucos teriam ouvido falar de Zelensky.

Agora, após quase três meses de guerra com vitórias contra a segunda potência nuclear mundial, o mundo aprendeu o que é a identidade ucraniana.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (LII)

17 de maio- Mendo Henriques

. A Europa e o “nervo da guerra”

 

Antes de 24 de fevereiro, os dirigentes da União Europeia nunca pensaram que iriam ter de reverter as políticas dos últimos 30 anos. Mas quando começaram os bombardeamentos da Ucrânia ficou à vista de todos que a Europa pagava a Putin cerca de um bilião de euros por dia pelo gás, petróleo e carvão; que o dinheiro da Europa era o nervo da guerra e da repressão interna em Moscovo; e que a paz só chegaria quando fossem fechadas essas torneiras que alimentam a oligarquia de Putin.

Vale lembrar que a União Europeia começou pela energia com a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), em 1951.

Mas chegou-se a 2007 e a energia era ainda apenas uma “competência partilhada”, ou seja, decifrando o linguajar europês: cada Estado fazia o que queria, e decidia sobre o seu pacote energético.

Em 2006 e 2009, a Rússia cortou o gás para a Ucrânia. Tudo ficou calado.

A Alemanha decidiu sozinha em 2011 abandonar o nuclear e aceitar o gasoduto Nord Stream 2 construído pela Gazprom. 40% das importações de gás da Europa viriam da Rússia.

Gasoduto Nord – Stream 2, mapa elaborado por Deutsche Welle

Em 2014, as sanções à Rússia, após a anexação da Crimeia deixaram de fora as energias. Em 2015, a Gazprom juntou-se à anglo-holandesa Shell, a Eon da Alemanha, à francesa Engie. e a OMV da Áustria para terminar o Nord Stream 2.

O negócio da energia seguia de vento popa e, dando um salto para 2021, a Comissão Europeia apresentou a proposta sobre “taxonomia verde”, a 31 de dezembro. Ia alcançar a “soberania energética” tendo o nuclear e o gás como “energias verdes”.

França, grande produtor de nuclear via uma grande oportunidade de vender a energia “mais descarbonizada e soberana”. A Alemanha, queria reduzir a dependência da Rússia em 2021 com 42% de energia renovável e 27% de carvão.

A Comissão Europeia é a guardiã do “interesse geral” da Europa, mas muitas vezes apenas pode deixar rolar a negociação interestatal. Na questão do gás a França cedia à Alemanha e esta cedia à França na energia nuclear. São “interesses nacionais” consagrados na “taxonomia verde”.

A “soberania energética” é um acordo que sacrifica a sobrevivência da Europa no altar dos interesses financeiros: a questão do aterro dos resíduos nucleares foi ignorada, e as emissões de gases de efeito estufa geradas pela extração de gás fóssil consideradas insignificantes.

Como declarou o Comissário Europeu para o Mercado Interno, Thierry Breton, em 9 de janeiro de 2022: as novas centrais nucleares europeias exigirão um investimento de 500 biliões de euros até 2050; inserir a energia nuclear na “taxonomia verde“ ajuda a indústria a atrair investimentos, com uma redução nos custos do capital.

A decisão da Comissão Europeia servia uma vez mais a concorrência entre capitais. Uma vez mais, desprezando avisos do Livro Verde, ia-se criar condições mais favoráveis para a circulação transnacional de capital. Quanto ao território, à terra comum, ao planeta, logo se veria.

Estava tudo nisto quando veio o choque da invasão. Em mais uma cimeira de pompa e circunstância em Versalhes a 11 de março, os estados europeus acordaram reduzir a dependência em relação aos combustíveis russos. Mas não ficou claro se este compromisso também se aplicaria a encomendas do passado, sendo que a maioria dos contratos tem duração de 10-15 anos.

Na cimeira de Versalhes, nada se disse sobre todos esses contratos e compromissos privados de gás de empresas privadas europeias na Rússia: a menos que fosse um desejo de encobrir o segredo comercial. O grupo húngaro MVM assinou um contrato com a Gazprom, em setembro passado, que vai até 2036.

Com o cataclismo ucraniano, as políticas europeias dos últimos 30 anos estão a mudar de modo radical: nas energias, no comércio externo, na transferência de tecnologia e na mão-de-obra. Vai ter de ser uma mudança gradual para que a Europa central e do norte não esteja a morrer de frio em novembro, com o general Inverno.

E vai ser difícil porque na União Europeia a lógica dos estados combina-se com o lobby das grandes empresas; durante anos a fio, as grandes empresas russas compraram os serviços de antigos dirigentes europeus como RenziFillonSchröder.

Berlusconi, Orbán e os ingleses nem precisavam de ser comprados.

Desta vez terá de doer, para muitos. A Europa só vencerá se o preço político cair muito mais sobre as empresas do que sobre os contribuintes.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (LI)

16 de maio – Mendo Henriques

. O teste do algodão

 

Estamos no 83º dia da invasão da Ucrânia.

As tropas ucranianas em contraofensiva na região de Kharkiv atingiram a fronteira russa. 260 feridos heroicos de Azofstal estão a ser evacuados mediante uma troca com prisioneiros. A ofensiva russa no Donbas parece emperrada.

Militares feridos de Mariupol retirados

Putin marcou manobras militares para o Kazaquistão no outono.

Por entre a miríade de acontecimentos da guerra e a perda constante de vidas, o que continua em jogo é simples.

De um lado, uma agressão de uma brutalidade e estupidez fora do comum, que aplica métodos de intimidação já praticados nas guerras da Chechénia e na Síria. Do outro lado, um povo que resistiu apoiado pelos amigos da liberdade, e que pegou nas armas para defender a sua terra e liberdade.

É uma guerra entre princípios, muito mais que uma guerra entre nações.

Perante esta guerra entre princípios, continua a haver muita gente situada na esquerda e na direita que se habituou ao simplismo e a quem é preciso aplicar o teste do algodão. Seguem velhos hábitos de pensamento, ignorância, amnésia e muita preguiça, ao vociferar que o inimigo está todo só de um lado. É mais fácil imaginar que de um lado está o bom, do outro o Inimigo. Não sabem o que é lutar em duas frentes. Não é confortável. Mas é para isso mesmo que há princípios.

Putin tem muitos apoiantes entre a direita global e a extrema-direita. Existe uma estreita ligação entre regime de opressão interno e invasão externa: uma ditadura que persegue e por vezes assassina os opositores, e proíbe a sociedade civil, também não tolera a existência de sociedades livres nas suas fronteiras.

O apoio de Putin a Lukashenko e Tokayev  é consistente: império no exterior e ditadura no interior andam de mãos dadas.

Putin também tem muitos amigos entre a esquerda e a extrema esquerda. Tendem a olhar para esta guerra como um confronto entre uma Rússia humilhada, cercada e ameaçada e um Ocidente arrogante, conquistador e agressivo. A Ucrânia seria apenas um campo de batalha entre o inimigo imperialista que quer expandir-se e a Rússia, país enganado pelas falsas promessas do capitalismo após 1991.

Uma parte da esquerda “radical” está envergonhada de as revoluções populares no mundo pós-soviético – como no EuroMaidan em 2014 ou na Bielorússia em 2021 – terem convertido a União Europeia em esperança e horizonte. Então a Europa não é neoliberal e capitalista? Outra parte da direita “radical” está muito incomodada, porque vê os valores identitários, de recusa dos migrantes e da alteridade, ameaçados com a previsível queda de Putin. E também há os votantes e dirigentes do “centro”, preocupados que os negócios nunca mais voltem a ser o que eram.

A invasão da Ucránia funciona como um teste de algodão para saber quem tem princípios. E nenhum destes grupos tem princípios.

Há decerto razões para criticar “o défice de democracia” da União Europeia, mas não as habitualmente invocadas. As insuficiências do Ocidente não justificam a propaganda de que a guerra da ucrãnia é por procuração e fomentada pela OTAN. Estamos perante dois princípios; de um lado, a causa da igualdade, democracia e liberdade, mesmo que insuficiente, do outro as ditaduras de Putin e dos Lukashenkos da vida.

O inimigo de Putin não é o “capitalismo” mas sim a democracia.

O que preocupa o Kremlin é o poder do povo. A Ucrânia mobilizada viu na União Europeia um modelo mais atraente do que as alianças com Putin. Foi a tentativa de associação à Europa que levou Putin à “pequena invasão” de 2014 após a “Revolução da Dignidade”. Esperemos que os negócios do costume, desde o gás ao nuclear, não defraudem as esperanças ucranianas.

O Putinismo atrai todos os identitarianismos. É a promoção de uma Rússia pretensamente eterna, baseada numa ideia errada de “identidade cristã e eslava”, numa alternativa à democracia moderna, reduzida ao engano ocidental. Uma mistura de neonazismo, Panslavismo e Estalinismo, um perigo mortal para o povo russo e os seus vizinhos. Donde a necessidade de o vencer, segundo o exemplo dos ucranianos.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (L)

15 de maio- Mendo Henriques

. A elite (podre) do poder

 

Yevgenia Albats é uma conhecida e respeitada jornalista de Moscovo – a quem já me referi nestas crónicas  – e que ainda consegue conversar com alguns dos homens do poder. Poucos estão dispostos a falar e muito menos a serem vistos em público.

Yvegenia Albats

Ministros e gestores como Ulyukayev ou Abyzov foram presos por ordem de Putin. Mas há exceções que não se contêm, como alguns aposentados e empresários que pertenceram às forças de segurança, ou membros expulsos do Partido Rússia Unida.

Albats calcula em mais de 7 milhões de pessoas, a classe média-alta que serve Putin. Antes do desastre, diziam: “Tu e Navalny lutam contra moinhos de vento. Putin permite ganhar dinheiro, e não vamos ganhar dinheiro com eleições.”

Tinham o resto: filhos em escolas particulares e nas universidades europeias, férias na Crimeia e nos Emiratos três ou quatro vezes por ano, restaurantes na Europa, roupas, condomínios de luxo, etc. Para quê eleições quando a vida é Chanel e Louis Vuitton?

Agora mudou tudo e o retrato desta elite do poder completamente corroída pelo dinheiro mostra como o regime está a muito curto prazo; ninguém que serve o dinheiro está disposto a sacrificar-se pelo Império Russo. As convulsões virão em breve, tão extremas quanto as de 1991.

Os entrevistados de Albats falam de funcionários “limpos” do Serviço de Segurança Federal (FSB) que decidem, punem, e são temidos. Todos os demais são “impuros”, a multidão dos “que andam à procura”, que “recebem ordens” e executam.

Os tecnocratas estão em alta relativa dada a ilusão de salvar a economia do fluxo interminável de sanções. É inútil. Cerca de 70% dos produtos fabricados na Rússia têm componentes importados, sendo impossível substituí-los. “Nenhum tecnocrata apoia a guerra. Todos sabem que é uma catástrofe. Mas todos tentam descobrir como cumprir .”

O secretismo do Kremlin é um facto. “Somente as forças de segurança sabiam da operação. Nem mesmo [o primeiro-ministro] Mishustin sabia, nem Elvira Nabiullina [governadora do Banco Central]“. Durante o famoso Conselho de Segurança televisionado, os mais informados eram contra a operação; Dmitry Kozak (negociador dos acordos de Minsk); e Sergei Naryshkin (SVR), a quem Putin humilhou publicamente.

Os siloviki do FSB e parceiros controlam o poder na Rússia, mas perderam a unidade. Foi um deles que alertou os EUA e a Ucrânia sobre a “operação especial”. Estão sob investigação de traição”. E decerto existe um conflito entre os oficiais de segurança e militares, já que alguém terá de ser o bode expiatório da operação fracassada.

Os empresários, idosos ou jovens, estão zangados.

Negócios em colapso, fortunas congeladas e impedimento de enviar o dinheiro sujo para o exterior. Tinham investido em cripto moedas, mas mesmo isso terminou. Agora compram barras de ouro e levam-nas para os Emiratos.

Em 2019, o estado convocara-os a investir na economia interna, em fundos mútuos com uma taxa de remuneração de 22%; no final do verão de 2021, chegou a 27%. (A taxa corrente é de 3,4%). Só havia um contra; o dinheiro tinha de ser depositado por três anos. 7,7 milhões de pessoas investiram nesses fundos mútuos cerca de 7 triliões de rublos

Com as sanções aos bancos russos estatais e comerciais, num piscar de olhos, esses triliões de rublos deixaram de existir. Ou antes, existem, mas como deixou de haver mercado de ações, o valor é desconhecido. Talvez com o tempo, os bancos devolvam 40%, ou talvez não.

Nenhum dos interlocutores de Yevgenia Albats formulou uma única ideia política ou ideologia. A elite do poder apoia o regime como forma de investimento de capital, com o mesmo cinismo da chefia. A retórica de Putin contra o Ocidente era a estratégia correta. Quando a retórica se tornou realidade, desapareceram todas as perspetivas positivas.

Embora burocratas e Siloviki ainda esperam reverter a tendência negativa, tudo vai despencar. Yevgenia Albats sabe que eles lêem os relatórios da linha de frente na Ucrânia, mas ainda não querem acreditar que a vida deles acabou. O tempo não vai voltar atrás. Vão ter que comer dos restos das sanções. E o desastre chama-se o regime de Putin.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia (XLIX)

14 de maio – Mendo Henriques

. Agressão e Tecnologia – O rei dos anti-tanques

 

Nesta fase da guerra, já todos sabemos como um tirano enlouquecido invadiu uma nação democrática contra a moral, o direito e o seu próprio interesse nacional. Não havia uma invasão assim na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, caraterizada pela guerra dos tanques, uma tecnologia que veio para ultrapassar os impasses dos campos de batalha da primeira guerra, dominada por trincheiras artilharia e metralhadoras.

A primeira vítima a tentar resistir aos tanques foi a Polónia que tinha uma arma leve e individual, e fabricada em massa. Como esses primeiros tanques tinham blindagens de 13 a 20mm, a espingarda antitanque M35  era capaz de penetrar 20mm de blindagens a 300m de distância. Com muita sorte, se o projétil atingisse o motor ou outro componente crítico na parte traseira do tanque, este parava.

Na Ucrânia, os modernos tanques russos atacaram pelas estradas e campos, agora com blindagens reativas. Mas desta vez tornaram-se alvos de mísseis carregados por soldados de infantaria. E o Javelin (Dardo) tornou-se um símbolo desta guerra, não por ser o míssil mais numeroso, mas sim o mais eficaz, o Saint Javelin da Ucrânia, como lhe chamam.

O FGM-148 Javelin é uma maravilha da tecnologia ocidental, projetado nos anos da guerra fria. O sistema pesa apenas 22 quilos permitindo usar táticas de guerrilha. É mais do que um explosivo impelido por um foguete como os RPG. É uma arma “fire and forget” que depois de lançada, tem meios computorizados para se orientar para a zona mais vulnerável de um tanque, e pulverizá-lo.

Javelin

soldados em acção

O primeiro componente do Javelin é o localizador do alvo, uma lente de visão noturna e diurna a infravermelhos com quatro a nove ampliações. Está unida ao tubo de foguete descartável e pode ser usada de modo independente.

Uma vez acionado um interruptor, a unidade começará a resfriar o detector de infravermelhos, o que leva dois a três minutos. Uma vez resfriado, o soldado seleciona o identificador de alvo. Depois  ativa o gatilho para disparo direto ou para uma trajetória que direcione o míssil para a cúpula do tanque. O soldado pode “esquecer” o foguete e mudar de posição para não ser descoberto.

A partir daqui é tudo muito rápido. Um motor de arranque dispara o míssil para fora do tubo de lançamento, minimizando o recuo.

O míssil arma dois conjuntos separados de aletas com mola. O conjunto frontal com oito asas fornece sustentação e estabilização ao voo. O conjunto traseiro com quatro asas é controlado pelo computador de voo para orientar o míssil

O buscador automático usa a imagem inicial no sistema eletrónico para orientar o foguete em direção ao alvo; e tem uma segunda câmara infravermelhos montada no nariz que rastreia e atualiza a imagem de destino com os algoritmos, modicando a trajetória.

O Javelin tem duas cargas moldadas que usam a dinâmica dos fluidos e a energia cinética da explosão para perfurar a blindagem. À medida que o míssil se aproxima do alvo a sequência é célere. A primeira carga tem um forro de molibdénio e permite que o Javelin perfure as blindagens reativas modernas.

. A segunda carga moldada cria um projétil hipersónico que perfura à queima-roupa a blindagem do tanque e maximiza a detonação, muito mais potente que as cargas HEAT, de explosivo anti-tanque.

O Javelin é particularmente eficaz nos ataques sobre as cúpulas; os tanques russo têm o sistema fatal de colocar as munições na cúpula que, ao explodir, é atirada a dezenas de metros de altitude para depois cair aparatosamente. Onde as fotos mostrarem uma cúpula assim destruída, passou um Javelin.

tanque destruído

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XLVIII)

13 de maio – Mendo Henriques

 

. Em direção a Kupyansk

Após os russos serem rechaçados de Kyiv por volta de 25 de março, o jornalista e correspondente de guerra Boris Ponomarenko, do Independente de Kyiv (cuja diretora Olga Rudenko acaba ser capa da revista TIME) escreveu no seu twitter: agora em direção a Kupyansk.

Boris Ponomarenko

Como jamais ouvira falar da cidade, fui então consultar o mapa. A importância estratégica da cidade é evidente. É um entroncamento ferroviário por onde agora passam os reforços russos que alimentam Izyum, a pinça norte da ofensiva no Donbas, enquanto a partir de Donetsk, tenta fazer avançar a pinça sul.

Nesta semana, a contra-ofensiva da Ucrânia na área de Kharkiv continuou a fazer progressos empurrando os russos para uma estreita faixa de território. É uma batalha assimétrica em que ucranianos eliminam tanques T-90M com um simples e antigo lançador Carl Gustaf de granadas antitanque.

Estima-se que existam em combate apenas 3x BTGs russos de fraco rendimento; na área de Belgorod, contudo, haverá pelo menos 19x BTGs (cerca de 20 mil homens) que poderão contra-atacar em direção a Kharkiv ou ir reforçar Izyum. Ou nada fazer, como até agora.

Na pinça sul, estagnou a ofensiva russa ao longo da linha Siverskyi Donets, com sucessos limitados em Popasna.

O plano russo inicial era cercar e isolar os grandes salientes do Donbas, com Slovyansk e Severdonetsk. Mas se os ucranianos expulsarem os invasores da região de Kahrkiv e chegarem à fronteira, poderão atacar na direção de Kupyansk e cortar o eixo de abastecimentos russo de Izyum.

Mapa estratégico

Na zona sul Odesa-Kherson além dos ataques de mísseis contra Odessa, e provocações russas na Moldávia, para impedir que as forças ucranianas sejam redistribuídas para outras frentes críticas, destacam-se os combates na ilha das Serpentes, sobre os quais paira o “nevoeiro da guerra”.

Ilha das Serpentes

A guerra nos mapas digitais assemelha-se aos videojogos. Mas a guerra tal como ela é, em terra, mar e ar, é uma realidade dura, feia, suja e má, com rompantes de heroísmo e de cobardia, momentos de glória e outros de desmoralização. Os ucranianos batem-se com galhardia. Quanto às unidades russas há cada vez mais indicações de que estão desmoralizadas.

Oficiais de nível de batalhão no Donbas recusaram-se a obedecer a ordens superiores ou não as seguiram devidamente. https://newsweek.com/russia-military-officers-disobey-ukraine-orders-vladimir-putin-1704887

A potência militar russa atual é ainda muito grande, sem sequer referir o arsenal nuclear. Mas o poder militar só é eficaz se houver determinação política.

O czar Alexandre expulsou Napoleão depois deste conquistar Moscovo porque tinha um povo a seu lado. Estaline acabou por vencer Hitler, cujas tropas estiveram a 30 km de Moscovo, porque mobilizou todos para a Grande Guerra patriótica.

Eram outros tempos. Agora é o tempo de Putin que nas comemorações do Dia da Vitória a 9 de maio não apontou nenhum objetivo estratégico mobilizador da população, nem sequer da propaganda, não declarou a mobilização nacional, nem proclamou a anexação de territórios ocupados.

Perante esta imobilidade, algumas vozes europeias dizem que “não devemos desestabilizar a Rússia”. Na realidade, Putin é o principal desestabilizador da Rússia, através da repressão interna, e da Europa, devido à agressão externa.

A guerra terminará se a Ucrânia recuperar o que é seu desde 2014 e Putin perder o poder, seja de que forma for. De outro modo continuariam as agressões.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XLVII)

11 de maio – Mendo Henriques

. Eles mentem, nós sabemos que eles mentem…

 

Eles mentem, nós sabemos que eles mentem, eles sabem que nós sabemos que eles mentem, mas eles continuam a mentir e nós fingimos continuar a acreditar neles.”

Assim se referiu Solzhenitsyn ao estalinismo, numa fórmula escrita com o sangue e o suor do autor, mas que define a Rússia atual.

Solzhenitsyn

Antes de 24 de fevereiro, a Rússia não vivia no estalinismo. Vivia numa democratura, um regime autoritário marcado pela corrução de estado, mas que aceitava um conjunto de liberdade civis a fim de que a pressão social não subisse demasiado, ao ponto de explodir.

Agora, à medida que o Kremlin falha na Ucrânia aperta o controle totalitário no interior.

A dissidência está quase silenciada, presa ou no exílio. Esta foi a maior conquista do regime, segundo Gregory Asmolov, especialista em guerra de informação: “Meses atrás era inimaginável”.

Existem sondagens da Levada, em março, que afirmam que 81% dos russos defendem a guerra. A realidade é mais complicada.

As sondagens refletem uma mistura de propaganda e medo.

Os especialistas sugerem que até 90% da população se recusa a participar em sondagens políticas. Cerca de 5-8% dos entrevistados desligam durante a entrevista telefónica e 21% admitem recear a participação nas pesquisas.

Uma investigação da London School of Economics situa o apoio à guerra em cerca de 53%. Desafiar a posição governamental é perigoso e psicologicamente desconfortável. Para a maioria, é mais fácil acreditar no Kremlin: tudo segue conforme o plano. E claro. “Eles mentem, nós sabemos que eles mentem, etc.”

Os noticiários e programas insistem em dois temas: a superioridade russa e a “ameaça” ocidental. No espelho distorcido da televisão e dos media, a Rússia não atacou a Ucrânia, mas foi “atacada” pelo Ocidente. Os bombardeamentos russos “libertaram” Mariupol, não a destruíram.

Em Butcha houve “atrocidades”, mas foram encenadas por Kiev. Não é feita menção às perdas em combate; quem as lembrar, é silenciado em público.

Uma minoria, sobretudo nos grandes centros urbanos, resiste à propaganda. Os sites bloqueados permanecem acessíveis por meio de VPNs, e o YouTube, que acolhe vozes críticas, ainda está disponível por enquanto.

Até o embaixador McFaul pode ser entrevistado num VPN alternativo e ter 50 ou 100 mil visionamentos; mas os russos são 140 milhões e a maioria dos que buscam informação verdadeira já se opôs à guerra.

Embaixador McFaulDebater o que sucede, não mudará nada.

A repressão é fortíssima. A uma informação verdadeira sobre a guerra chama-se “notícia falsa”; divulgar verdades é punível com até 15 anos de prisão. Usar manicure nas unhas com cores azul e amarelo pode levar à prisão. Sentar-se num banco de jardim, fingindo segurar um cartaz, também. Em março, o OVD-Info, https://reports.ovdinfo.org/no-to-war-en que relata abusos de direitos humanos e apoia as vítimas, compilou uma lista de acusações de “notícias falsas” baseadas em (donosy) denúncias, um termo da era de Estaline.

O medo da denúncia anónima perturba os círculos de amigos e familiares. Os russos não falam abertamente. Segundo números do próprio FSB, 4 (quatro) milhões de russos viajou para fora do país desde o início da guerra. Uma parte considerável voltou, mas outra aguarda exilada nos países vizinhos. Querem uma Rússia diferente e tentam sobreviver.

Andrei Kurilkin organiza concertos de música clássica.

Num recital de piano recente apresentaria as obras de Valentyn Silvestrov, compositor ucraniano contemporâneo.

Valentin Silvestrov

Foi proibido pela polícia que alegou haver uma ameaça de bomba. Pode parecer pouco mas é sinal de que as almas russas não morreram todas. Tal como no estalinismo, estão silenciadas.

Quanto à elite do poder cerrou fileiras em torno de Putin; o sucessor é debatido na sombra.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XLVI)

10 de maio – Mendo Henriques

. Caem os governadores

 

Entre os subterrâneos da política russa, houve hoje uma notícia que parece menor, mas que pode vir ter grande impacto; como diz a Novosti no estilo meio soviético que cultiva, Vladimir Putin assinou os decretos (ukazes) que determinam a renúncia de cinco governadores regionais.

Estes são eleitos, mas subordinados ao Kremlin que os pode destituir a todo o momento. Ou mandar prender, como sucede a alguns.

Assim, os presidentes das regiões ou repúblicas de Tomsk, Ryazan, Saratov, Kirov e El Mari abandonaram os cargos. Apresentaram motivos diversos, mas as declarações oficiais e as dos especialistas não deixam dúvidas: o Kremlin quer centralizar decisões, alarmado como está com a degradação da economia devido ao impacto das sanções.

Ilya Grashchenkov, diretor do Centro para o Desenvolvimento de Políticas Regionais em Moscovo foi muito claro: Há necessidade de reestruturar a economia, onde a influência ocidental foi maior. Esses governadores precisavam ser substituídos por alternativas mais jovens.

Um governador ou presidente de regiões da Federação Russa tem muitos poderes. As regiões têm códigos próprios de direito penal e civil. São dirigentes executivos e, conforme a jurisdição, controlam o orçamento regional, nomeiam altos funcionários, incluindo juízes e têm papel considerável na legislação, além do poder parcial ou absoluto para comutar ou perdoar penas judiciais. Cumprem mandatos de cinco anos com o máximo de dois mandatos consecutivos.

Estamos a falar de grandes territórios e amplas populações. Tomsk tem 316.00 km² e 1 milhão de habitantes. Ryazan tem 40.000 km² e mais de 1 milhão de habitantes. Saratov tem 100.000 km² e 2,5 milhões de população. Kirov tem 120 000 km² e população de mais 1,3 milhões.

mapa das regiões

Estes cinco governadores que “renunciaram” tinham sido eleitos em 2017 e as próximas eleições ficaram marcadas para setembro de 2022. O governador de Tomsk, Sergey Zhvachkin, afirmou: “Existe uma lei que limita o cargo a dois mandatos. Nunca me agarrei a uma cadeira”.

Governadores que abandonam…

O governador de Kirov, Igor Vasiliev, escreveu no canal Telegram que continuaria a atuar “ao nível federal”.  O governador de Ryazan, Nikolai Lyubimov , escreveu na página do Vkontakte que não quer concorrer pela segunda vez.

O papel decisivo dos presidentes dos Oblasts colocou-os na mira de Putin desde que este tomou posse a 7 de maio de 2000. Uma das primeiras medidas foi a diminuição do poder dos governadores, numa mistura de políticas do Politburo soviético e do império dos czares, como explica Garry Kasparov. Os governadores cederam poder ao presidente federal, ganhando em troca poderes reforçados sobre os municípios regionais que perderam autonomia.

Um segundo momento de diminuição do papel dos governadores ocorreu após o massacre da escola de Beslan, a 3 de setembro de 2004. Durante o assalto pelas tropas especiais russas, nunca bem explicado, os terroristas chechenos assassinaram os reféns, entre os quais 184 crianças.

A partir de 2005, os oitenta e nove governadores (hoje em dia são 85) foram nomeados pelos órgãos legislativos por recomendação do Presidente da Rússia. Em nome da maior eficácia no exercício dos mandos regionais, Putin deu mais um passo no caminho da democracia para a ditadura, a democratura, como então lhe chamou o jornalista alemão Boris Reitschuster.

Em 2012 voltaram as eleições por escrutínio direto, mas com um conjunto tão grande de requisitos que quase só o partido de Putin consegue eleger. Atualmente existem 57 governadores membros do Rússia Unida, 3 comunistas, 3 democratas liberais e 2 membros de Rússia Justa (partidos de extremaI-direita) e 20 ditos independentes.

Numa fase em que o Ministério da Economia russo afirma que a economia deve contrair 8,8% em 2022, mas que poderá ser de catastróficos 20% para outros observadores, o Kremlin quer aumentar os controlos.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XLV)

9 de maio – Mendo Henrique

. Putin está de saída?

 

O discurso de Putin no Dia da Vitória em Moscovo foi muito mais revelador pelo que que deixou em silêncio do que pelo que afirmou. A parada militar terrestre teve a grandiosidade habitual de uma nação que está a recordar os vinte milhões de mortos na vitória contra Hitler, aliada à Inglaterra, França e EUA como o presidente fez a questão de recordar.

Desfile

Numa parada em que não compareceu a Força Aérea, por motivos que estão por apurar, nem esteve presente o general Gerasimov, Chefe do Estado Maior da Forças Armadas, o presidente da Federação Russa falou como uma sombra de si mesmo.

General CEMGFA russas ausente

As alegações defensivas sucederam-se. Estavam em andamento os preparativos para outra operação punitiva no Donbass, para uma invasão das nossas terras históricas, incluindo a Crimeia“. : “O bloco da NATO preparou… foi criada uma ameaça absolutamente inaceitável para nósnas nossas fronteiras“.

Um confronto com os neonazis, …seria inevitável.”

A Rússia foi forçada a reagir à agressão.

Foi uma decisão de um país soberano, forte e independente“.

Uma ladainha de justificações em nome uma defesa “necessária” contra ameaças imaginárias. Foi este o tema único e revelador de quem falou como quem “pisa água”, segundo o comentário de Peter Pomerantsev, autor de dois grandes livros sobre desinformação e propaganda: Nothing Is True and Everything Is Possible (2014) e This Is Not Propaganda (2019).

O discurso de Putin só foi notável pelo que ele não disse. Nenhuma afirmação sobre armas químicas e nucleares. Não reivindicou vitória; não falou de libertação da Ucrânia; não falou de mobilização geral para a guerra; não falou do reconhecimento de novas Repúblicas Populares na Ucrânia; nem de uma Rússia do Sul com anexação de territórios. Dada a situação na frente de batalha, sabia que tais alegações não teriam credibilidade,.

O discurso foi, antes de mais, uma justificação para as baixas da guerra que já não podem ser ocultadas do público, por muito que tente suprimir as informações. Falou-se de compensações às famílias dos mortos.

Em segundo lugar, mostra que Putin sabe que a guerra correu mal.

As especulações sobre o seu acesso a informações corretas pode terminar. O homem das informações, do KGB e do FSB, nunca viveu numa bolha delirante, acreditando na sua propaganda. Mostrou que entende o fracasso que tem às costas.

Desistiu ainda de unir o povo russo em torno do objetivo da Ucrânia como o inimigo.

O inimigo declarado é o que chama o “Ocidente”, a NATO. A propaganda do Kremlin vai ressentir-se pois até agora a Rússia lutava apenas contra a Ucrânia.

Ainda não está claro para onde Putin leva a guerra depois de 9 de maio. O discurso defensivo pode indicar que tenciona terminar a  invasão – ou pelo menos reduzi-la a um conflito de baixa intensidade como antes de 24 de fevereiro.

Ou pode indicar que está de saída.

O Kremlin não é para perdedores. Há fontes a indicar como sucessor o jovem (e relativamente inepto) ministro Denis Patrushev, filho de Nikolai Patrushev, a eminência parda do regime.

O pior cenário, no entanto, ainda paira: uma escalada militar, incluindo o uso de armas nucleares ou químicas, em um último esforço para alcançar uma vitória que Putin poderia usar para justificar os danos que infligiu. A Ucrânia e o Ocidente devem estar preparados para tal cenário.

Peter Pomerantsev escreveu no seu livro de 2019. “Ouço esta frase: ‘Há tanta informação e desinformação, tanto de tudo. que já não sei o que é verdade.” Muitas vezes ouço a frase: “Sinto o mundo a mover-se debaixo dos pés.” E penso: “Sinto que tudo o que era sólido, agora é instável, líquido.”

Hoje há uma diferença. O mundo mudou devido à coragem e à inteligência dos Ucranianos.

A Ucrânia não aceitará mais a ocupação e continuará a lutar até retomar o que é seu. O Ocidente continuará a prestar-lhe apoio humanitário, económico e militar maciço e a acolhê-la mais cedo que se programava nas instituições euroatlânticas. A Rússia continuará submetida a sanções e isolamento internacional enquanto se mantiver a política de Putin; com ele ou sem ele.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XLIV)

8 de Maio – Mendo Henriques

. Um desfile á procura da vitória

 

A 9 de maio, no feriado do Dia da Vitória, Putin tem de declarar uma espécie de vitória mas ainda não se sabe qual. Há uma semana que os militares ensaiam em Moscovo ( ver crónica de 29 de abril ) e o mundo está de olhos postos na Praça Vermelha.

…a treinar o desfile da vitória…

Os desastres do Kremlin estão à vista. A ofensiva russa no Donbas arrasta-se.

As perdas em homens e material são muito grandes enquanto aumentam as remessas de armas pesadas ocidentais para a Ucrânia. No interior do país, cresce o desgaste entre a opinião pública e as elites que apoiam a guerra.

Dentro de semanas, e a Suécia e a Finlândia devem aderir à NATO. A ONU tem-se manifestado contra a guerra.

Perante tantas contrariedades, resta a Putin manter a fachada. Manter a aparência de normalidade e manipular os defensores da paz a qualquer preço no Ocidente, esperando o desgaste do apoio à Ucrânia.

…treinos intensos…O 9 de maio foi reinstituído por Putin quando ascendeu a presidente. Grandes desfiles de militares e material, celebrações patrióticas, elogios aos veteranos, grandes discursos.

Este ano, a meio de uma guerra que não consegue vencer, o Dia da Vitória é uma plataforma para Putin dizer aos russos para onde quer ir

Tem várias opções pela frente, e nenhuma é boa.

Declarar a mobilização geral e o estado de guerra. Se a propaganda “vende” o conflito como guerra ao nazismo, evocando a Segunda Guerra Mundial, o Dia da Vitória é o melhor momento para anunciar uma escalada.

Mas há riscos. Putin preside a um regime que é uma burocracia, e não uma tirania como a de Idi Amin, Saddam Hussein ou Mumamar Gaddafi que faziam o que lhes apetecia. Opera dentro de restrições institucionais. Declarar a guerra permitiria a mobilização geral e subir para níveis de força agora impossíveis no quadro jurídico da “operação militar especial”

Os planos da mobilização estão prontos e é praticamente inevitável. Segundo o conhecido “Viktor Mikhailovich”, general SVR, o Banco Central já preparou o bloqueio das contas bancárias dos mancebos que tentarem ”fugir à tropa”. Falta convencer a administração e a população em geral. Uma autocracia cai quando ultrapassa um limiar de aceitação de violência pelos cidadãos. Foi o que custou o poder a Nicolau Ceausecu em 21 de dezembro de 1989.

Apresentar resultados

Putin pode usar o Dia de 2022 para celebrar as conquistas da Rússia nos territórios entre a Crimeia e o Donbas e declarar o domínio de Mariupol. Se até agora manteve a popularidade, para quê arriscar o status quo com um empenhamento maior e mais baixas?  Afinal foi só em 24 de março que se concentrou no Donbas, após a derrota em Kyiv. Pode estar à espera do desenlace desta batalha, antes de nova reviravolta na guerra. Afinal as especulações sobre a escalada vêm mais do Ocidente do que do Kremlin.

Declarar vitória unilateral

Putin pode declarar a vitória a 9 de maio e indicar a intenção de terminar as operações. Já tem a ponte terrestre a ligar a Crimeia ao resto da Rússia e a garantia de abastecimento de água. Pode até recuar de alguma áreas ocupadas, como fez no final da guerra russo-georgiana de 2008.

Contudo, o controle sobre Donetsk e Lugansk não é garantido.

O infame coronel Strelkov, do FSB, um responsável da invasão de 2014, tem feito críticas à má execução do objetivo.

Declarar “missão cumprida” é fácil; outra coisa é a reação do adversário. E muito legitimamente, a Ucrânia jamais concordará com a ocupação dos seus territórios, no que é apoiada pela NATO, a Europa, pelo Tribunal Internacional e mais países da OCDE.

Poderia Putin estar ausente do 9 de maio?

Isolou-se durante a pandemia. A especulação é permanente sobre a necessidade de se proteger de rivais e golpes de palácio.

Fez purgas nos serviços de informação e entre os generais.

Mas nada disso o impediu de realizar grandes comícios desde o início da guerra.

Estar ausente é uma opção quase impossível. Só um incidente no desfile da Praça Vermelha obrigaria a alterações pontuais, mas os serviços de segurança parecem suficientes para que ele não saia de lá como Lenine no seu mausoléu.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XLIII)

6 de Maio – Mendo Henriques

. A geopolítica é uma pseudociência e causa desastres

É cada vez mais penoso ouvir comentadores da guerra da Ucrânia retirarem do armário os antiquados conceitos de 1900 de Friedrich Raztzel e Halford Mackinder sobre “ameaça existencial, “destino geopolítico” e “política de grande potência”.

A geopolítica atrai os dirigentes que querem vingar “injustiças históricas” e “punhaladas nas costas”. Queixam-se constantemente de humilhações passadas, falta de reconhecimento internacional, hostilidade de forças externas e fronteiras ameaçadas.

É um programa para dirigentes de China, Hungria, Irão, Sérvia, Turquia e Venezuela. Nesta visão, os países “decidem”, “querem”, “sofremou “ressentem-se”.

Ora um estado não faz nada disso; só seres humanos agem assim. A “decisão” de cada país tem muitos opositores dentro do próprio país.

Há geopolíticos anti-putinistas e putinistas, no Ocidente como da Rússia, China, Turquia ou Portugal. É uma praga doutrinária.

Por exemplo John Mearsheimer, da Universidade de Chicago, repete que “os EUA e os aliados europeus partilham a maior parte da responsabilidade por esta crise”. Para um velho tonto como Mearsheimer, a expansão da NATO e a expansão da UE “visam transformar a Ucrânia em uma democracia liberal o que, do ponto de vista russo, isso é uma ameaça existencial”.

Qual ponto de vista russo? Do povo? Do Kremlin? Da classe média? Dos destituídos? Dos mais ricos? A linguagem da geopolítica usa e abusa de generalidades.  Quem pensa em termos de “ordem mundial” e “políticas de grandes potências” está a falar de entidades mortas. Varre da face da terra as pessoas vivas e concretas, e só aceita valores de sobrevivência; sacraliza o poder, os regimes e as fronteiras do Estado. É a política manipuladora de quem leva os povos a agredir em nome das linhas de um mapa.

Encerrado o episódio da democracia iniciado em 1991, Putin presidiu a um crescendo tóxico de ressentimento histórico construído com a linguagem da geopolítica. Durante duas décadas, os órgãos de estado e os media propagaram ameaças externas e reclamações sobre os territórios da ex-URSS.

O artigo de Julho de 2021 de Putin sobre a Ucrânia, tristemente célebre, e o seu discurso furioso de 23 de fevereiro seguido pela grande invasão são o culminar de décadas de envenenamento com narrativas de cerco estrangeiro e maus-tratos por parte do Ocidente.

A linguagem geopolítica usada por estadistas, militares e académicos todos eles serôdios, nada explica, mas permite conferir às suas ideias uma aura de respeitabilidade. Foi usada pelos neoconservadores norte-americanos por alturas das guerras do Médio Oriente dos EUA. Justificava-se em nome da expansão da democracia a “transformação de um país em democracia liberal pró-americana”.

É fácil dizer isto. Fazer é que se revelou impossível porque a democracia não resulta de visões geopolíticas, mas da vontade dos povos.

A geopolítica é uma pseudociência que nada explica e convém deixá-la sossegada nos armazéns do pensamento. É um pensamento único que trata os países como entidades monolíticas e deixa de fora os processos que nele ocorrem; os desejos e ânsias pessoais com suas convicções, desacordos e dramas individuais; com atividades económicas e culturais muito diversas. É então que a guerra começa e as catástrofes acontecem.

E que não haja dúvidas. O esvaziamento do pensamento na Rússia pela geopolítica ajudou a que a única linguagem aceite fosse a da força. Neste sentido, Putin não é causador de nada; é um triste reflexo de uma sociedade que, uma vez derrotada na Ucrânia, terá de ressurgir por entre convulsões.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XLII)

5 de Maio – Mendo Henriques

. Cirilo, o sacristão de Putin

 

Com a franqueza típica de quem deixa o interlocutor sem palavras, o Papa Francisco contou na passada terça-feira em entrevista ao Corriere della Sera, a reunião zoom que teve com o Patriarca Cirilo, de Moscovo, a 16 de março, três semanas após a invasão da Ucrânia.

Papa Francisco

Após escutar durante 15 minutos as justificações do patriarca sobre a guerra, disse: Não percebo nada, Irmão; não somos clérigos do Estado, não podemos usar a linguagem da política, mas sim a linguagem de Jesus“. E acrescentou ao entrevistador: “O patriarca não pode tornar-se um sacristão de Putin“.

A conclusão idêntica à do Papa Francisco, chegou hoje, 5 de maio, a Comissão Europeia. Com base em dados sobre a corrupção e a participação do chefe da Igreja Ortodoxa Russa no incitamento à guerra, a Europa incluiu Cirilo no sexto pacote de sanções a cidadãos e empresas da Rússia.

Os atos de Cirilo desde há muito que estão a quebrar a unidade ortodoxa. Contra ele correm manifestos de protesto de 500 sacerdotes e metropolitas da sua Igreja cuja profunda tradição de fé sobreviverá, evidentemente, a este episódio doloroso. Ferida, mas talvez aliviada, da subjugação ao Kremlin que vem de longe.

Existe aqui um legado evidente da era totalitária da Rússia.

Estaline obteve o apoio da IOR para patrocinar a grande guerra patriótica. Brejnev levou o metropolita Nikodim de Leningrado (falecido em 1978), à moderação interna em troca de colaboração internacional.

Após 1991, só permaneceram duas instituições da era soviética: o Patriarcado e a KGB.

A subida ao poder de Cirilo e Putin foram paralelas e aliás, os arquivos soviéticos apontam Cirilo como agente da KGB, de seu nome próprio Vladimir Mikhailovich Gundyayev.

Sendo bispo de Smolensk assumiu o Departamento de Relações Externas da Igreja Russa, antes de ser eleito patriarca em 2009.

Desde então abençoou o mecanismo político-religioso do Kremlin, tornou-se capelão de instituições e oligarcas, absolvendo a corrupção generalizada, ao mesmo tempo que criava uma fortuna pessoal avaliada em 2 a 3 biliões de dólares.

O pontificado de Cirilo e a presidência de Putin acabaram por se fundir.

O Patriarcado de Moscovo cobre todo o território da ex-URSS e adotou a agressividade e a ideologia do “mundo pan-russo”, garantindo hierarquias dóceis em todos os ramos, através de subornos, se necessário.

Os calendários civil e litúrgico da Rússia coincidem como que numa dança mortal.

A 23 de fevereiro, véspera da invasão, foi a celebração do feriado dos “Defensores da Pátria“.

Patriarca Cirilo com Putin

Na catedral de Cristo Salvador no dia 27, Cirilo castigou as “forças do mal” que querem impedir o presidente Putin de alcançar “a unidade de todos os russos”.

O patriarca apoiou o ataque à Ucrânia que descreveu como forma de guerra santa, um confronto entre “a lei de Deus” e o “pecado“. No domingo anterior já havia castigado aqueles que lutam contra a unidade histórica da Rússia e da Ucrânia, rotulando-os de “forças do mal“.

Contra isto, o Metropolita Onofre de Kyiv, que dirige a parte da Igreja ucraniana que permanece fiel a Moscovo, apelou à resistência patriótica.

Pediu ao Patriarca que exortasse Putin a “cessar as hostilidades que ameaçam transformar-se em guerra mundial“. Acrescentou que a ” Igreja Ortodoxa Ucraniana apoia a soberania do Estado e a integridade territorial da Ucrânia“.

Cirilo já antes quebrara a unidade ortodoxa. Na Terra Santa, procurou instrumentalizar o Patriarcado de Jerusalém.

Ao apoiar a guerra na Síria, tentou subjugar o Patriarcado de Antioquia. Quando Bartolomeu I, primaz de Istambul e de toda a Igreja Ortodoxa mundial – e primeiro interlocutor do Papa Francisco – concedeu à Ucrânia o estatuto de Igreja independente em 2019, Cirilo declarou-a “apóstata” e entrou em cisma.

Bartolomeu I

Sem esta base ucraniana, o Patriarcado de Moscovo tornou-se uma Igreja Ortodoxa entre outras.  O que o papa Francisco ansiosamente assinala é querer ir Moscovo para pedir o fim do conflito na Ucrânia; quer que não voltem a despertar as divisões assassinas do passado entre ortodoxos, católicos latinos e católicos gregos.

Está em jogo o futuro da Europa e o futuro das Igrejas cristãs. Com Cirilo, o diálogo é impossível.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XLI)

. As “mortes súbitas” na GAZPROM

Sete empresários russos tiveram “morte súbita” desde que Putin invadiu a Ucrânia: quatro oligarcas, dois diretores da gigante petrolífera Gazprom, e  um diretor de estância. Todos mortos, alguns com familiares. Os investigadores oficias dizem que estão a considerar várias versões do que aconteceu.

Quatro dos “suicidados” trabalhavam para a empresa estatal gigante de energia, a Gazprom.

O bilionário Sergey Protosenya

Sergey Protosenya

foi encontrado enforcado no jardim da casa de férias, com a esposa e filha mortas a golpes de machado.

O magnata Mikhail Watford foi encontrado morto na sua casa de Surrey.

O administrador da Gazprom, Leo Shulman, foi encontrado enforcado em casa nos arredores de São Petersburgo; o mesmo sucedeu ao vice-diretor da Gazprom, Alexander Tyulakov, no mesmo conjunto habitacional.

 

O vice-presidente do Gazprombank, Vladislav Avayev foi encontrado morto com sua esposa e filha num apartam

O magnata Vasily Melnikov foi morto, também com suposto assassinato-suicídio de esposa e filhos. Andrei Krukovsky, diretor-geral da estância de ski de Krasnaya Polyana, gerida pela Gazprom, e montanhista consumado foi encontrado morto após cair de um penhasco.

Segundo fontes bem informadas, estas mortes súbitas de antigos e atuais funcionários das estruturas da Gazprom, em particular, do Gazprombank, e Novatek, enquadram-se nos esforços do Kremlin em encobrir a sua própria corrupção; o Kremlin encontra bodes expiatórios e sacrifica os elos mais fracos para que não se descubram corrupções de mais alto nível. Estamos perante a cleptocracia maciça que Bill Browden tão bem descreve em “Ordem de Congelamento”, o seu livro de 2022.

As mortes executadas com brutalidade que se pretende intimidatória têm uma origem comum: as operações secretas do Kremlin – vigilância, policiamento, propaganda, repressão, assassinato – não são financiadas pelo orçamento de estado da Rússia, mas sim por meio de estruturas da Gazprom, entre as quais o Gazprombank.

Até agora o Kremlin conseguiu que o Gazprombank não sofresse sanções completas. Grandes empresas europeias importadoras de energia mantêm lá contas bancárias a fim de pagar importações de gás e petróleo. Segundo afirmou o Ministério da Economia alemão, essas contas não violam necessariamente as sanções impostas porque as importações de gás e petróleo vão manter-se até final de 2022

O diretor do FSB, Alexander Bortnikov e o secretário do Conselho de Segurança, Nikolai Patrushev – protagonistas decisivos nas próximas semanas – apresentaram a Putin no final de 2021 o vazamento de dados por funcionários da Gazprom.

Esses dados informavam sobre o financiamento de operações secretas; em particular sobre o esquema de financiamento de agentes do FSB. Este é o serviço que Putin dirigiu em 1998 e 1999, antes de ser primeiro ministro e presidente. A direção passou depois para Patrushev e depois para Bortnikov.

O 5º Departamento do FSB falhou miseravelmente nas informações sobre a Ucrânia. Segundo o CEPA, cerca de 150 dos seus agentes foram presos.

Bortnikov supervisionou a investigação ao FSB e, na véspera de Ano Novo de 2022, apresentou a Putin um relatório com uma lista de suspeitos para liquidação.

Lista aprovada.

No início de março, apareceu uma nova lista, com nomes que Bortnikov e Patrushev consideram culpados de desvio de fundos alocados pelo SVR, OGRU e 5º departamento. Começava então a ser reconhecido o fracasso da “operação especial” na Ucrânia, e a lista “precisava” ser complementada para que os diretores não fossem culpados.

Ainda assim foi preso o coronel general Beseda, e o 2º comandante do 5ª departamento.

O regime mafioso de Putin e o seu imbróglio político-financeiro-policial está na origem das trágicas mortes súbitas. A lista dos abatimentos vai continuar.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XL)

3 de maio – Mendo Henriques

. Putin perdeu a guerra, mas ainda falta uma batalha

Todos os dias se acumulam sinais sobre a catástrofe de Putin a ponto de, ser agora mais decisivo debater o futuro nebuloso da própria Rússia do que as incidências do conflito na Ucrânia. Em consonância com especialistas bem informados e quem esteve no terreno político e diplomático da região, pode afirmar-se que Vladimir Putin já perdeu a guerra.

Não se trata de uma avaliação otimista, mas apenas do que resulta do confronto dos objetivos com os resultados. Perder a guerra significa que Putin falhou nos objetivos declarados nas vésperas da invasão.

Declarou então que derrubaria a Ucrânia que nem sequer considerava ser uma nação, mas um país artificial montado pelos soviéticos, e com uma população de russos com sotaque. Falhou este objetivo ao deparar-se com um povo que lhe resiste, das avozinhas aos militares.

Em segundo lugar, afirmou que ia desnazificar a Ucrânia; aparte os incidentes de linguagem do ministro Lavrov e da propaganda que ainda alimenta este mito, sabe-se como foram enviados grupos de combate Wagner para assassinar o presidente Zelensky e sua família e substituí-lo por um regime fantoche. Objetivo falhado, de modo miserável.

Putin indicou que iria desmilitarizar a Ucrânia. O que vemos é que o país da bandeira amarela e azul venceu a batalha de Kiyv tal como as batalhas por outras cidades principais, com exceção de Kherson que vai ser agora disputada. Cada dia que passa falha nesse objetivo.

Resta o quinto objetivo, proteger o Donbas, ou antes, a conquista da região onde os russos gozavam de efetivas simpatias antes da invasão. Se seguirmos a linguagem dos noticiários russos, vemos que assinalam uma mudança de objetivos. Passou-se a falar de operação militar especial em defesa do Donbas.

Donbas

 

Os russos até podem vencer a batalha do Donbas, um conflito entre armamentos pesados onde a Ucrânia parte em desvantagem. Contudo, os apoios militares maciços que estão a chegar do Ocidente, e a superioridade moral e tática dos ucranianos sugerem que a vitória se deve inclinar para o lado de Kyiv.

Ao focar-se exclusivamente no Donbas, Putin como que regressou ao ponto de partida.

O conflito já existia antes de 24 de fevereiro.

A Crimeia fora anexada e  partes da região de Donetsk e Lugansk eram controladas pelo Kremlin.

A grande diferença é que agora os exércitos russos conquistaram uma ponte territorial entre a Crimeia e o Donbas. Essa ponte passa precisamente por Mariupol cuja disputa assumiu um significado transcendente e onde a tragédia humana de 20 mil civis mortos acompanhará de forma negra o desaparecimento de Putin.

MARIUPOL, UKRAINE Azovstal

A maior surpresa em todo este conflito é a extraordinária vontade dos Ucranianos. Anos a fio, os especialistas anteciparam cenários de guerra entre as duas nações com fala russa e compararam orçamentos militares, números de militares efetivos e de reserva, aviões, helicópteros, tanques, mísseis, e demais armamentos. Todos antecipavam uma derrota esmagadora da Ucrânia.

O que os especialistas não conseguiram contabilizar foi a vontade e a coragem moral dos Ucranianos.

Esse elemento de libertação era uma quantidade desconhecida, incrível mesmo, que a Ucrânia está a ensinar aos países europeus. E convém ter presente como o presidente Zelensky numa entrevista ao The Atlantic afirmou que é uma libertação é muito diferente de uma vitória.

Ivan Timofeev 8nome a reter)

É corrente ouvir-se de um país em conflito que perdeu uma batalha mas não perdeu a guerra. Sobre Putin pode afirmar-se o oposto: já perdeu a guerra embora ainda tenha uma batalha a travar.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XXXIX)

2 de maio – Mendo Henriques

. Da Rússia, com ansiedade

A invasão da Ucrânia colocou a sociedade russa em estado de extrema agitação e mesmo exaltação. Nas notícias dos jornais e TV’s, mal se ouve o arrulhar das pombas, ensurdecido pelos guinchos dos falcões e abutres, até ao ponto da propaganda delirante.

Mas quando se alcança os sítios institucionais, publicações, blogues e twitters – os do regime e os da oposição – o tom modifica-se: desaparece a histeria e surge uma ansiedade profunda de que os russos se confrontam com um conflito sem precedentes na sua história: invadiram um país que antes consideravam irmão, e depararam-se com uma reação mundial que modificou todos os desafios e ameaças a que estavam acostumados.

O que está a ser debatido não é o uso da bomba atómica: é o que se segue na Rússia.

Os falcões querem uma espécie de Coreia do Norte gigante; os mais tecnocratas querem uma solução diplomática; os oposicionistas querem mudar de regime.

Da solução deste debate sairá o destino de Putin que a todos colocou numa situação trágica. E nenhum destes três grupos conta muito com ele para o futuro, por razões diversas.

Um dos observadores dentro do regime é Ivan Timofeev, académico de Moscovo, do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia, e diretor de programas no Clube Valdai. No artigo “Não é tempo para o fatalismo” https://russiancouncil.ru/en/analytics-and-comments/analytics/no-time-for-fatalism/ vem advertir que o seu país pode estar a caminho da experiência de caos económico, revolução política e guerra civil como em 1917-20.

Andrey Kortonov

Enfrenta “três pacotes de ameaças“: a ameaça externa de um Ocidente unido; uma economia e administração pública degradadas; e uma crise de Estado. A interligação destes três pacotes cria uma “tempestade perfeita” de interferência estrangeira, guerra civil e colapso económico.

Segundo Timofeev, os equilíbrios internacionais imperfeitos permitiam a coexistência Rússia-Ocidente.

A Ucrânia não era uma prioridade, a violência em Donbas baixara muito e a Rússia tinha “amplo espaço de manobra“. Após a invasão, mesmo que a Rússia conquiste territórios, a segurança desapareceu e os negócios com a China e a Índia jamais compensarão a perda dos mercados ocidentais. Além da insegurança provocada por mais armas nucleares na Europa, a escassez de bens vai criar ressentimentos e será uma fonte de instabilidade e de espiral de tensões: as purgas e repressão exercidas pelas autoridades apenas farão aumentar a reação das populações.

Timofeev rejeita o “totalitarismo” como caminho. Rejeita a repressão do que são consideradas as “quintas colunas” e quer evitar a perda de capital humano. Contra a visão de Patrushev de “mobilização” da economia, defende que a “liberalização” da economia seria mais eficaz. Consegue encontrar vantagens no “cancelamento” da cultura russa no Ocidente porque a “casa russa” torna-se o único “porto seguro“; tudo depende de como for aproveitada a situação.

Contudo, o ambiente internacional é muito mais difícil do que em 1991 e Timofeev conclui com um apelo contra o “fatalismo” pedindo o aproveitamento das “forças produtivas” da Rússia.

São estas as suas palavras: “O futuro da Rússia depende de si própria. Esta não é a hora do fatalismo“.

O diagnóstico de Timofeev mostra linhas de divergência e fratura no interior dos grupos profissionais, como escreve  Andrey Kortunov, diretor-geral do próprio Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia a que pertence Timofeev.

Nas vésperas da operação militar especial, chegou a haver apelos público de generais ao presidente e aos cidadãos da Rússia, contra uma tentativa de solução militar da “questão ucraniana”. Após a invasão, todos os grupos profissionais e socias estão divididos.

O conflito na Ucrânia rasgou as posições partidárias e as preferências políticas usuais de uma Rússia cheia de ansiedade.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XXXVIII)

1 de maio – Mendo Henriques

. A Rússia perdeu o 1º de maio

 

As comemorações do 1 de maio costumavam ser grandiosas na Rússia mas este ano foram uma coisa pífia. A razão é simples. Não há povo russo disponível para comemorar o Dia do Trabalhador.

Um outro 1 de Maio, em 2004, foi o do grande alargamento da União Europeia a mais dez membros, entre os quais quase todos os antigos países satélites da URSS. Foi uma data em que a Europa começou a respirar com dois pulmões, como escreveu João Paulo II

O acontecimento despertou a Ucrânia para a possibilidade de também ela aderir à União. Era esse o programa do movimento de oposição de Yushchenko que disputou as eleições presidenciais de Outubro de 2004. As eleições foram marcadas por intimidação e fraude. Segundo a perceção generalizada de observadores nacionais e estrangeiros, os resultados foram manipulados em favor do candidato pró- Rússia, Viktor Yanukovych.

A resposta foi a “Revolução laranja”. Kiev entrou em ebulição com milhares de manifestantes diários a favor do candidato da oposição. Tal como no resto do país, houve desobediência civil, protestos e greves gerais.

A razão dos protestos acabou por se fazer ouvir. O Supremo Tribunal da Ucrânia marcou novo segundo turno eleitoral para dezembro de 2004. Os resultados deram a vitória a Yushchenko, com 52%, contra 45% de Yanukovych, num escrutínio declarado “livre e justo”.

Putin com Yushchenko e Yanukovych

A Revolução Laranja lançou o pânico na Rússia.

Putin não chamou o exército, mas mobilizou os serviços de informação, em particular o FSB que tinha ligações perfeitas no país.

Em breve conseguiram minar a Revolução Laranja, manipulando divisões entre a Ucrânia do Leste, então pró-russa e a Ucrânia ocidental mais pró-europeia. O presidente Yushchenko conseguiu sobreviver a um envenenamento.

A primeiro-ministro Timoshenko foi envolvida em escândalos da política da energia. A política ucraniana ficou paralisada durante quase dez anos.

Em 2010, Yanukovych sucedeu a Yushchenko em eleições presidenciais consideradas justas. Contudo, novamente manipulado por Putin com a dependência energética, acabou por repudiar um tratado de associação com a União Europeia.

Yanukovych com Yulia Tymoshenko

Em novembro de 2013 rebentou a grande vaga de protestos conhecidos como Euromaidan. Em fevereiro de 2014. houve derramamento de sangue e mais de cem mortos. O parlamento removeu Yanukovych do cargo, e substituiu-o por um governo pró-UE, e ordenou que Yulia Tymoshenko fosse libertada da prisão.

Yulia Tymoshenko com Putin

A reposta de Putin foi a invasão da Crimeia e a revolta no Donbas.

Dominar a Ucrânia faz parte de conjunto de interesses estratégicos do Kremlin. A Bielorrússia está controlada com um ditador tão esperto como os ratos do campo. Os países bálticos não são particularmente grandes nem de interesse estratégico dominante. Agora, quanto à Ucrânia vale tudo.

Para os geopolíticos, russos ou americanos, se a Ucrânia caísse nas mãos dos adversários – NATO, União Europeia, EUA – a Rússia ficaria em perigo mortal. A fronteira da Ucrânia está a menos de 300 km da antiga Estalinegrado. Os mísseis convencionais ficam a minutos de distância.

Dos hipersónicos é bom nem falar. Sem Bielorrússia e Ucrânia, não há profundidade para defender a Rússia.

As limitações da geopolítica conduziram os homens do Kremlin a iludir-se perante a vontade europeia dos ucranianos. Estavam convencidos de que os conseguiriam paralisar com o pântano da política habitual e a guerra do Donbas.

Nem os perturbou demasiado em 2019 a vitória de Zelensky, convictamente pró-europeu, contra o opositor, o bilionário Poroshenko.

Algures durante a pandemia, Putin mudou de atitude. Exatamente porquê, ainda não sabemos. O que sabemos é que a invasão da Ucrânia despertou todos os adversários cujos movimentos Putin considerava ter sob controle: o corajoso povo ucraniano, antes de mais; a União Europeia, a NATO, os EUA, a esmagadora maioria dos estados representados na ONU.

O homem que queria passar à posteridade como um “ditador benévoloesqueceu-se que a cidadania é a outra face da geopolítica; esqueceu-se que os povos têm um rosto e assim se condenou às “galés da história”.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XXXVII)

30 abril – Mendo Henriques

. A linha ainda mais dura

Corre hoje o dia 66 da invasão da Ucrânia, assinalada pela efeméride do suicídio de Hitler. Há 66 dias que os militares de Putin atacam as forças armadas ucranianas, e bombardeiam cidades e outros alvos civis. Esses ataques mataram ou feriram dezenas de milhares de pessoas. Há crimes de guerra que fazem parte da estratégia de terrorismo de Estado.

A par do confronto militar, o porta-voz Dmitri Peskov especificou as duras condições para acabar a guerra: a Ucrânia deveria “reconhecer que a Crimeia é território russo”, “Donetsk e Luhansk são estados independentes” e deveria ser descartada a adesão à NATO e outros “bloco”.

O ministro Sergey Lavrov também apresenta estas exigências com a sua língua de pau e conhecidos lapsos freudianos. São exigências que, a par da implacável matança levada a cabo pelos militares, completam a estratégia de Putin.

Contudo, face à derrota russa na batalha de Kyiv, a golpes como o afundamento no navio almirante Moskva, e ao arrastar da batalha de Donbas, emerge agora uma linha ainda mais dura no Kremlin.

Essa linha quer uma Rússia em permanente guerra cultural, política e mesmo militar com o Ocidente, com total mobilização da sociedade e da economia. É esse o sentido de uma longa e muito incomum entrevista à Rossiiskaya Gazeta de Nikolai Patrushev, secretário-geral do Conselho de Segurança da Rússia.

Patrushev com Putin

Patrushev, ex-KGB e sucessor de Putin no FSB, já foi descrito como “o homem mais perigoso da Rússia”. É ele que arrasta Putin para posições extremas, alimentando as ambições históricas e a paranoia das conspirações ocidentais. Tornou-se o porta-voz dos Siloviki – os “homens fortes” das forças militares e de segurança – e o mais nacionalista de todos.

Em maio de 2021, escreveu um artigo segundo o qual Ivan o terrível, primeiro czar da Rússia, falecido em 1584, foi alvo dos “cronistas ocidentais” que o retrataram falsamente como um governante sádico, com a fim de desviar as atenções dos crimes da Inquisição espanhola, da caça às bruxas nos países protestantes e do colonialismo europeu em geral.

Ivan o terrível

Na entrevista que é um verdadeiro manifesto dos Siloviki, Patrushev descreve uma América que “dividiu o mundo entre súbditos e inimigos” e que, “acostumada a pisar terra queimada” virou-se contra uma Rússia disposta “a defender a soberania, a cultura, e uma política independente”.

Washington forçou a Ucrânia “repleta de nazis” a lutar, para tentar quebrar a hegemonia russa. É ajudada por uma Europa em decadência moral, e cujo “neo-liberalismo” não tem futuro”.

Patrushev reflete o debate brutal nos bastidores do Kremlin sobre se o conflito atual deve ser escalado. Desde logo, na designação. Ou é “operação militar especial” ou é “guerra”, um nome que os russos estão proibidos de usar sob pena de prisão. Se for guerra, pode haver mobilização em massa das reservas e manutenção dos recrutas após um ano de serviço.

A opção é apelativa para a linha mais dura. Mas para os tecnocratas do Kremlin, equivale a admitir que a operação foi um fracasso e que ficam goradas as negociações que continuam a decorrer secretamente. Para a linha ainda mais dura, a NATO criou uma guerra por procuração e quer reformular e escalar o conflito não por causa da derrota inicial, mas como resposta à suposta escalada do Ocidente.

Outro ponto decisivo do manifesto dos Siloviki, é a nacionalização e militarização da economia. A Rússia deve deixar de confiar apenas nos mecanismos de mercado como recomendam os tecnocratas. As especificidades do país” permitem apertar uma disciplina de implementação como na economia soviética que foi sempre economia de guerra

Colocado num jornal oficial como Rossiiskaya Gazeta, o manifesto da linha mais dura tem um destinatário principal: Vladimir Putin.

Ficou à vista de todos a proposta da “ferramenta” para o presidente arrastar a guerra.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXXVI)

29 de abril 2022- – Mendo Henriques

. Uma parada que é uma charada

9 de Maio foi a data escolhida pela URSS para comemorar a vitória sobre a Alemanha. Foi um triunfo alcançado à custa de sacrifícios incomensuráveis; 15 a 20 milhões de mortos entre civis e militares.

Os territórios que agora são a Bielorússia, Ucrânia e países bálticos e algumas das regiões da federação russa foram sujeitos à ocupação e massacre nazis durante a guerra.

A rendição oficial em Berlim fora a 8 de Maio, mas Estaline deslocou a data para o dia 9. Era Estaline e queria ser diferente. E assim começou o desfile da vitória na Praça Vermelha, tradição herdada pela Federação Russa e que este ano poderá ser um marco na existência de Putin.

Neste ano de 2022 o desfile vai-se repetir, mas como escreveu Karl Marx os factos e personagens de importância na história do mundo ocorrem duas vezes: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”. A parada de Putin é uma autêntica charada.

As unidades que vão desfilar já estão a treinar de noite e de dia, como se não houvesse uma guerra em que já terão morrido uns 20 mil militares russos; como se a economia não estivesse a ser destruída diariamente pelas sanções do mundo livre: como se não houvesse algumas dezenas milhares de presos políticos nas prisões.

A oligarquia e o ditador no Kremlin são insensíveis a essas baixas; sensíveis só são à quebra de poder. 70 anos de marxismo-leninismo desensibilizaram aqueles corações. 22 anos de mafia capitalista tiraram-lhes a cabeça do lugar. O resultado é a farsa.

Nesta era da informação, os especialistas já analisaram as presenças no desfile comunicadas pelo MRD.

(Oliver Alexander @OAlexanderDK) Comparado a anos anteriores, o desfile ostentará apenas 131 veículos, menos cerca de 100 do que é habitual. Não comparecerão grande parte dos veículos de combate como os TOS-1s, Pantsir-S1s, T-80BVMs e BM-30 Smerchs.

Os blindados da Guarda Nacional (Rosgvardia) não participarão; ou porque estão em combate na Ucrânia onde sofreram pesadas perdas; ou porque o segundo-comandante está na prisão há mais de um mês.

Das plataformas de sistemas multimísseis (MLRS) só irão comparecer as menos sofisticadas (Grad e Tornado-G.)

Uma boa parte do desfile consiste em veículos e sistemas de armas da “próxima geração“.

Fazem muita vista, mas só poucos foram fabricados, entre os quais o famoso tanque T-14 Armata, que ainda não foi visto na Ucrânia além do Kurganets-25, VPK-7829 Bumerang . 

A parada tem uma componente aérea com cerca de 100 aeronaves. Os especialistas notaram que há menos helicópteros Kamov-52 e Mi-28 do que em anos anteriores.

O Ka-52 sofreu perdas significativas na Ucrânia e 10% a 20% da frota foi destruída.

No desfile aéreo vai surgir um Ilyushin Il-80, uma aeronave de comando e controle aéreo que jamais aparecera.

É conhecido como “o avião do Juízo Final“, pois foi projetado para comandar em caso de guerra nuclear.

O plano também inclui um Tu-160 a simular um reabastecimento aéreo com 4 MIG-31. Não haverá caças avançados Sukhoy-30SM e Sukhoy-34 a sobrevoar os céus de Moscovo. Os que existem estão a ser usados na Ucrânia, e também 10% a 20% do inventário já foi derrubado.

O desfile deverá encerrar com 8 velhos caças Mig-29, em formação do símbolo Z.

Até nisto surge a farsa; as imagens abundantes da guerra da Ucrânia mostram veículos russos com os sinais de identificação Z (comando sul) e V (comando norte).

Dentro da Rússia, o regime promove-as como símbolos da vitória.

Fora da Rússia, são as iniciais de Volodymir Zelenski, o corajoso presidente que incarna a vontade de um povo.

E esta é a grande diferença.

Na Ucrânia invadida existe um povo em armas, com homens e mulheres dispostos a lutar pelas vidas e territórios, e a escrever uma das epopeias da história.

..um povo em armas.Do lado de Putin, existe uma grande farsa que só terminará quando o grandioso e trágico povo russo o fizer sair de cena.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XXXV)

CIU 28 de abril – Mendo Henriques

. O que pensa o adversário?

A guerra continua, com a novidade de que os incêndios já atingem os automóveis com o símbolo Z em Moscovo, seja obra da oposição russa ou de sabotadores. As tropas russas progridem muito penosamente nalguns pontos do Donbas, ao ritmo de 2 km por dia.

Z (apoiantes da guerra)

E crescem as ameaças aos territórios ucranianos do Mar Negro, a sul da Moldávia.

Existe um registo, contudo, que tem recebido pouca atenção: o que pensam os think-tank russos, as universidades, academias e institutos do Estado, que refletem, ampliam e sustentam a visão do Kremlin? Os think-tank russos, trocadilho quase inevitável, são mais tank do que think. Mas merecem ser analisados até porque fornecem a linguagem que depois encontra eco nos aliados putinistas mundiais.

À minha frente tenho a Anatomia da política anti-russa na Europa (анатомия антироссийской политики в европе) de meados de abril de 2022, elaborada por cientistas da Academia Russa de Ciências e outros centros de investigação. Está totalmente sintonizada com a linha oficial de que a “operação militar especial” foi iniciada para a proteção dos cidadãos da DPR Donetsk e LPR, Lugansk e a desmilitarização e desnazificação da Ucrânia.

A crise ucraniana tornou-se uma ferramenta para os Estados Unidos manterem a influência no cenário mundial. O Ocidente não aceita a integração do “espaço pós-soviético”. A guerra é um “confronto por procuração” do ocidente contra a Rússia.  As sanções são ocasião de uma grande “reinicialização” da economia russa.  O novo paradigma imposto pelo Ocidente impede a desescalada militar. Os EUA e aliados europeus querem o confronto com os “regimes autoritários” que supostamente ameaçam “valores democráticos”.  A “multipolaridade”, a criação de vários centros de poder mundial, é rejeitada pelas organizações ocidentais.

Os russos sabem que a NATO os considera uma ameaça crescente à ordem mundial ocidental; que estão ameaçadas as parcerias com a Bielorrússia, a cooperação com Pequim e o que chamam projetos de integração no “espaço pós-soviético”. Ao serem definidos como adversários e não como um desafio, perdem esperança numa nova “coexistência pacífica”. Consideram que estão a desaparecer os impulsos “pragmáticos” nos países que ainda querem diálogo com a Rússia.

Partem do princípio que são os EUA a determinar a estratégia do Ocidente e que os “parceiros europeus” apenas influenciam os detalhes.

E aqui fazem distinções entre as várias políticas anti-russas na Europa.

A Grã-Bretanha lidera o confronto; mesmo que caia Boris Johnson, a política de Londres continuará o confronto “por procuração” e só mudará se houver deterioração grave da situação económica.  A Alemanha lidera os novos pacotes de sanções económicas e iniciou entregas de armas letais à Ucrânia. Mas as suas importações de gás e petróleo criam um fosso entre interesses empresariais e interesses do estado que podem ter resultados negativos. Quanto a Paris, embora as empresas francesas tenham sido das últimas a deixar a Rússia, a vitória de Macron vai fazer o país alinhar com o “ocidente coletivo”.

Entre outros países e organizações, destaca-se o elogio à atuação do Patriarca Cirilo no domínio da identidade religiosa; especula-se que o Ocidente quer dividir a Ortodoxia Ucraniana, cortando-a de laços com a Igreja e a cultura russas, e impondo valores do ultraliberalismo.

Patriarca Cirilo

A grande questão é, sobretudo, quem vencerá a guerra das sanções.

Os russos presumem que a Europa irá sucumbir, devido ao gás e ao petróleo, pois não tem alternativas imediatas. E invocam um velho aliado, o “general inverno”. No próximo inverno 2022-2023 a Europa sofrerá a dolorosa colisão das suas ambições com a dura realidade.

Os académicos russos antecipam que, seja qual for o desenlace da crise, as atitudes do “Ocidente coletivo” não se modificarão e que o conflito será prolongado. Apesar de não terem a histeria dos meios de comunicação social, alimentam a mesma ilusão de que o Ocidente declarou guerra à nação russa e não a Putin. Enganam-se.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XXXIV)

27 de abril de 2022 – Mendo Henriques 

. A RÃ E O ESCORPIÃO

Diz a antiga fábula de Esopo que um escorpião queria atravessar um rio cuja corrente era demasiado caudalosa. Vendo uma rã que se preparava para o feito, pediu-lhe para montar sobre o dorso. A rã acedeu sob condição, de não ser envenenada. Porém, quando já perto da outra margem, o escorpião cravou o ferrão na rã. “Como foste capaz disto? – perguntou a rã já desfalecer – não vês que vamos ambos morrer?“. Resposta do escorpião: “Que queres? Está na minha natureza!

Vem isto a propósito das tentativas de negociações com Putin. Nas negociações com a Ucrânia, enviou sempre delegações de segundo plano, mostrando não estar interessado em chegar a um acordo. Os ucranianos perceberam essa mensagem e convenceram o mundo livre a apoiá-los: a única maneira de enfrentar Putin é não lhe oferecer uma “rampa de saída” um “dorso” em que ele possa espetar o ferrão.

A ofensiva russa no Donbas continua, mas nenhuma avaliação independente fiável é capaz de prever como terminará esta segunda fase. O exército ucraniano mantém no essencial as posições defensivas, e não está disposto a abrir mão de terreno, mas as forças russas ainda não mostraram sinais de desgaste. Para a decisão no campo de batalha convencional, a Ucrânia conta com cada vez um maior número de armamentos pesados de qualidade que lhe estão a chegar do Ocidente.

A conferência militar de Ramstein, a 26 de abril, com quarenta nações lideradas pelos EUA, foi expressiva desta terceira fase da guerra em que se afigura possível uma futura vitória estratégica da Ucrânia. Um observador comparou-a à Conferência de Teerão de 1943, em que os EUA e a Grã-Bretanha se comprometeram com a URSS a abrir uma segunda frente contra a Alemanha nazi. O agressor agora é outro.

Entretanto, acumulam-se informações sobre a profunda perturbação entre as elites russas que parecem tão instáveis quanto no início da década de 1990.

  1. Começaram a registar-se em cidades russas incêndios e explosões em depósitos de combustíveis, de equipamentos, e instalações do complexo militar industrial e mesmo palácios de oligarcas. Ainda não estão claras as causas.
  2. Existem lutas óbvias no Kremlin entre os “Siloviki”, as altas patentes militares e os serviços de segurança. Segundo os principais canais russos Meduza, e CEPA há prisões confirmadas de altas patentes de todos os serviços de segurança e defesa e vazamentos de dados sem precedentes.
  3. Ocorre uma estranha vaga de suicídios/assassinatos de grandes empresários, nalguns casos com as famílias. Desde fevereiro, pelo menos seis “oligarcas” foram encontrados mortos em condições estranhas, vários deles ligados à Gazprom. O presidente Putin é sinistramente conhecido desde há muito tempo pelas medidas extremas que toma para silenciar os opositores. Em 2017, o USA TODAY publicou um relatório de pelo menos 38 oligarcas que morreram ou desapareceram em um período de três anos.

https://fortune.com/2022/04/26/russian-oligarchs-deaths-strange-circumstances-this-year/

Ainda sobre a fábula da rã e do escorpião, a moral é que não vale a pena confiar no escorpião; só a lógica e as boas intenções não ajudam quando estamos a lidar com animais venenosos e nem todos sabem agir segundo o seu melhor interesse.

Como afirmou em Berlim, a primeira-ministra estoniana Kaja KallasO gás pode ser caro, mas a liberdade não tem preço.”

Amanhã é outro dia.

em Berlim, a primeira-ministra estoniana Kaja Kallas

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XXXIII)

CIU 26 de abril – Mendo Henriques

. Putin e o paganismo cristão

A narrativa da Páscoa cristã é de que, após a colaboração sinistra entre os grandes sacerdotes saduceus e os governantes romanos, Jesus Cristo foi preso, torturado e crucificado e, depois, ressuscitou.

Algo de semelhante se passa entre o presidente Putin e o patriarca Cirilo no modo como lidam com as nações russa e ucraniana. São aliados de longa data. Segundo John Alonso Dick, professor em Ghent, o pai de Cirilo, sacerdote em Leningrado, batizou Putin em segredo em 1952, e Cirilo foi informador da KGB onde Putin fez a sua carreira.

Mesmo que assim não seja, estão sempre juntos nas celebrações da Páscoa, em mosteiros e locais de peregrinação. Putin gosta de exibir ostensivamente a sua religiosidade: cruz de prata no pescoço, beijar ícones e mergulho em pia de água gelada.

Esta exibição religiosa marca a guerra russo-ucraniana e é uma deturpação fundamentalista do cristianismo que está nas origens da Rússia.

Desde que, por volta do ano 980 Vladimiro levou à conversão os povos que então dominava, Kiev foi o coração do cristianismo ortodoxo na Rússia e durante quinhentos anos assim permaneceu. Tudo mudou em 1448, qu

ando a Igreja Ortodoxa Russa do principado de Moscovo se tornou independente do Patriarcado de Constantinopla.

Em 1453 Constantinopla foi conquistada pelos otomanos, e Santa Sofia tornou-se uma mesquita. Foi um golpe de que a Europa do Leste nunca recuperou até ao presente.

A Igreja Russa passou a encarar-se como sucessora de Constantinopla e Moscovo como a Terceira Roma, extensiva todas as igrejas ortodoxas.

Após a Revolução de 1917, a URSS pretendeu eliminar a religião e estabelecer o ateísmo estatal. Perseguiu e matou crentes, destruiu templos e controlou o clero para ajudar na Grande Guerra Patriótica. Com o colapso soviético de 1991, a Igreja Ortodoxa Russa ressuscitou.

Aleixo II de Leningrado, tornou-se Patriarca de Moscovo em 1990 e presidiu a um regresso muito rápido do culto, após 70 anos de repressão. A Igreja Ortodoxa trabalhou para preencher o vazio social e ideológico, mas tornando-se em grande parte um agente do poder estatal.

Em 2008 Vladimir Mikhailovich Gundyayev (n. 1946), foi eleito como Patriarca Kirill (Cirilo) e prosseguiu a expansão da Igreja.

Em 2016 alcançara 174 dioceses, 361 bispos e 34.764 paróquias servidas por 39.800 clérigos. Havia 926 mosteiros e 30 escolas teológicas. E mais de 100 milhões de crentes no mundo russo (russky mir)

Nos sermões semanais televisionados, Cirilo descreve a guerra na Ucrânia como batalha apocalíptica contra as forças do mal que tentam destruir a “unidade dada por Deus à Santa Rússia“. Nunca refere o que a ética cristã tem a dizer sobre bombardeamentos de hospitais, prédios e escolas, violações e matança de civis.

Tal com Putin, considera que os povos da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia partilham uma herança espiritual e nacional comum. Krym nash! (A Crimeia é nossa!), foi o grito de regozijo de Putin a 18 de março de 2014, dia do referendo da Crimeia.

Depois, sucedeu aconteceu algo que o Presidente e o Patriarca não gostaram. Nasceu a Igreja Ortodoxa da Ucrânia (OCU), independente do Patriarcado de Moscou. Kiev voltou a renascer e ligada ao patriarcado de Istambul.

Esse fator é mais um dos motivos da guerra russo-ucraniana e da religião militarizada. O exemplo mais expressivo é a Basílica da Vitória, a uns 60 km de Moscovo, edificada em 2020, pelo Ministério da Defesa.

Basílica da Vitória

https://www.aa.com.tr/en/europe/russia-builds-cathedral-to-commemorate-military-victory/1895649

Esta glorificação do poderio militar foi planeada após a ocupação da Crimeia e segue o modelo da catedral de Sebastopol.

Construída em metal e vidro, e um milhão de tijolos doados pela Kalashnikov, pintada em cáqui, evoca uma máquina militar.

Os frescos e vitrais exaltam os combatentes russos. Até mesmo Jesus Cristo empunha uma espada. Escapou de ter mosaicos exaltando Putin, Shoigu e Gerasimov e o referendo da Crimeia.

O paganismo cristão

Jesus Cristo empunha espada…

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXXII)

25 de abril 2022- – Mendo Henriques

. Bom dia, democracia e ainda os Paraquedistas (2a parte)

25 de abril de 1974 foi um bom dia para a Democracia e a guerra russo-ucraniana é um conflito entre ditadura e democracia.

O modo como está a ser travada e o seu desenlace serão decisivos para ditar o futuro das democracias muito imperfeitas da Europa e das ditaduras criminosas da Federação Russa e da República Popular da China.

24 de abril de 2022 também foi um bom dia. O presidente Macron venceu de modo convicente Le Pen, a candidata da direita radical putinista.

Macron falou numa “nação ecológica” que ajude a combater o fatalismo e o cansaço ocidental. Vive la France! No mesmo dia, os eleitores da Eslovénia substituíram o governo de direita radical por um ecologista liberal. Foi bom para a França. Bom para a Europa. Bom para a Ucrânia. Bom para a NATO.

Entretanto, ardem mais estruturas no interior da Rússia. Desta vez são os depósitos de armamentos e combustível em Briansk e as mansões de alguns governantes. E há fogos da Sibéria onde não existem unidades militares para combater as chamas porque estão na linha da frente. As insuficiências russas aumentam a cada dia que passa.

Retrospetivamente, a derrota dos paraquedistas em Kiyv, foi o primeiro sinal do desastre. Um mês após a retirada de Kyiv, as equipas de reportagem da BBC e o jornalista Mark Urban foram à cidade de Kostroma, 300km a nordeste de Moscovo, a base do 331º Regimento Para-quedista das Guardas e também vasculharam as redes jornalísticas e sociais, em particular o kontaCtor o equivalente ao Facebook.

( https://www.youtube.com/watch?v=chwUmbOTjPU&t=4s  )

O primeiro facto que saltou à vista é o que o comandante da unidade, coronel Sergei Sukharev, e o segundo-comandante, major Sergei Krylov, caíram em combate junto a Kyiv.

O canal da TV militar russa mostrou o funeral e condecoração póstuma de Sukharev. O vice-ministro da defesa fez o elogio da praxe: Sergey deu a vida pelo futuro da nossa nação, um futuro sem nazismo.

A realidade é diferente. Sukharev e o 331º Regimento estiveram envolvidos na batalha e massacre da cidade cercada de Ilovaisk no Donbas, em 2014, em que cerca de 1.000 soldados ucranianos perderam a vida. https://www.news.com.au/world/top-russian-commander-who-masterminded-a-massacre-killed-on-battlefield-in-ukraine/news-story/8c2491032c228013bda51214842f5bc6

A morte do coronel Sukharev e do major Krilov resumem o fracasso brutal.

O 331º participou das guerras chechenas de 2000 e da guerra russo-georgiana de 2008. Em 2021, participou na Crimeia em manobras militares intimidatórias.

Em janeiro de 2022 esteve em missão de política de choque na emergência do Cazaquistão. Segundo o major Krilov uma missão de relações de vizinhança e cordialidade. Em fevereiro deste ano, foi para Rechytsa na Bielorrússia, e depois na tentativa de conquista do aeroporto de Hostomel. Repetidamente emboscado por forças especiais ucranianas, abandonou viaturas mecanizadas (BMP) o 331º acabou por retirar.

Em Kostroma, as mães e mulheres dos militares comentam a desgraça. A ansiedade é evidente; sabem que os media do governo não dizem a verdade ao reafirmarem que tudo corre segundo o plano.

Umas preferem a memória piedosa: “Serjhova, meu marido carinhoso, agora estás no céu e vai-nos proteger lá; serás sempre um verdadeiro herói para mim. Outras registam o alarme: “Ninguém sabe de nada; o 331º regimento está a desparecer”. Diz a mãe do sargento Sergey Duganov Kostroma já perdeu tantos jovens, meu Deus: quantas mais notificações de morte iremos receber?

Outros estão indignados O presidente [ **$%# ] enviou para a morte milhares de jovens que poderiam ter vidas longas: no século XXI, é surreal. A internet não perdoa e surgem provocações de ucranianos “Já morreram mais de 15 mil Zombis [ $&%#] fascistas da Rússia e continuarão a morrer enquanto estiverem em nossa terra.

Alexandra responde ao ucraniano: Vai-te embora, maldito nazi; os nossos Paraquedistas são verdadeiros heróis: nunca mataram civis nem crianças.

A 11 de março os repórteres da BBC anotaram os nomes de 39 militares mortos do 331ª. Os moradores disseram-lhes que seriam cerca de uma centena, muitos mais do que nos nove anos da guerra do Afeganistão.

Em quatro semanas de combate os boinas azuis de Kostroma terão sofrido cerca de 500 baixas entre mortos, desaparecidos, prisioneiros e ferido graves, um terço da força. Uma perda brutal para uma unidade considerada de elite.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXXI)

24 de abril 2022- – Mendo Henriques

. Páscoa e Paraquedistas – ( 1ª parte)

Domingo, 24 de abril, foi a Páscoa ortodoxa. Como quase tudo no mundo russo é um evento em que religião e  nacionalidade se fundem, num evento mais primitivo e também mais primordial do que no Ocidente e com uma intensidade fácil de ser manipulada por um Estado que não pratica a separação entre poderes constitucionais.

Um exemplo fascinante desta fusão entre guerra e liturgia, entre interesses coletivos e individuais, é dado pelas tropas aerotransportadas da Rússia (Vozdushno-desantnye voyska Rossii, VDV).

Os boinas azuis comemoram o dia da unidade a 2 de agosto, dia do Profeta Elias. Nessa data, juntam-se militares, veteranos, familiares e amigos para celebrações públicas do patrono, representado num carro de fogo que ascende aos céus. Mais prosaicamente, é uma tradição comemorada todos os anos em que vem ao de cima a camaradagem dos militares.

No caso dos pára-quedistas sempre com facetas das suas posturas ameaçadoras que chegam ao ponto de se confrontarem com a polícia.

Os pára-quedistas têm um estatuto lendário nas forças armadas russas. São uma força de elite que compõe a Reserva do Alto Comando Supremo e constituem um ramo independente, distintos do Exército e da Força Aérea. Operam como uma força de infantaria mecanizada. A sua missão tática é liderar qualquer ofensiva, sendo lançados atrás das linhas inimigas, e mantendo os locais ocupados até chegarem reforços.

O orgulhoso lema que usam diz assim: “Niguém, senão nós. Os recrutas são descritos como os nossos melhores entre os melhores. Uma unidade participa sempre nos desfiles da Praça Vermelha. A propaganda de recrutamento diz coisas mais prosaicas, semelhantes às de uma empresa: “Mais do que um trabalho é uma vida emocionante; uma oportunidade única de testar seus limites e ver o mundo “.

A realidade das missões dos para-quedistas russos é muito diferente do apregoado, como explica Kamil Galeev.

Em praticamente todos os conflitos – Afeganistão, Karabakh, Geórgia, Chechénia – operaram ​​como infantaria regular. Desde a Segunda Guerra Mundial, só foram lançados do ar na repressão das revoltas “fascistas” da Hungria, em 1956, da Checoslováquia em 1968 e … em Kyiv, 2022.

São a tropa de choque do regime, uma reserva para reprimir motins. Quando em janeiro deste ano, rebentou uma insurreição no Cazaquistão, o Kremlin enviou a sua polícia de choque, os soldados com listas azuis nas camisas. Como a Ucrânia foi considerada uma província rebelde, por Putin, enviaram os pára-quedistas para a frente, para o aeroporto de Hostomel, junto a Kiyv a 24 de fevereiro, desembarcados de helicópteros.

A 1 de março surgiu uma notícia surpreendente. Foi confirmada a morte em Hostomel do major general para-quedista Andrey Suhovetsky

General Andrey Suhovetsky

, um dos primeiros dos dez generais que a Rússia até agora perdeu. De repente, fez-se luz que Kyiv não iria cair em três dias. A operação de Hostomel estava a falhar. Em primeiro lugar, após 2014, os ucranianos reconstruíram o exército e o estado para um confronto que adivinhavam iminente.

E quando veio a invasão de 2022, os ucranianos não sentiram medo. E se não há medo e há resistência organizada então uma operação de polícia de choque não funciona, mesmo que liderada pelos paraquedistas

Amanhã é outro dia

O profeta Elias, no seu carro de fogo, com a boina azul dos paraquedistas russos

pára-quedistas russos

SÃO PETERSBURGO, RÚSSIA – 2017/08/02: Ex-paraquedistas russos durante as celebrações russas do “Dia dos paraquedistas” na Praça Dvortsovaya, em São Petersburgo, em 2 de agosto de 2017.

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Crónica da guerra da Ucrânia, à distância (XXX)

24 de abril de 2022 – Mendo Henriques (*)

(*) Professor da Universidade Católica e ex- Director do Departamento de Investigação de Defesa do IDN

. O que esconde Azovstal?

O ataque a Mariupol começou a 25 de fevereiro. Dois meses depois, cerca de 2 mil defensores permanecem no imenso complexo de Azovstal, cujos subterrâneos do tempo da Guerra Fria foram construídos para abrigar quase 40 mil operários, em caso de ataque nuclear.

Talvez existam pequenas bolsas de resistência na cidade, mas os russos controlam todos os corredores de saída, nomeadamente por onde passam os civis que conseguem sair.

A decisão de Putin a 22 de abril de ordenar o cerco de Azovstal, em vez de assalto final, chamou uma vez mais a atenção para a proeza dos defensores, nesta emblemática batalha da guerra russo-ucraniana.

Para não ter baixas apreciáveis entre os batalhões russos, do Donetsk e chechenos, bastará aos atacantes continuar a massacrar o complexo com artilharia, mísseis e bombardeiros russos Tupolev-22 Backfire, até obter a vitória, devido ao esgotamento de munições ou alimentos dos defensores.

Mariupol, na costa do Mar de Azov, está a 50 km da fronteira russa. Desde o início da guerra em 2014 tem sido a linha de frente. E como mostra o nome, a “cidade de Maria” foi fundada por cristãos, neste caso, os deportados da Crimeia pela Rússia na década de 1770.

Catarina II impôs em 1774 um tratado de paz que proclamou a Crimeia como estado “soberano”, livre dos otomanos, mas ocupada pelo exército russo.

Todos os cativos e escravos cristãos deveriam ser “libertados” e devolvidos à Rússia. Para as autoridades todos os cristãos na Crimeia eram cativos. E assim se estabeleceram na costa do Mar de Azov e fundaram novas povoações com o nome das vilas de origem: Yalta, Mangush, Velha Crimeia.

A principal destas povoações de deportados foi Mariupol, cujo brasão era uma cruz sobre um crescente, marcando o triunfo do cristianismo. A área em redor era escassamente povoada na época. Afinal, é a estepe euro-asiática, na rota de migração dos nómadas da Ásia para a Europa. Quem tentasse ali estabelecer-se, era eliminado por hordas de invasores.

Este corredor da estepe eurasiana moldou a história nacional. Existe a antiga Ucrânia, a ocidente, de cor amarela, e existe a nova Ucrânia, a leste, com costa marítima, de cor azul, onde se enquadra a bacia do Don.

Os mapas eleitorais da atualidade refletem esta diferença. E as ambições territoriais de Putin também.

Em 1850 Mariupol era apenas uma pequena cidade mercantil. Cresceu com a revolução industrial, tal como toda a região de Donbas. Em 1900 tornara-se um grande centro logístico e industrial e um importante porto. Tinha duas grandes siderurgias: uma americana e uma belga e efetuava grande parte das exportações do Donbas.

A Revolução e a Guerra Civil deram um grande golpe na indústria dos “oligarcas” ocidentais. Com a nacionalização, as cadeias de produção foram interrompidas. Quando Estaline quis re-industrializar a URSS com os planos quinquenais a partir de 1927, voltou-se de novo para o Ocidente, criando várias empresas para negociar com os EUA, que foram fundidas para formar a Amtorg (American Trading Organization). E assim voltamos a Azovstal.

Da esquerda para a direita, Valery I.Mezhlauk, Henry Ford e Saul G. Bron

A Amtorg era uma holding americana, operando segundo a lei americana, mas controlada pelo governo soviético e chave da industrialização. Em 1927, Stalin nomeou como seu CEO Saul Bron, um economista de origem judaica nascido em Odessa e formado em Zurique. Saul Bron contactou com Albert Kahn,

Albert Kahn

um capitão de indústria de Detroit. Não só Kahn esboçou projetos como se encarregou de organizar a industrialização. Tratava-se de importar soluções prontas da América. Henry Ford ajudou a montar a célebre fábrica de automóveis de Gorki.

Assim nasceram desde 1930 Magnitostroy, Uralmashstroy, Azovstal, Zaporozhstal e outros grandes projetos industriais soviéticos, construídos segundo métodos americanos. Quando a liderança política e militar da URSS foi brutalmente massacrada por Estaline em 1937-1938, entre os assassinados contava-se Saul Bron.

O seu fantasma paira por entre a paisagem industrial de Azovstal e os heroicos defensores ucranianos.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXIX)

22 de abril 2022- – Mendo Henriques

. Em cada dia que passa

Em cada dia que passa, a invasão de Putin revela-se com uma nova faceta, ora aterradora, ora esperançosa, ora equívoca. Entretanto, aproxima-se o 9 de maio, a data que poderá ser tentadora para o ditador do Kremlin cessar fogo e declarar uma vitória unilateral que a Ucrânia não aceitará.

A 21 de abril um violento incêndio destruiu um importante Instituto de Investigação do Ministério da Defesa da Rússia na cidade de Tver, 180 quilómetros a noroeste de Moscovo, provocando mortos e feridos. Desastre de grande simbolismo pois foi lá que foram concebidos os sistemas de mísseis Iskander e S-400.

Lança mísseis Iskander

A 22 de abril, em Korolyov, perto de Moscovo, a chamada “capital espacial da Rússia”, começou outro grande incêndio estando a arder  várias edifícios. Ainda não se conhece a origem da sabotagem destas empresas e institutos do complexo russo industrial militar e aero espacial mas a lição é evidente, a juntar a outras destruições de vias férreas e depósitos de combustível; os atos de guerra chegaram ao coração da Rússia.

Korolyov cidade espacial da Rússia

A ofensiva no Donbas parece marcada pela necessidade de algum sucesso russo até 9 de maio.

Para isso, talvez Putin tenha começado cedo demais. As tropas invasoras estão em piores condições no que a 24 de fevereiro. Quase metade do equipamento parece ter ficado inoperacional e a Rússia conta agora apenas com um pouco mais de 80 grupos de batlhão no território ucraniano, em vez dos 120 iniciais. A segunda potência nuclear do mundo, aposta cada vez mais apenas nos mísseis e na artilharia pesada.

Os países da NATO continuam a enviar material pesado de apoio. Hoje soube-se que a França, finalmente, enviará até ao fim do mês sistemas CÉSAR, de artilharia auto populsada. É um sinal antecipador da vitória de Macron no próximo Domingo e um reforço da Europa das liberdades. A Holanda, a Inglaterra e países de Visegrad têm enviado tanques. Os sistemas de armas decisivos – mísseis antitanque e antiaéreos – chegaram a tempo de os ucranianos vencerem a batalha de Kyiv.

Para uma aliança que estava em coma cerebral a reação da NATO foi extraordinária. A vontade de cumprir o Artigo 5º, que promete que a aliança responderá em conjunto a um ataque a qualquer um de seus membros ” empreendendo imediatamente, individualmente e em conjunto com as outras Partes, as ações que julgar necessárias, incluindo o uso da força armada. é o maior dissuassor contra mais aventuras de Putin. Quando a Suécia e Finlândia, tradicionalmente neutros, “desembarcarem” na NATO, o Kremlin sentir-se-á atingido a fundo. O regime terá de mudar para não se manter no desastre estratégico provocado pelo seu presidente atual.

A história avaliará os motivos e as decisões finais de Putin ainda guardadas na sua mente mas um dado é certo: a sua tragédia, a sua hybris levou ao despertar do gigante adormecido que são as democracias ocidentais e ocidentalizadas.

No conflito, é normal que a mais hesitante das potências europeias seja a Alemanha. O país tinha uma tradição militar prussiana que, entre 1745 e 1945, o conduziu a guerras em cadeia. A nova Alemanha pós 1945 não foi feita pela guerra (e vice-versa).

A política de leste, Ostpolitik, lançada pelo chanceler alemão Willy Brandt nos anos 70, permitiu relações razoáveis com a URSS A unificação pacífica dos dois estados alemães em 1989 foi o exemplo mais evidente do sucesso desta política e da capacidade de fazer estado sem guerra. O atual chanceler Scholz, SPD, não pode deitar borda fora que a Alemanha se tenha tornado um estado civil exemplar. No seu discurso de 27 de fevereiro fez de forma magistral uma inversão de política, sem sequer avisar os parceiros da coligação e os apoios indiretos à Ucrânia são crescentes. Agora é ter paciência.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXVIII)

20 de abril 2022- – Mendo Henriques

. O despertar do gigante adormecido

Os estados fazem a guerra e vice-versa, escreveu o sociólogo americano Charles Tilly no que é um resumo da história política moderna. A Guerra Fria criou o que podemos chamar de estados civis na Europa: o tamanho e a eficácia dos exércitos europeus diminuíram; as fronteiras não eram preocupantes; e o problema da “segurança” adquiriu um significado económico e social em vez de militar.

A única grande exceção à ordem não-violenta do pós-guerra foi a dolorosa dissolução da ex-Iugoslávia, que produziu uma série de conflitos  entre os estados sucessores. Mas por mais terríveis que esses conflitos tenham sido para os envolvidos, o impacto na ordem europeia foi nulo. A Europa crescia como que por inércia com o fim da Guerra Fria. Eram outros tempos e a possibilidade de guerra às portas estava fora da imaginação da maioria dos europeus.

A guerra na Ucrânia mudou tudo. É um separador de águas e a história registará o antes e o depois desta guerra que despertou o gigante adormecido que é a Europa.

Desde a América do Sul à Ásia, passando pela Europa e EUA, o mundo despertou para o facto de que o ataque à democracia ucraniana é uma ameaça a todas as democracias “Nós, na oposição russa, dizíamos há muito tempo que embora Putin fosse um problema nosso, em breve se tornaria um problema mundial” afirmou o campeão de xadrez Khasparov, um dos coordenadores da oposição russa em sintonia com Kara-Murza e Alexei Navalny, agora juntos a milhares de presos políticos.

A União Europeia despertou e sua resposta à invasão russa tem sido unificada e positiva. Apesar de muitas tensões, respondeu com entusiasmo e energia fora do habitual.

A cimeira de Versailles de 10 e 11 de março, deixou muito claro o caminho a tomar. As ajudas humanitárias foram e estão a ser adequadas. As sanções maciças sobre o estado russo e a cleptocracia do Kremlin fizeram-se sentir desde a primeira hora. A transferência de armas letais para os combatentes ucranianos prossegue a bom ritmo, com os altos e baixos previsíveis na posição alemã. E na extraordinária visita a Butcha e Kiyv em março, a presidente Ursula von der Leyen apresentou o convite/dossier de acesso da Ucrânia à Europa; ontem mesmo a república ucraniana apresentou as respostas a esse dossier.

O gigante adormecido da democracia levou tempo a despertar para o problema mundial, mas despertou. Seja qual for o desenlace da guerra, a Suécia ( e a Finlândia) deixará de ser um país neutral, e com o peso industrial e militar central que possui tornar-se-á o centro de uma aliança no mar Báltico. Seja qual for o desenlace da guerra, a Alemanha terá ressurgido como um país “normal”, de novo com um exército digno do nome e que irá diversificar as fontes de energia. Seja qual for o desenlace da guerra, a Inglaterra mostrou que pertence à Europa por necessidade estratégica; uma vez ultrapassados os lamentáveis episódios do Brexit e de Boris, poderá renegociar o seu reingresso na União Europeia. Seja qual for o desenlace da guerra, a Turquia mostrou ser um país de muçulmanos com uma política prudente, uma economia industrializada, com população a crescer e que tem tudo o que precisa junto às suas fronteiras. Seja qual for o desenlace da guerra, a França do presidente Macron conseguirá agregar apoios na Europa Ocidental e em África, o que muito interessa a Portugal.

Entretanto a ofensiva renovada da Rússia no Donbas foi marcada por bombardeios e bombardeamentos ao longo das linhas de frente, mas sem ganhos territoriais apreciáveis. Há cada vez mais notícias de que quase tudo nas forças armadas russas está em maus lencóis devido à profunda corrupção.

É provável que os combates se intensifiquem à medida que a Rússia aumente a presença militar. Contudo, tropas sem moral e generais sem outro tino que o esmagamento de cidades são garantia da derrota de Putin; dois meses atrás estava à vontade no seu xadrez geoplítico; agora luta pela sua sobrevivência.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXVII)

19 de abril 2022- Mendo Henriques

. O delírio chega a Moscovo

A tão anunciada ofensiva de Putin no Donbass terá começado ontem a 18 de abril.

Após acumular forças durante várias semanas e realizar ataques aéreos e com mísseis a toda a Ucrânia, as forças russas entraram na pequena cidade de Kreminna já antes arrasada pelo bombardeamento. Decerto que ocorrerão mais avanços em pinça, a partir de Izyum e Donetsk, com as tropas ucranianas a retirarem-se para posições previamente preparadas. No briefing matinal, o portavoz do ministério da Defesa da Federação Russa, o major-general Igor Konashenkov, com a mesma cara de pau com que anunciou que o Moskva se afundou e que Mariupol está quase conquistada (há 45 dias) deu a entender que os avanços correm conforme o plano.

Entretanto, os ânimos estão a aquecer em Moscovo.

A secura dos militares contrasta com a histeria da propaganda oficial. Nos canais da televisão estatal – Rússia 1 ou RT – jornalistas e opinantes sucedem-se numa escalada de palavras que não esconde a ansiedade pelo mau rumo que as coisas tomaram.

Um membro da Duma, ao ver uma bandeira ucraniana arreada em Mariupol, comenta que é boa ideia usar a bandeira soviética para unir ucranianos e russos! Um comentador enuncia os objetivos da Rússia nesta guerra: um passo para a restauração da União Soviética, absorvendo a Ucrânia e a Bielorrússia e talvez os estados bálticos e a Moldávia. O deputado Vyacheslav Nikonov (neto de Molotov, ministro de Estaline) declara: “Somos a personificação das forças do bem. Estamos num confronto metafísico entre as forças do bem e do mal… Esta é uma guerra santa que travamos e devemos vencer.”

Nos pivots da televisão – que há muito sigo – o rosto antes confiante e arrogante deu lugar a um semblante ansioso. Margarida Simonyan, diretora da RT cancelada no Ocidente, vem denunciar ansiosamente a colaboração da NATO. Outra conhecida pivot considera que após o afundamento do MOSKVA, a Rússia já está na terceira guerra mundial, contra a NATO ou contra as infraestruturas da NATO. Um comentador chega a dizer que é possível considerar o uso de “armas absolutas”.

A população russa que assiste a estas lavagens de cérebro  pode ficar convicta durante algum tempo que a Guerra da Ucrânia não é de agressão e que está em jogo a salvação da Rússia. A maioria dos mais velhos pensará assim até começar a receber as notícias dos mortos em combate. Muitos dos mais jovens desligam da guerra e das televisões até porque não existe mobilização geral

As perdas russas em combate, entre 24 de fevereiro e 18 abril são maciças. Segundo estimativas do Pentágono são de entre 60 a 80% das indicadas pelo Estado-Maior do Exército Ucraniano: 169 Aviões, 150 Helicópteros, 386 Veículos de artilharia, 802 Tanques, 2.063 Veículos blindados e, sobretudo, 20.800 militares mortos.

As tropas não têm ideia do que estão a fazer na Ucrânia. E que exército perde 8 dos seus 40 generais em 7 semanas (mais 33 coronéis, comandantes de regimentos)?

Quanto mais um observador escuta os propagandistas, mais fica convencido de que Putin será derrotado. Nenhum deles parece conseguir abrir a boca sem mentir, ou sem usar argumentos delirantes. As grandes despesas militares da Rússia certamente que maximizaram as receitas dos produtores de material bélico, muitos deles antigos oligarcas agora nacionalizados.

A Rússia não tem um exército funcional.

Podem agradecer a Putin a corrupção em grande escala! Em 14 de abril, mais de vinte oficiais do estado maior foram presos por desvio de fundos de 10 biliões de dólares desde 2014, para operações logísticas e de organizações pró russas na Ucrânia.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXVI)

18 de abril 2022- – Mendo Henriques

. O papa Francisco vai à Ucrânia?

Papa beija bandeira da Ucrânia (*)

(*) Papa Francisco beija uma bandeira enviada da cidade de Butcha na audiência geral, em 6 de abril de 2022. (Foto da EPA-EFE /ETTORE FERRARI / MaxPPP)

Enquanto a Rússia lança mísseis de longo alcance sobre a Ucrânia, no que pode ser um exercício de “amolecimento” antes de novo grande esforço na região leste de Donbas, é de repensar quem se esforça pela paz.

O Papa Francisco merece admiração e apoio pelos esforços incansáveis ​​em promover a paz e a boa vontade entre nações, povos e religiões, e por nos lembrar que vivemos todos no mesmo planeta.  A preocupação contra as desigualdades; a coragem com que protege os direitos dos migrantes e refugiados; o modo como lançou o tema difícil da sinodalidade para contrariar os populismos carismáticos, dentro e fora da igreja; tudo mostra que se recusa a dividir o mundo em preto e branco, vencedores e vencidos, vilões e heróis, maus e justos.

A sua ansiedade perante a invasão russa e a destruição é evidente. Mesmo sem mencionar o nome da nação agressora, Francisco deixou claro que está insatisfeito com Vladimir Putin e o seu “capelão” ortodoxo, Kirill  Patriarca de Moscovo e de toda a Rússia.

O Papa não cita nomes porque, segundo alguns, tem a expectativa de garantir um papel para si ou para os diplomatas da Santa Sé na mediação do fim do “conflito“. Declarou mesmo que o assunto está em cima da mesa. Quem segue o assunto há anos, sabe que provavelmente não é esse o objetivo da Santa Sé.

Todos os sinais indicam que os dirigentes da Igreja Ortodoxa – na Rússia e na Ucrânia – não confiariam no “Papa de Roma” ou a quem lhe obedeça para mediar o conflito.

Em 2016 Francisco e Kirill encontraram-se em Cuba, e assinaram uma Declaração Conjunta pela paz no mundo, Contudo, as relações russo-ortodoxas e católicas romanas não mudaram pois há desconfianças que vêm do passado e outras do presente. Desde a invasão de 24 de fevereiro, falaram apenas uma vez, por iniciativa do patriarca. Uma visita papal a Kiev pouco adiantaria para resolver o conflito e nem os ortodoxos russos nem os da Ucrânia parecem entusiasmados.

Quem convida Francisco a visitar Kiev? Em primeiro lugar, o presidente Volodymyr Zelensky, judeu secular que, muito corretamente, nunca toma partido nas disputas eclesiais na Ucrânia. Depois, o arcebispo maior Sviatolslav Shevchuk, da Igreja Greco-Católica Ucraniana (Uniata), que é ortodoxa no rito, mas fiel ao papado.

Os ortodoxos na Rússia e na Ucrânia não apreciam muito estes católicos bizantinos. Tem ainda o apoio do arcebispo Mieczysław Mokrzycki, chefe dos católicos de rito latino, em Lviv, na parte do país muito ligada à Polónia. E finalmente o embaixador na Santa Sé, Andrii Yurash, um católico bizantino e muito ativo.

O papa Francisco desejaria, como todos, uma solução pacífica para a Ucrânia. Mas depara-se com a “impotência” da ONU e da diplomacia papal. O cardeal Pietro Parolin afirmou que a Santa Sé está em diálogo com a Rússia e a Ucrânia desde 2014 para evitar a guerra, mas admitiu que esses esforços nada conseguiram. A Santa Sé será sempre um mediador imparcial. Mas num país em que os católicos (latinos e bizantinos) são apenas 5 milhões, 11% da população, o papa não pode fazer milagres e é difícil que os russos confiem na sua neutralidade.

Francisco tem sido uma luz para a Igreja Católica e a humanidade, crente e descrente. Não pode é resolver todos os problemas do mundo, as guerras e outros males. Aparte a forte minoria conspirativa de tradicionalistas e reacionários católicos, os crentes sentem-se abençoados por ter um papa que segue as pisadas de Jesus Cristo.

Mas ele não é o Cristo. Não faz milagres. Os que insistem na visita papal à Ucrânia, devastada pela guerra, pedem um milagre. Um papa – mesmo Francisco – não tem o poder e influência sobre-humanos que muitos lhe atribuam. Temos de admitir que nesta situação, o seu discurso sobre a paz para os descrentes, e as suas orações para os crentes, é o melhor que nos pode oferecer. E é muito.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXV)

17 de abril 2022- Mendo Henrique

. Páscoa Feliz

Faço votos de que todos os leitores tenham vivido um Domingo de Páscoa feliz.

A Páscoa – de cristãos, de judeus e de quem não crê – representa o triunfo da vida sobre a morte. Que às terras da Ucrânia chegue em breve a libertação e a vida.

Nada mais há de importante a dizer do que celebrar este grande mistério.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância (XXIV)

16 de abril – Mendo Henriques

. Invasão, capitalismo financeiro e anticorrupção

As sanções económicas impostas pela Europa, EUA e mais aliados ao estado russo e apoiantes de Putin, devido à invasão da Ucrânia, obrigam a examinar a cumplicidade ocidental na lavagem de dinheiro e investimentos dos oligarcas russos no exterior, como já os Panama Papers tinham feito.

O livro de Bill Browder que acabei de ler em pdf e saído esta semana em Nova Iorque “Freezing Order” é de quem desde há mais de quinze anos sofreu na pele e viu os seus amigos sofrer e morrer; são vítimas das elites corruptas do Kremlin, a começar por Putin; protegeram ganhos ilícitos com a ajuda de advogados, banqueiros, lobistas, e políticos ocidentais.

Browder nasceu nos Estados Unidos e tem nacionalidade britânica; formado em Stanford, pertence a elite do capitalismo financeiro.

Deslocou-se para a Rússia na década de 1990 com a vaga de privatizações, e criou um fundo para investidores estrangeiros que no início dos anos 2000 acumulava 4,5 biliões de dólares.

Chamava-se apropriadamente Hermitage Fund tal como o Museu dos tesouros de São Petersburgo. Tinha um grande senão. Muitas das grandes empresas em que o fundo investia estavam minadas pela fraude e corrupção de acionistas maioritários, ligados ao Kremlin. Quando começou a revelar estes detalhes, Browder foi impedido de entrar na Rússia em 2005 e declarado uma ameaça à segurança nacional.

Para alguns dos seus parceiros russos, o destino foi pior, e mesmo fatal. Em livro anterior, “Aviso Vermelho” Browder contou a história de Sergei Magnitsky, um seu advogado que descobriu em 2009 uma fraude fiscal de US$ 230 milhões na empresa russa Prevezon. Foi preso pelas autoridades; torturado para encobrir o crime; e acusado de realizar o próprio crime, numa das reviravoltas e mentiras típicas dos serviços policiais dos estados autoritários. Morreu das sevícias na prisão. Tinha 37 anos.

O sacrifício de Magnistsky não foi em vão. Browder quis perpetuar essa coragem através de uma lei para perseguir a riqueza ilícita. Em 2012, o congresso norte-americano aprovou a Lei Magnitsky que permite o congelamento e apreensão de bens a personalidades que violam os direitos humanos. A legislação foi seguida na União Europeia e noutros países.

Ordem de congelamento, “Freezing Order” publicado em abril de 2022, centra-se nas tentativas do Kremlin e putinistas ocidentais para tentar aniquilar essa legislação. As peripécias parecem de um filme negro, mas pertencem à trágica história contemporânea. A autocracia permite aos poderosos roubar biliões num país e depositar os ativos noutro. Por outro lado, as sanções contra piratas financeiros tornaram-se uma ferramenta política contra a ganância global.

No livro de Browder os vilões do Kremlin são acompanhados por facilitadores obscuros como John Moscow, Glenn Simpson, Dana Rohrabacher e outros

Também há facilitadores famosos. O presidente russo na cimeira de Helsínquia em 2018 propôs ao presidente Trump a extradição de Browder em troca de 12 funcionários das secretas russas implicados no escândalo das eleições americanas. Esta proposta mafiosa catapultou Browder para o palco global; durante dias foi entrevistado por televisões de todo o mundo; Putin cometeu depois o erro tipo dos ditadores glutões e pediu a extradição de 12 americanos, incluindo o embaixador McFaul. O assunto só morreu depois de o Senado votar por 98 votos a favor e 0 contra qualquer extradição.

Quando nesta Semana Santa foram congelados 7 biliões de dólares a Abramovich no paraíso fiscal inglês das ilhas Jersey, e outro tanto nas ilhas Cayman, ficaram à vista de todos as cumplicidade na lavagem mundial de dinheiro.

Há uns vinte anos, Putin deu ordem para extorquir a maior das empresas russas ao maior dos bilionários – Khodorkosvky – e entregá-la a Abramovich; os dinheiros ilícitos de Abramovich continuaram a circular por bancos da Moldávia, Chipre, Letónia e depois Inglaterra e mais países ocidentais.

Os lucros do Danske Bank, na Estóni, nessas operações eram da ordem de 400%. Quando se olha os dez iates espaventosos de Abramovich “congelados” em portos ocidentais não vemos apenas a corrupção russa; está a tocar-se num dos pecados originais do capitalismo financeiro.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXIII)

14 de abril 2022- – Mendo Henriques

. Cruzador ao fundo e os mares da Rússia

A notícia que dominou o 13 de abril foi a explosão no Moskva (Moscovo) o navio-almirante da frota do Mar Negro. Segundo os ucranianos, terá explodido após impacto direto de um míssil antinavio Neptune de fabrico nacional. Segundo os russos, os 510 marinheiros abandonaram o navio devido a um incêndio no depósito de munições.

Ao fim do dia 14 a TASS confirmou; o Moskva, kaputt.

O Cruzador Moskva afundou

É uma perda de prestígio simbólica para a marinha de Putin que tem problemas desde o colapso da União Soviética. Quando

Putin assumiu a presidência em 1990, o submarino nuclear Kursk afundou-se devido a avaria. A tripulação fez esforços heroicos para emergir, mas o Kremlin não aceitou senão tardiamente a ajuda da NATO para extrair os sobreviventes. Morreram todos. A logística não é o forte da Rússia, como se está a verificar na invasão da Ucrânia. O seu único porta-aviões, Almirante Kuznetsov, sofreu um incêndio em 2019 e ainda não voltou ao serviço pois não há doca seca de tamanho suficiente para o reparar.

O mar Negro é decisivo para a economia russa; por lá passam exportações russas de petróleo e mercadorias.

O balanço do Banco Central Russo sobre bens e serviços no primeiro trimestre e 2022 mostra uma subida de 50% com 157 mil milhões de dólares de exportações, devido à alta do petróleo e outros bens. As sanções ocidentais só tocam uma pequena percentagem das exportações. As importações totalizaram 90 mil milhões de dólares, um aumento de 14%. Há indicadores de que caíram em março. São números interessantes para o Kremlin; mostram a morosidade das sanções ocidentais, mas não se refletem em bem-estar na população.

A Rússia não tem apenas a frota do Mar Negro, mas outra no Mar Báltico/Norte, outra no Pacífico, e de certo modo uma frota do Ártico, a contar os submarinos. Manter a todas é um esforço logístico que nunca correu bem à Rússia; a prova maior é a célebre viagem à volta do mundo de 33.000 km da frota do Báltico do almirante Rozhestvensky, totalmente esmagada pelos japoneses na batalha do Estreito de Tsushima em 1905.

Na região do mar Báltico, Suécia e Finlândia estão tão preocupadas com a agressão russa, que declararam abandonar a neutralidade e pedir a adesão à NATO em junho. Moscovo trouxe de volta a ameaça verbal de renuclearizar o Báltico.

É uma guerra verbal. Como afirmou o ministro da Lituânia, Anušauskas, a Rússia já tem armas nucleares no enclave báltico de Kaliningrado, ou Koenisberg, a cidade natal de Immanuel Kant o autor do tratado sobre a paz perpétua. Segundo a Federação de Cientistas Americanos, os bunkers de armas nucleares foram atualizados em 2018.

No Pacífico, onde a Rússia tem uma frente estreita através da península de Kamchatka e o porto de Vladivostok, o Japão veio reivindicar a soberania sobre parte das ilhas Curilhas, como já não fazia desde 1945.

Mapa actualizado

Resta aos russos o domínio no mar Ártico, com enorme importância geoestratégica e acesso a alguns recursos naturais; tem lá submarinos nucleares colocados mas o tráfego de superfície é um pesadelo.

Os mares difíceis da Rússia não lhe prestam qualquer ajuda nesta invasão, um desastre para todos, a começar pelos corajosos ucranianos. Quanto aos russos estão mais pobres, mais fracos, mais isolados e menos seguros. São más notícias para todos. Mesmo com perdas militares e dificuldades económicas acrescidas para a população – não para os privilegiados – o Kremlin não mudará de rumo. Ao ordenar a invasão, Putin cometeu um erro catastrófico, um erro que só poderá ser corrigido quando ele e a sua clique saírem do poder por vontade do povo russo.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXII)

13 de abril 2022- Mendo Henriques

. O outro Vladimir: Kara-Murza

A 11 de abril foi preso em Moscovo ao sair de casa, e condenado a 15 dias de prisão, um dos mais proeminentes e corajosos defensores da democracia e dos direitos humanos em todo o mundo.

Semanas antes tinham encerrado o seu programa semanal na rádio Eco de Moscovo por denunciar a invasão da Ucrânia. Há razões para temer pela sua vida.

  1. Kara-Murza sabe melhor do que ninguém como funciona o regime. Em entrevista recente à MSBNC recorda-nos que Putin não transformou de um dia para o outro a democracia imperfeita da Rússia dos anos 90 num regime autoritário. Operou conforme a fórmula de Mussolini na Itália da década de 1920: Se depenar um frango pena por pena, ninguém percebe.

    Kara-Murza

Começou por silenciar os media independentes, colocando a televisão sob controle do Estado: em junho de 2003, desapareceu o último canal privado.

Depois passou aos oligarcas: em outubro de 2003 prendeu Mikhail Korokovsky, quando este desembarcava do seu avião privado. As câmaras da televisão mostraram-no depois dentro de uma gaiola, no tribunal que o condenou a 11 anos de prisão; tratar assim o maior multibilionário russo foi um sinal claro para a comunidade empresarial.

Veio a guerra da Chechenia que Kara-Murza considera o “pecado original” de Putin. A Rússia perdera o primeiro conflito entre 1994 e 1997.

Em agosto de 1999, Yeltsin nomeou Putin primeiro-ministro. Em setembro, explodiram bombas em apartamentos de várias cidades russas, deixando 300 mortos; o Kremlin atribuiu a culpa aos separatistas chechenos. A maior parte das fontes independentes indica ser uma operação do FSB, de onde Putin acabara de sair, um pretexto para iniciar a segunda guerra de Chechénia.

Sucederam-se atos de terrorismo por parte dos chechenos como o da escola de Beslan; e o arrasamento de Grozny pela artillharia e aviação russas. Mas para entender o “pecado original” de Putin e por que razão é considerado um “killer”, é preciso ter presente como mandou matar 300 concidadãos do seu país.

A Rússia acabou por esmagar a pequena república em 2007, instalando a ditadura de Ramzan Kadyrov. A corrupção, as perseguições, o uso da tortura e o culto da personalidade caraterizam este sinistro apoiante do Kremlin, que se chama o “soldado raso” de Putin e cujas tropas têm estado ativas na Ucrânia, embora com estrondosos fracassos e violências.

A vida de Kara-Murza, político, historiador e documentarista tem sido o combate ao regime de Putin e a defesa da dignidade da Rússia. Foi braço direito de Boris Nemtsov e dirigente do Partido da Liberdade do Povo. Como historiador, formado em Cambridge, publicou Reformas ou Revolução em 2011, um livro sobre a tentativa do Partido Democrático Constitucional (Kadete), de formar governo em 1906 após vencer as eleições para o primeiro Parlamento. Teve um papel fundamental na lei Magnitsky nos EUA, que impôs sanções aos violadores russos de direitos humanos e tem marcado presença nos grandes canais de televisão norte-americanos. Tem pago um preço muito caro por tudo isto. Sofreu tentativas de envenenamento pelo FSB que o deixaram em coma por duas vezes e desde 11 de abril teme-se pela sua vida.

Em recente entrevista à MSNBC, Kara-Murza detalha como durante 22 anos, os dirigentes europeus e norte-americanos acolheram Putin e patrocinaram as relações comerciais com a Rússia. O presidente russo conseguiu implantar a imagem de que se contentava com compromissos. Em democracia, um compromisso é sinal de força própria. Para um ditador como Putin, é sinal de fraqueza dos outros. E após destruir os últimos vestígios de democracia, Putin virou-se para o exterior: a opressão interna e a agressão externa são as duas faces da mesma moeda, como diz Kara-Murza.

A guerra da Geórgia em 2008 permitiu conquistar dois pequenos enclaves.

A guerra da Ucrânia de baixa intensidade começou em 2014.

Depois veio a guerra na Síria. Se tudo correu bem a Putin durante 22 anos, por que pararia agora?

O único modo de deter a opressão interna e as guerras de agressão, diz-nos o corajoso e lúcido Kara-Murza, é a saída do ditador.

Só o povo russo o pode fazer.

A solidariedade do mundo livre para com o povo russo deverá consistir no máximo de informação que conseguir fazer passar sobre a guerras de Putin e os crimes que cometeu contra a humanidade.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XXI)

12 de abril 2022- Mendo Henriques

. A estratégia de um passo de cada vez

A imperatriz Catarina a Grande declarou que a única forma de a Rússia defender as suas fronteiras era expandi-las. E assim o fez ao conquistar a Crimeia e os territórios onde agora está ao rubro a batalha do Donbas e onde o seu amante Potenkim construiu aldeias de fachada para criar a ilusão de estar povoado por russos.

Imperatriz Catarina a Grande

Potemkin

Regressando ao futuro, Putin lançou uma invasão da Ucrânia em fevereiro de 2014, um dia depois dos últimos atletas deixarem os Jogos Olímpicos de Sochi. Conquistou a Crimeia em dias. Em dois meses, as forças paramilitares russas ocuparam metade das províncias de Luhansk e Donetsk.

A Crimeia foi orgulhosamente incorporada. Quanto ao Donbas, a posição oficial falava de uma revolta contra as autoridades em Kiev. Foram capturados soldados, veículos e equipamentos russos, mas para Moscovo eram apenas alguns voluntários que tinham cruzado a fronteira.

Afinal, era a primeira fase da guerra. Sebastopol, o lar da Frota do Mar Negro, em vez de ser humildemente arrendado à Ucrânia, voltara a fazer parte da Rússia como um porta-aviões inafundável. Os meios navais e aéreos lá estacionados ameaçavam bloquear as exportações da Ucrânia, por via marítima. Os meios terrestres teriam tempo para avançar.

Parte da frota do Mar Negro

 

A Ucrânia de 2014 não era um país viável. Tinha as infra-estruturas, a educação e a saúde em colapso; não tinha empregos para dar, mas tinha um sistema montado de corrupção que sugava a economia e não permitia governantes fiáveis.

A população emigrava, mesmo até para Portugal, país distante e sem relação tradicional, que acolheu mais de 20 mil ucranianos. O exército ucraniano deixara de funcionar, amarrado a uma armadilha fatal: a maioria das unidades eficazes tinham ligações mais estreitas a Moscovo do que a Kiev. Quando mobilizadas para resistir ao ataque, muitas tropas desertaram, levando o equipamento e os planos de batalha.

No final de 2015, os militares ucranianos estavam destroçados e o conflito “normalizado” com “apenas” cerca de cem mortos por mês para ambos os contendores. Quando chegasse a hora, os tanques russos poderiam estar em Kiev num mês. E sobretudo, a Rússia implantara na União Europeia o sentimento de que não era realista resistir. Bastava que desse um pequeno passo de cada vez.

Um exemplo desta estratégia bem-sucedida – e de como a Europa não queria enfrentar Putin – ocorreu em julho de 2014. Um sistema de mísseis operado pela Rússia derrubou um avião da Malaya Airlines a sobrevoar Donbas. Morreram 298 passageiros, dos quais dois terços eram cidadãos holandeses. Tudo o que se ouviu na Holanda foi a indignação do governo e media. Surgiram algumas sanções, mas com impacto mínimo e com exceção de políticos como o belga Guy Verhofstadt, nada mais se fez.

Guy Verhofstadt

O outro grande pequeno passo que Putin quis dar foi a invasão de 24 de fevereiro. Em três dias os paraquedistas e os blindados vindos da Bielorrússia arrumariam o assunto. Mas o que sucedeu foi a derrota de Kyiv. A história julgará como esta agressão foi um passo longe demais do presidente russo, um dos criminosos de guerra a ser julgado, no dia em que se sabe que a cidade mártir de Mariupol sofreu 22 mil mortos.

Perante estes sucessivos passos, é conhecida a narrativa de que os czares, os soviéticos e os atuais dirigentes russos consideram o controle da Ucrânia, da Crimeia e o acesso ao Mar Negro como vitais para a segurança. Que a grande planície russa não fornece proteção direta contra invasores, sejam mongóis, franceses ou alemães. Que a memória das guerras mundiais pesa muito. E que assim, Putin mais não faz do que repetir os objetivos da Rússia tradicional.

Contudo, ao contrário dos antecessores, Putin opera com uma demografia muito adversa. Após a queda da União Soviética em 1991, a saúde entrou em colapso: alcoolismo, drogas, baixa natalidade, declínio da esperança de vida em declínio; tuberculose, HIV/ AIDS e, finalmente a COVID-19 – um milhão de mortos desde 2020, contabilizando a letalidade real. Tudo isso ceifou a população russa. Para proteger o território, o exército russo é cada vez menor.

A geografia ajuda a explicar os motivos da agressão de Putin; a demografia ajudar a entender o momento. Foi agora ou nunca, a 24 de fevereiro.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XX)

11 de abril 2022- – Mendo Henriques

. Mariupol e o que se segue

Há quarenta dias que Mariupol é um símbolo dramático da invasão da Ucrânia e de como Putin trava as suas guerras. As tropas chegam a uma cidade próspera como eram Grozny ou Aleppo. Bombardeiam-na por terra, ar e, sendo possível, mar. Os habitantes que podem, fogem ou são evacuados. Os ataques por terra continuam até tornar a vida insustentável para civis e defensores. A bandeira vitoriosa é erguida sobre as ruínas e chamam isso “libertação”.

É o que está a suceder em Mariupol onde a 11 de abril a guarnição ucraniana está reduzida às últimas extremidades. As unidades cercadas, o 36º regimento da Marinha, o 56ª regimento Motorizado, o regimento de Azov e a 12ª brigada da Guarda Territorial foram dizimadas e pouco futuro resta às derradeiras bolsas que resistem no complexo fabril de AzovStal.

Mariupol, a catástrofe

Conquistada Mariupol, o Kremlin atinge um dos objetivos prioritários da guerra que é a ligação terrestre entre a Crimeia e o Donbas e o predomínio na frente marítima da Ucrânia.

forças pró-russas dizem já controlar Mariupol

Não é domínio total porque até agora os russos só lançaram mísseis sobre Odessa. Quanto a Kherson irá ser disputada, como prometeu o comandante em chefe ucraniano, o discreto general Valeriy Zaluzhny. Em contrapartida já se fez notar a presença do novo chefe, o general Aleksandr Dvornikov: terão sido usadas armas químicas em Mariupol, uma imagem de marca de mais um carniceiro russo em postos de comando. As notas sinistras do cerco acumulam-se.

Os chechenos integrados na Guarda Nacional Russa assassinaram 18 dos defensores de Azov e no final gritaram “Allaqh Ukbar”. Nada é simples. Também há chechenos muçulmanos leais a Kiyv a combater.

O que se segue no plano russo de operações estará conforme os objetivos traçados a 25 de março. A derrota estrondosa das forças russas em Kiyv obriga Putin e os conselheiros a considerar esses objetivos como vitais para a sobrevivência do próprio regime. Putin está apanhado na armadilha que montou. Precisa de uma vitória a qualquer custo para chegar com trunfos a um acordo negociado com Kiyv.

Na linguagem da pós-verdade, como lhe chamou o ideólogo Alexander Surkov, a Rússia declarou já ter alcançado o objetivo de “desmilitarização” das Forças Armadas Ucranianas: a redução da capacidade da Ucrânia de ameaçar o Donbas e a Rússia foi alcançada com a destruição da base industrial de defesa.

O objetivo delirante da “desnazificação” continua passar nas televisões do estado, sendo reprimida qualquer  tentativas de alertar a opinião pública para a verdade. Hoje mesmo, segundo a agência Meduza, o historiador e ativista político Vladimir Kara-Murza foi detido em Moscovo.

No que toca aos objetivos de guerra, a Ucrânia busca uma situação politica independente; em que a Rússia reconheça as suas fronteiras internacionais e não se oponha à adesão à EU agora em ritmo acelerado.

Quer que a sua segurança futura seja garantida por um acordo juridicamente vinculativo entre potências mundiais.

A concessão ucraniana de prescindir da adesão à NATO em troca de uma garantia de segurança internacional apoiada pelos EUA e potências europeias constitui uma mão estendida para os objetivos da Rússia.

Resta assim a questão da Crimeia e do Donbas como contenda a resolver por ambas as partes. Nem a Rússia nem a Ucrânia querem negociar este ponto sem saber quem vence no campo de batalha. E esse é o foco das próximas operações, a segunda batalha da Ucrânia que se está desenrolar no Donbas.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XIX)

10 de abril 2022- – Mendo Henriques

. A nova ofensiva dos derrotados

A guerra é uma realidade brutal, violenta e entrópica, em que os movimentos têm de se adaptar às circunstâncias; ao invés da realidade virtual dos videojogos, em que tudo é recriável, uma batalha perdida deixa marcas nas unidades.

Dos 120 grupos de batalhão que os russos parecem ter empenhado até agora, estima-se que cerca de ¼ foi destruído; forças derrotadas e com o moral em baixo não se recompõem facilmente.

O comando russo está a deslocar essas forças retiradas de Kiyv, Chernihiv e Sumy para a frente do Donbas. São 800 km, desde a Bielorússia até à região entre Balakilisk e Izium.

É provável que as unidades ativas sejam canibalizadas com pessoal e equipamentos das unidades que perderam coesão. Deixando pequenas frações a guardar a fronteira, o grosso das forças continua a deslocar-se para Donbas onde se prevê períodos de nuvens e chuva para 11-13 de abril. Essas condições vão prejudicar os ataques aéreos e de artilharia de ambos os lados.

Novo Comandante

O comando russo foi centralizado no general Dornikov, um militar de infantaria que tem a experiência da Chechénia e da Síria e que era comandante do grupo de exércitos sul, incluindo a Crimeia. Como tal, não se espera particular alteração da estratégia. O cerco a Mariupol, onde os russos tentam ‘limpar’ crimes de guerra, vai continuar. Na frente ocidental tentarão bloquear o avanço ucraniano rumo a Kherson.

Na Frente Estratégica Kharkiv-Donbas, as forças russas continuam a ação ofensiva em Izium e no saliente de Sievierodonetsk. Os separatistas ainda não conseguiram romper as defesas ucranianas ao longo da linha de contacto. O objetivo parece ser cercar os ucranianos no saliente de Sievierodonetsk, no extremo do Donetsk, e reduzi-lo com artilharia e ataques aéreos. Dadas as elevadas perdas anteriores, esta parece ser a abordagem operacional mais evidente, com preparativos de bombardeamento pela aviação.

Segundo sítios independentes de verificação de perdas documentadas por fotos e satélite, as perdas russas são muito maiores do que as ucranianas (https://oryxspioenkop.com/2022/02/attack-on-europe-documenting-equipment.html Essas perdas incluem cerca de 500 tanques de combate, 900 veículos blindados de transporte, 80 veículos lança mísseis, 20 aviões de caça, 30 helicópteros e 30 drones, entre meios destruídos, capturados e abandonados. Em comparação, os ucranianos têm perdas documentadas de 100 tanques de combate, 230 veículos blindados de transporte, 15 aviões de caça, 3 helicópteros e 12 drones. As perdas reais de ambos os adversários devem ser superiores.

A Ucrânia padece de 6 milhões de refugiados, 7 milhões de deslocados internos, e milhares de mortos, muitos deles a serem descobertos em valas comuns. A Comissão dos Direitos Humanos da ONU já admitiu que as forças invasoras mataram civis em Bucha. O presidente Zelensky apelou ao Conselho de Segurança da ONU para responsabilizar as tropas invasoras pelos massacres de civis. Além disso, sucedem-se os apelos dos governantes por mais ajuda militar nesta segunda batalha da Ucrânia. Os reforços continuam a chegar dos EUA e da Europa. A Inglaterra prometeu mais 6 mil mísseis antitanque. A República Tcheca enviou tanques T-72. Tudo é pouco.

Vem aí a parte mais dolorosa da guerra, em que o Kremlin usará os meios convencionais à disposição para reverter a derrota de Kiyv; será uma tentativa implacável para poder declarar uma espécie de vitória.

É agora que a Ucrânia mais precisa da ajuda dos que defendem a liberdade contra a tirania.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XVIII)

9 de abril 2022- – Mendo Henriques

. Um dia histórico para a Europa

Europa em Kiev

Ursula von der Leyen e Josep Borrell estavam prestes a chegar a Kiyv a 8 de abril, quando pelo menos 50 pessoas foram mortas e dezenas ficaram feridas em ataque com mísseis na estação ferroviária de Kramatorsk; a estação estava repleta de refugiados da ofensiva russa no Donbas.

Kramatorsk era apenas o nome de mais uma pequena cidade ucraniana. Mas os mapas militares não enganam. Se a ofensiva russa em curso visa cercar forças ucranianas no saliente de Sievierodonetsk, então Kramatorsk é o alvo ideal a atingir, o ponto intermédio entre Izyum a norte, e Donetsk, a sul.

Está em perspetiva uma Kesselschlacht, uma batalha de cerco em que as forças ucranianas estão em grande desproporção perante os reforços russos chegados da frente norte.

No meio destes combates, von der Leyen e Josep Borrell iniciaram a visita à Ucrânia por Butcha, uma das cidades com valas comuns de centenas de civis assassinados pelas forças de Putin.

Foi uma verificação estampada no rosto horrorizado da presidente; foi uma homenagem às vítimas; e foi também uma acusação do rosto cruel do exército de Putin. “Esperamos uma resposta firme e global a este crime de guerra”.

Seguiu-se em Kiev um encontro com o presidente Zelensky que os acolheu em espaço aberto com um simbolismo que fica para a história; recebeu-os na rua e não nos corredores atapetados do poder pois é também nas ruas massacradas que os ucranianos defendem o território.

Veio então o mais importante. Afirmando com dignidade que a UE jamais poderia igualar o sacrifício da Ucrânia, Von der Leyen entregou a Zelensky o questionário que é o ponto de partida para a adesão à Europa: “Desta vez, em vez de anos, levámos semanas”.

Momento histórico.

O que em tempos normais levaria 8 ou 9 anos a fazer, e a maior parte dos observadores considerava impossível, fez-se em semanas.

Em junho a Ucrânia poderá ser o 28° estado da União. A Ucrânia responderá ao questionário em uma semana, retorquiu Zelensky.

Von der Leyen foi taxativa: voltou a condenar o “comportamento cínico de Putin e acrescentou: “A Rússia vai entrar em decadência económica, financeira e tecnológica, enquanto a Ucrânia está a caminho de um futuro europeu.” Josep Borrell comunicou mais €500 de ajuda imediata em material de guerra.

Os observadores falarão de otimismo nestas promessas da Ucrânia “emergir da guerra como um país democrático, com a ajuda da União Europeia. O próprio Josep Borrell designou por “elefante na sala” o facto de a Europa pagar à Rússia €800 milhões por dia (€35 biliões desde 24 de Fevereiro) pelo petróleo e gás. A questão será de novo levantada na segunda-feira em Bruxelas. A vontade política europeia depara-se com problemas tecnológicos que não se resolvem da noite para o dia e a Alemanha, sobretudo, enfrenta um doloroso aumento nos preços.

A Europa tem estas contradições e defeitos.

Mas o 8 de abril de 2022 em Kiyv revelou que a União Europeia consegue crescer mesmo em estado de guerra. Foi, porventura, o seu ato mais significativo desde os alargamentos de maio de 2004. Ursula von der Leyen e Josep Borrell mostraram determinação e coragem, num daqueles momentos em que o nosso continente se redime das violências e tragédias de que está repleto.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XVII)

8 de abril 2022- – Mendo Henrique

. Putinistas, de direita e esquerda

As fotos de Putin, como ditador solitário na extremidade de uma mesa muito comprida e como que a sofrer de psicose, ficarão para a história; mas são enganadoras. Não só não sabemos o que se passa na mente do ditador como ele tem muitos aliados pelo mundo fora.

Em primeiro lugar estão os ditadores em Minsk, Damasco Pyong-yang e, sobretudo, Pequim. Depois, lugares mais inesperados. Num conflito muitas vezes apresentado como sendo do Ocidente contra Putin, existe uma quinta coluna poderosa na Europa e na América que o apoia, mesmo que agora cultive algum distanciamento após a invasão da Ucrânia.

O caso mais flagrante é o de Viktor Orbán, apologista da “democracia iliberal”. Obteve um quarto mandato como primeiro-ministro da Hungria, numa eleição em que controlou os media estatizados. Durante a campanha, suavizou o putinismo, admitiu refugiados ucranianos e concordou com as sanções. Agora há o risco de voltar a destruir consensos europeus. Como disse alguém, quando se trata de fazer um favor a Putin e sabotar ações comuns da UE, “Orbán cumpre”.

Neste fim de semana Putin gostaria de ganhar o Euromilhões em França. As sondagens mostram um aumento no apoio da velha candidata da extrema-direita, Marine Le Pen. Depois de 2016, ano do Brexit e de Trump, não se pode descartar um choque em França. Se fosse eleita à segunda volta, Le Pen iria desmantelar os tratados da União.

Outro rival de Macron, o esquerdista Jean-Luc Mélenchon, falou muito mais ao longo dos anos contra a NATO e os EUA do que sobre Putin e a Rússia.

As ligações de Le Pen com Putin são flagrantes. Em outubro de 2014, um banco russo financiou a sua campanha nas eleições locais com empréstimo de € 9 milhões. Nestas presidenciais de 2022, há um cartaz impresso antes da invasão, em que ela aperta a mão sorridente de Putin. Desde então distanciou-se. E teve a fortuna de ter Éric Zemmour, de direita ainda mais radical, a mostrar adulação a Putin e hostilidade aos refugiados. Le Pen foca-se na crise do custo de vida e explora alguma impopularidade de Macron, considerado por muitos como elitista.

Putin tem ainda mais aliados no ocidente, à direita e à esquerda. Nigel Farage, um dos oportunistas do Brexit. No Partido Conservador no poder, os Conservatovs como lhes chamou a jornalista Catherine Belton, receberam financiamentos dos oligarcas russos. O dinheiro não tem cheiro. Na Alemanha, o ex-chanceler Schroeder foi um facilitador do NordStream2 e faz parte da administração da Gazprom russa.  A Rússia consegue pagar a guerra na Ucrânia com as importações europeias de gás, petróleo e carvão. Josep Borrell declarou que a Europa doou um bilião de euros em ajudas à Ucrânia, mas pagou €35 biliões à Rússia em importações de energia. Boris Johnson foi diferente. A Grã-Bretanha está a armar poderosamente a Ucrânia, e Boris quer genuinamente salvar a Ucrânia e a carreira política.

Os colaboradores europeus de Putin diminuem em comparação com Trump que elogiou Putin como “génio” e tem agentes fiéis no partido republicano e nos media de direita; estes sugerem preferir Putin ao que chamam os liberais ou esquerdistas americanos.

E aqui tocamos o cerne da questão. Para a direita radical na Europa e na América, Putin representa uma alternativa a um suposto declínio cultural: é o ideal nacionalista de fazer o país outra vez grande, sem direitos das minorias. Para muitos esquerdistas e idiotas úteis Putin é o ideal anti-americano e anti-capitalista.

A ideologia nacionalista criou raízes no Ocidente que podem perdurar além da guerra atual se o custo de vida subir demasiado.

A luta contra o Putinismo não é travada apenas com sanções e armas. Como disse o historiador e ativista russo Vladimir Kara-Murza, opressão interna e agressão externa são duas faces da mesma história.

Libertarmo-nos de ambas tem um preço elevado.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XVI)

7 de abril 2022- – Mendo Henriques

. Os ideólogos de Putin

O jornalista e dramaturgo Karl Kraus, um dos opositores de Hitler, foi acusado em 1905, quando Pequim estava a arder com a rebelião dos Boxers, de escrever sobre assuntos irrelevantes de linguagem e colocação de vírgulas. Respondeu de modo lapidar: se soubessem colocar as vírgulas, Pequim não estaria a arder.

A Ucrânia continua a arder. Mas por detrás da violência estão as ideias, os discursos e a linguagem que levaram à invasão, os ideólogos que formataram a visão da Grande Rússia afirmada pelas elites no poder propagada pela TV estatal. Nenhum ideólogo em exclusivo pode ser creditado por construir as bases da atual postura e ambições geopolíticas de Putin mas todos o influenciaram de maneiras diferentes longo dos anos.

O mais influente talvez seja Vladislav Surkov, o “Rasputine de Putin”. Nascido em 1964, ocupou cargos governativos e foi depois conselheiro do presidente entre 2013 e 2020. É o criador da doutrina da “democracia soberana” que entrega ao Estado quase todo o controlo sobre a economia. É ainda o inventor da narrativa A Ucrânia não existe. Como organizador de consensos e diretivas desempenhou um papel primordial na estrutura ideológica que abriu o caminho à invasão.

Um segundo ideólogo que orienta as ambições geopolíticas do Kremlin é mais remoto. Ivan Ilyin morreu no exílio na Suíça em 1954 e foi o doutrinário dos Russos Brancos anticomunistas.

Defendia um autoritarismo cristão em que a autocracia tradicional deveria atacar o liberalismo ocidental. Putin promoveu a transferência dos restos mortais de Ilyin para o Mosteiro de Donskoy, em 2004. Em 2014, recomendou o seu livro O Nosso Lado como a adesão ao “mundo russo”, a singularidade histórica, a vocação especial e o propósito global do povo e Estado russos.

Temos depois Alexander Dugin que nasceu em Moscovo em 1962, um estrategista e organizador da Frente Nacional Bolchevique e do Partido da Eurásia.

Aos 35 anos tornou-se célebre com Os Fundamentos da Geopolítica. Esta leitura obrigatória nas academias militares aponta como a Rússia se poderia reafirmar após o colapso da União Soviética; garantindo que o Eurasianismo – a unidade dos territórios outrora governados pelos czares e secretários-gerais com rigidez e hierarquia – deve prevalecer sobre o atlanticismo – o liberalismo, livre mercado e a democracia da América e da Europa Ocidental, tal como caraterizado por Francis Fukuyama em O fim da história. Para atingir os seus objetivos, a Rússia deveria desestabilizar os processos políticos internos dos estados ocidentais.

Em 2009 Dugin escreve A Quarta Teoria Política que combina neopaganismo, eslavismo e tradições ortodoxas numa ideologia projetada para combater o neo-liberalismo e a negação individualista do misticismo.

Esta visão primária e estúpida de um mundo dividido entre diferentes culturas é semelhante à de Samuel Huntington no Choque de Civilizações (1996).

Mas enquanto o norte-americano apostou no Islão como o principal desafio ao Ocidente, Dugin vê a Rússia como a potência euroasiática dominante em uma nova ordem mundial. Todos contra a pós-modernidade liberal foi uma palavra de ordem que inspirou a extrema direita europeia, de Le Pen em França a Salvini na Itália e Órban na Hungria.

As ideias de Dugin inspiraram literalmente o Kremlin a interferir nas eleições dos EUA e no Brexit em 2016, através dos meios digitais, tal como está documentado no escândalo do Cambridge Analytica.

A Ucrânia está a arder mas convém lembrar que as batalhas pelo seu território e os massacres de Mariupol, Butcha e Borodyanka são a tradução violenta das visões geopolíticas de Ilyin, Dugin e Surkov. A pendência que a Grande Rússia sempre teve entre a Europa e Ásia – as duas almas ou as duas cabeças de águia do seu escudo– foi unilateralmente resolvida por Putin ao lançar-se contra o Ocidente e devastar o povo ucraniano.

O “desastre…” de Bucha

Entender estes subterrâneos da ação pode ajudar a perceber as dimensões da luta global em que Putin comprometeu a nação russa e pensar que receitas haverá quando o mundo dele se livrar e chegar a paz.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distancia (XV) 

6 de Abril de 2022 – Mendo Henriques

. Z de Zelensky

Nos momentos históricos que atravessamos, quando Putin ultrapassou os limites da racionalidade ao invadir a Ucrânia à sombra de um arsenal nuclear, mas com uma tropa fandanga, houve um ator que era uma pessoa comum, mas se revelou acima das circunstâncias: a história registará Volodymyr Zelensky como um herói:. O presidente da Ucrânia confiou na sua capacidade de inspirar uma nação e um mundo desanimado.

Está em curso a tentativa de Vladimir Putin de conquistar a Ucrânia e de a absorver num Russky Mir,. Dezenas de milhares de mortos – entre civis e militares, ucranianos e russos, já jazem debaixo de chão, em cemitérios, fossas e escombros. Mais de seis milhões de refugiados abandonaram a Ucrânia. Mais de dez milhões estão deslocados no interior. Mas o país resiste, unido ao governo de Volodymyr Zelensky,

Os primeiros dias do ataque expuseram fraquezas das forças armadas russas. Está claro que os ucranianos derrubaram helicópteros, destruíram russos e retardaram o esforço para dominar Kiyv e Kahrkiv em poucos dias.

Zelensky galvanizou o povo com um telemóvel, linguagem simples e uma camisola verde. “Ya tut”, Estou aqui, afirmou aos compatriotas numa rua de Kiev. No bunker, descreveu um ataque com mísseis russos e baixas civis a membros do Parlamento Europeu com tanta força que o intérpretes não conseguiu conter sua emoção.

Zelensky nasce e cresceu em Kryvyi Rih, uma cidade industrial no sudeste, onde milhares de ucranianos judeus foram mortos durante a ocupação nazi. Licenciado em direito sem grande brilho, atuava no grupo de teatro Kvartal 95.

Em 2015, criou uma comédia chamada “Servos do Povo” onde desempenhava o papel de um professor do ensino secundário que tem discurso épico contra a corrupção, filmado e colocado no YouTube por um dos seus alunos. O clipe viralizou em vésperas de eleição. Tornou-se famoso na Rússia e na Ucrânia e, em 2019, foi o trampolim de Zelensky para a política.

Foi então que o destino lhe bateu à porta e a ficção tornou-se realidade. Em um vídeo no YouTube na véspera de Ano Novo, anunciou a sua intenção de concorrer à presidência. A campanha não foi tradicional: Zelensky não participou em debates nem publicou uma plataforma eleitoral. Prosseguiu a comédia nem sempre de bom gosto. Após uma campanha relâmpago o personagem de televisão tornou-se presidente do país em 2019. Acabou por receber 75% dos votos à segunda volta, em particular nas regiões pró Rússia de onde é natural. Em maio de 2019, os Servos do Povo, conquistaram a maioria no parlamento, controlando assim o poder legislativo e o executivo.

Nesse verão Zelensky recusou uma chantagem de Donald Trump: ou explorava negócios do filho do candidato Biden ou os EUA reteriam centenas de milhões de dólares em assistência militar. Recusar esse pedido mafioso custou ajuda militar à Ucrânia – facto de que Putin tomou nota- e foi uma prova fundamental no primeiro impeachment de Trump.

No inverno antes da guerra, a popularidade de Zelensky descera até aos 20%. Preferiu minimizar a possibilidade de guerra enquanto os norte-americanos já sob a tutela de Joe Biden publicitavam a iminência de um ataque.

Na madrugada de 24 de fevereiro, os tanques rolaram e Putin e Zelensky discursaram nas televisões. O contraste era total. Putin vomitou ódio ao comunicar a “operação militar especial” visando a “desmilitarização e desnazificação” da Ucrânia. Se “forças externas” viessem em defesa da Ucrânia…isso levará a consequências jamais  enfrentadas na história“.

Quanto a Zelensky falou diretamente ao povo russo, afirmando que o Kremlin o ignorou nesse esforço final para evitar a invasão. Depois afirmou solenemente o essencial. “Dizem que essas chamas trarão liberdade para a Ucrânia. Mas o povo da Ucrânia já está livre”. “Ao atacar-nos, verão os nossos rostos, não as nossas costas.”

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XIV)

5 de abril 2022- Mendo Henriques

.Vem aí a segunda batalha da Ucrânia

Em apenas 2 ou 3 dias, a Rússia retirou-se de quase 40% dos territórios que ocupou na Ucrânia desde 24 de fevereiro.

Sumiu da frente norte, região de Kiev, Chernihiv, Sumy. A primeira fase da guerra termina com uma derrota russa. Agora começa a segunda batalha da Ucrânia.

O objetivo inicial da campanha era conquistar Kiev em 2 ou 3 dias e fazer uma mudança de regime e anexação parcial. Mas no campo de batalha, os ucranianos bateram os russos, homem a homem, e com uma guerra de emboscadas contra colunas de tanques e blindados, levada a cabo com drones e mísseis portáteis contra aviões, helicópteros e mísseis.

…novomapa

Perante a derrota sofrida, os russos tiveram de mudar de narrativa.

Até 2 de abril apresentavam mapas de sucessos (успехи, uspéxi) da Operação Especial. Desde 2 de abril são mapas de execução (проведение, providénije).

O impertubável porta-voz russo, General Fomin, afirmou: Decidimos diminuir as  atividades militares nas direções de Kiev e Chernihiv. Assumimos que Kiev tomará as decisões correspondentes e criará condições para cooperação futura. O ministro da defesa Shoygu preferiu informar que a primeira etapa da Operação Especial foi “concluída com sucesso“. As capacidades militares ucranianas enfraqueceram e a Rússia pode concentrar os esforços no objetivo principal – a libertação do Donbass.

Por detrás desta fachada, vale a pena seguir o que diz o ministro da defesa do Donestsk, Igor “Strelkov” ( o atirador) – indiciado por crimes de guerra na Bósnia. Para ele, os russos não tiveram escolha a não ser recuar no Norte para se reagrupar e atacar no Donbass “Duvido que depois de perder o primeiro mês, as nossas tropas consigam cercar e destruir a força ucraniana no Donbass. O comando militar ucraniano age de modo muito mais competente do que o russo”.

A segunda Batalha da Ucrânia que deverá ocorrer no Donbass será muito diferente; uma guerra de manobra em campo aberto, com povoações muito distantes entre si e onde os blindados podem avançar como na segunda guerra mundial. É uma planície sem acidentes de terreno, nem malhas urbanas nem grandes rios e áreas inundáveis. Não há lugar para emboscadas nem esconderijos, como a norte. Uma batalha em que os ucranianos precisam de tanques e artilharia autopropulsada e muitas munições e de caças MiG’s e Sukhoi para manter a superioridade aérea.

Conforme a movimentação até 5 de abril, parece que o Kremlin vai tentar uma manobra de pinça, com forças vindas do leste a partir de Izyum e do sul em Melitopol, na direção da cidade de Dnipro, no rio homónimo: assim cercariam os ucranianos numa bolsa para depois os aniquilar.

Contra esta ofensiva violenta que deverá ser desencadeada nos próximos dias, os ucranianos precisam de umas centenas de tanques, uns milhares de peças de artilharia e morteiros e milhões de cartuchos de munições em equipamentos compatíveis com o que já têm e sabem operar. Embora a NATO tenha decidido não intervir abertamente, os aliados que pertenceram ao Pacto de Varsóvia – Polónia, Eslováquia, Roménia, Chéquia, Países Bálticos – têm esses equipamentos; mas poucos ainda vão a caminho.

Há crime sem castigo? Vladimir Putin vai ser remunerado com o controle do Donbass e toda a faixa do mar de Azov?

A opinião pública mundial vai deixar que ele vença uma guerra criminosa e ainda ficar com territórios?

Os estados em todo o mundo que defendem os valores da liberdade têm de se mover rapidamente para doar aos ucranianos os meios para impedir e bloquear os avanços russos e garantir condições negociais para uma paz com honra.

A segunda batalha da Ucrânia terá de ser vencida pelos ucranianos para que o Kremlin acorde um cessar-fogo devido à incapacidade de obter ganhos.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XIII)

4 de abril 2022- – Mendo Henriques

. “Água mole em pedra dura”

Após o falhanço do plano de conquistar a capital da Ucrânia, o Kremlin está a deslocar tropas para a ofensiva no leste. A língua de pau de Lavrov

S. Lavrov, MNE Rússia

e Choigu, chefes da diplomacia e das forças armadas russas que se fez ouvir a 25 de março, nunca foi capaz de encobrir o que mostram os mapas e relatórios de situação militar (SITREPS).

Os 35º, 36º e 41º Exércitos já estão a sair da Bielorússia, para onde tinham ido em janeiro em “manobras”.

O 2º Exército está a evacuar Sumy.

Juntamente com algumas novas unidades em reorganização, irão reforçar as forças invasoras na batalha pelo Donbass; uma batalha iniciada há 8 anos quando Putin criou as “repúblicas” de Donetsk e Lugansk como represália à revolução da praça Maidan.

Na frente sul continua o cerco de Mariupol cujo desfecho terá grande impacto no decurso da guerra.

Enquanto decorrem estas operações militares, assistimos ao refluxo da maré de oposição a Putin, devido às brutais e eficazes medidas de censura e repressão policial. Em tempo de guerra e sanções, a população tem de sobreviver; e cada vez que sai à rua, arrisca-se a multas e penas de prisão. Por este motivo, os protestos não atingem nem de perto os níveis do inverno de 2011-2012, como apontam cientistas sociais como Yekaterina Schulmann, Yevgenia Albats e Julia Joffe.

Nyet voynye!,Não à guerra!” é a palavra de ordem dos manifestantes. E desde a noite de 24 de fevereiro que centenas de milhares de homens e mulheres têm-se destacado pela sua coragem e saído à rua e pago o preço.

A OVD-info russa, https://ovdinfo.org/ contabiliza até 2 de abril, cerca de 15.000 presos em 53 cidades.

Estas manifestações são a face anónima dos protestos que atravessam toda a sociedade; ativistas, académicos, autarcas, jornalistas, celebridades, oligarcas, e ex-governantes estão contra a guerra.

A petição do ativista Lev Ponomaryov contra a invasão reuniu mais de 1,5 milhão de assinaturas até 3 de março. Foram publicadas dezenas de Cartas Abertas contra a guerra por associações de médicos e profissionais de saúde, trabalhadores de ONGs, advogados, psicólogos e psiquiatras, economistas, informáticos artistas, cineastas, indústrias de publicidade e jogos, designers e arquitetos.

O movimento de familiares de veteranos da Segunda Guerra, pediram a Putin “cessar fogo” pois o uso de força na Ucrânia é “desumano”. Olga Larkina, diretora da Comissão de Mães de Soldados da Rússia, declarou que os soldados russos foram enviados à força para a guerra. Oligarcas como Oleg Deripaska, Mikhail Fridman, Oleg Tinkov, Mikhail Khodorkovsky, Nikolay Storonsky, Vladimir Lisin, Alexei Mordashov e Andrei Melnichenko querem as forças militares de regresso.

Na área da cultura, o jornal Novaya Gazeta dirigido por Dmitry Muratov , Prémio Nobel da Paz publicou uma edição em ucraniano e russo e foi depois suspenso.

A revista TrV-Nauka – Variante Troitsky publicou uma carta aberta contra a guerra assinada por mais de 7400 cientistas. Nas universidades mais de 1.200 alunos, professores e funcionários do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscovo, e mais de 7500 Estudantes, licenciados, professores e funcionários da Universidade Estatal de Moscovo, Lomonosov assinaram cartas abertas contra a guerra.

Celebridades como os pivots de televisão Ksenia Sobchak e Ivan Urgant, cantor pop Valery Meladze, escritor Dmitry Glukhovsky, YouTuber Yury Dud, realizador Roman Volobuev, rapper Noize MC, futebolista Fyodor Smolov, atriz Chulpan Khamatova e dezenas de outros “celebridades” manifestam-se nas redes sociais contra as ações militares da Rússia.

Um dos casos mais célebres de protesto foi o de Marina Ovsyannikova, a 14 de março de 2022, ao interromper ao vivo, o noticiário da TV estatal com um cartaz de Não à Guerra.

Demitiu-se e aguarda processo. Outros repórteres e produtores de televisão como Lilia Gildeeva, Zhanna Agalakova, e Maria Baronova demitiram-se da TV estatal em protesto contra a invasão; alguns deixaram a Rússia.

A lista de protestos é grande, mas sem um foco nem uma organização a liderar. E conforme ensinam os manuais, um guarda com espingarda automática pode controlar cerca de 500 pessoas desarmadas. Putin não cairá devido a estas manifestações; contudo, elas são como a água mole em pedra dura a desgastar um regime condenado pela sua loucura e tragédia.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XII)

3 de abril 2022- – Mendo Henriques

. Quem fala pelos russos? O testemunho de Andrei Soldatov

As forças ucranianas chegaram à fronteira da Bielorrússia após a retirada dos invasores que deixaram um rasto de massacres e destruições. Uma tal vitória tática, ainda para mais tão inesperada, tão sofrida e tão corajosa, é sempre ocasião de triunfalismo. “A frente norte já está!”. E enquanto a derrota é órfã, a vitória sempre tem muitos pais. Para alguns ucranianos é o desejo de vitória total; para os ocidentais timoratos é a ocasião da paz a qualquer preço. E para os russos? Quem fala pela Rússia?

Entre as vozes que saberão responder, destaca-se a de Andrei Soldatov,

Andrei Soldatov

jornalista que fundou juntamente com Irina Borogan o sítio Agentura.ru e se tornou um dos maiores especialistas em serviços de informação e instituições militares da Rússia. Um homem perigoso, portanto.

http://É cedo para alvitrar sobre o desenlace, mas o aviso deixado por Soldatov é claro: o modo habitual de Putin sair de um problema é criar outro. A guerra do Donbass foi uma saída para a crise da invasão da Crimeia. Países como a Moldávia e os estados bálticos devem ficar de sobreaviso.

Em 2012, a legislação russa tornou-o quase um traidor. Em 2020, uma nova lei condenou qualquer escrito sobre serviços de segurança. A gota de água veio quando o governo russo cancelou a licença para o site de Soldatov, citando a morte do editor.

Com esse aviso sinistro, o co-autor com Irina Borogan de The Compatriots, The Red Web, e The New Nobility, veio para Londres. Aqui fundou o CEPA Center for European Policy Analysis, onde continua a seguir Putin. Em resumo, considera que a ansiedade domina em Moscovo. O estado russo não está ainda a desintegrar-se, mas para lá caminha.

Apesar das perseguições e restrições que tornam o Kremlin como que uma caixa preta dos aviões, Soldatov mantém os seus contactos, como os americanos mantêm os seus. Enquanto em 2014, a esmagadora maioria das elites apoiou Putin na invasão da Crimeia sem derramamento de sangue, agora é diferente.

O setor financeiro, os serviços de segurança e até o exército estão ansiosos. Aceitariam a ocupação do Donbass, e talvez alguns bombardeamentos na Ucrânia como o de Belgrado pela NATO em 1999. Mas a aventura de Putin, (em russo avanturya) é considerada um erro do qual nem Putin sabe ainda como escapar.

Estamos ainda longe do pântano do Afeganistão e não há condições para forçar Putin a mudar de política ou removê-lo do poder.

Sendo a Rússia uma sociedade militarizada não tem tradição de golpes de estado militares nem de organizações militares clandestinas.

Os serviços de segurança estão debilitados devido à desconfiança entre oficiais superiores e oficiais de nível médio, pois estes não são chamados às redes de patrocínio e dinheiro dos superiores. Assim respeitam o cargo, mas não a pessoa.

Na década de 1990, havia forças políticas de oposição. Havia oligarcas independentes. Havia centros regionais de poder, como os presidentes de S. Petersburgo e Moscovo. Agora, em 2022, a única força política é Vladimir Putin.

A oposição está morta, na prisão ou no exílio. Os oligarcas dependem de Putin e do complexo militar-industrial. Os governadores regionais estão intimidados pois alguns foram presos nos últimos anos.

No país gigante que é a Rússia, as regiões terão cada vez mais problemas devido às sanções. Se as grandes empresas parassem, haveria demissões nos chefes e instalava-se a crise política. Para obstar a isso vieram as nacionalizações, com motivos políticos e não económicos.  Só se os problemas nas regiões se agravarem, e as chefias regionais descontentes se articularem, é que, talvez os militares e os homens das informações possam agir pois contariam com uma base de apoio.

Muitos falam das falhas de informação que levaram Putin à invasão. Segundo Andrei Soldatov, os serviços de informação da Rússia não são estúpidos. Sabiam que a Ucrânia não queria uma nova União Soviética, mas constataram que era um estado frágil, e um governo pressionado; se atacassem cirurgicamente com choque e surpresa – como foi a tentativa de tomar Kyiv

Praça Maidan ou da Independência

– Zelensky não teria zelo para se defender e seria liquidado politicamente. Foi o que disseram a Putin.

A obsessão de Putin com a Ucrânia trouxe a decisão de invadir em todas as frentes; e a invasão foi tão generalizada e brutal que os Ucranianos tiveram de se defender em todas as fronteiras. Zelensky teve a famosa frase Não quero boleia; quero munições.

Para Andrei Soldatov não é fácil perceber o objetivo final de Putin agora que chegámos ao 39º dia da guerra. Se ele quisesse estabelecer uma ponte terrestre entre a Crimeia

Zona de Crimeia (tanques russos)

e a Rússia e desestabilizar a Ucrânia como um estado cleptocrata fracassado, bastaria bombardear as infraestruturas do país, como Israel fez ao Líbano em 2006 e depois avançar nas costas do mar de Azov.

A Europa não iria mexer-se. Mas com os tanques a entrar na Ucrânia por todo o lado, a Europa e os EUA despertaram, lançaram sanções eficazes e estão a passar armamento.

É cedo para alvitrar sobre o desenlace, mas o aviso deixado por Soldatov é claro: o modo habitual de Putin sair de um problema é criar outro.

A guerra do Donbass foi uma saída para a crise da invasão da Crimeia. Países como a Moldávia e os estados bálticos devem ficar de sobreaviso.

Amanhã é outro dia.

Site de confiança:

https://agentura.ru/news/

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (XI)

2 de abril- Mendo Henriques

. O “ Nevoeiro da guerra”

Parece que é de Clausewitz a expressão o “nevoeiro da guerra”, a identificar a incerteza e falta de conhecimento, e por vezes o caos, que acompanha qualquer operação militar. Mesmo na era da informação, não desaparece a névoa que cobre os acontecimentos e que só é resgatada quando um dos adversários alcança vitória.

A 2 de abril rompeu-se a neblina na frente de Kiyv. Como o jornalista Ponomarenko ironicamente “tuitou”, Vladimir Putin deveria declarar que após 38 dias da minha guerra de 3 dias, o meu exército avança para trás após uma gloriosa derrota em Kiyv“. Em tom sério, muitos observadores estão de acordo em considerar que foi surpreendente a estupidez com que a operação foi realizada, conforme no NYT escreveu Scott Boston, analista da RAND.

Os invasores nunca controlaram o espaço aéreo sobre a capital, permitindo que as forças ucranianas aí concentrassem defesas aéreas, aproveitando a malha urbana para se camuflarem.

A Força Aérea Russa perdeu por falta de comparência e a derrota tática de Putin em Kiev reflete a completa falha estratégica no planeamento de toda a invasão. Não houve um foco de ataque e os invasores continuam a dispersar os recursos por várias frentes. As forças militares foram lançadas para o combate sem apoios logísticos suficientes e sem preparação moral. E sobretudo, os ucranianos foram subestimados. A Ucrânia nem sequer é uma nação, afirmou Putin. Os resultados desta arrogância estão à vista.

Tragicamente à vista ficaram os mortos, de um e outro lado. Vão entrar para a história a vala comum em Bucha com mais de trezentos cadáveres;

Corpos nas ruas e em valas…

os civis de mãos atadas nas costas e baleados no meio das ruas; os militares de camuflado a jazer no chão e a salpicar as ruas das povoações reconquistadas pelas forças ucranianas.

Essas povoações estão semidestruídas pela violência do fogo e minadas pelas tropas em retirada.

Na era atómica, há um pormenor que diz muito da loucura de Putin.

Soube-se ontem da primeira morte causada por radiação em Chernobyl.

Além deste soldado russo, há mais 26 em terapia intensiva devido a envenenamento por radiação, e 73 hospitalizados. Passaram três semanas junto à central atómica a viver em abrigos escavados no chão radioativo. E os que retiraram. saquearam os edifícios e levaram computadores e bens de consumo.

Se o nevoeiro da guerra se levantou na frente norte, prossegue nas restantes. Pode haver ainda novos ataques a Kiyv. Pode haver ataques a partir da região da Transnístria.

Em particular na frente do Donbas, várias povoações continuam sob fogo de artilharia, morteiros e foguetes. O comboio de ajuda humanitária a Mariupol, de onde mais 3.000 civis foram ontem evacuados, foi rechaçado pelas forças russas.

Há muitas indicações de que os russos estão a preparar ataques em pinça a partir das províncias de Luhansk e Donetsk. O comando ucraniano reconhece que perdeu o controle de Izium mas saúda o emprego eficaz dos mísseis terra-ar Starstreak entregues pelos ingleses.

Vivemos na era da informação. O Hackers Anonymous anunciou que hackeou o Patriarcado de Moscovo da Igreja Ortodoxa Russa; entre os 15 gigabytes existem informações sobre a cumplicidade do patriarca Cirilo na lavagem de dinheiro de membros do governo russo e da oligarquia. Também hackearam fabricantes russos de sistemas de mísseis balísticos.

Na frente externa, o presidente do Cazaquistão anunciou que é contra a guerra e apoia a integridade territorial da Ucrânia. Há meses, Moscovo apoiou-o contra uma tentativa de revolução laranja. Esta reviravolta surpreendente deve ser seguida com toda a atenção para o futuro das regiões de língua russa, uma vez que desapareça a tirania de Putin.

Segundo o Pentágono, a retirada de Kiyv pode ser temporária e Moscovo poderá voltar a atacar a cidade com novas forças enviadas para a Bielorrússia. Mas o mais provável é que a maioria das forças retiradas de Kiyv e Chernihiv serão reposicionadas no Donbas. Dos 170 Grupos Táticos de Batalhão, com cerca de 1500 homens cada, aprontados para a invasão, parece que apenas 100 foram totalmente empenhados. Mas desta centena, metade foi destruída ou já não está operacional. Donde ser decisivo Moscovo reforçar-se.

A 1 de abril começou o recrutamento de 135.000 russos para o serviço militar; levarão pelo menos 4 meses de treino antes de ficarem prontos para combate e já há relatos de convocados a recusar-se lutar na Ucrânia. Vêm juntar-se aos oficiais da Guarda Russa de Krasnodar que estão a defender-se, em tribunal, das ordens de operar fora do país; e aos 300 homens da Ossétia do Sul que desertaram de um contingente de 2000 militares a caminho da frente; e parece que apenas 300  dos 20.000 mercenários sírios com que Moscovo contava como reforços, chegaram à capital.

A Rússia lançou uma campanha massiva de propaganda nas regiões de Kherson e Zaporizhia para a criação de novas repúblicas “populares” e a realização de um referendo para as legitimar.

A propaganda nestas províncias onde se fala principalmente russo, assenta na discriminação da Ucrânia contra a língua russa e elevada a cabo por agentes do FSB e colaboradores locais. Parece ser mais um loucura da obsessão de Putin: o presidente Zelensky venceu as eleições de  2019 sobretudo com o apoio das províncias ucranianas de língua russa.

Amanhã é outro dia

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (X)

1 de abril 2022- – Mendo Henriques

. O Bilhete de regresso, a norte

Com a entrada do mês de Abril confirma-se o êxito dos contra-ataques ucranianos na frente norte de Kiyv e Chernichiyv.  Só é possível perceber a dimensão desta primeira vitória de David contra Golias em modo 2.0, se regressarmos ao 24 de fevereiro e ao bilhete de ida para Kiyv recebido pelos invasores.

O que se passa? Era a primeira pergunta que fazia o generalíssimo dos exércitos aliados em 1918, o Marechal Foch, sempre que chegava ao quartel-general. O que passava a 24 de fevereiro é que o ministro da Defesa Sergei Shuigoi, um engenheiro e um governante astuto, e o chefe do Estado-Maior V. Gerasimov tinham planeado uma operação militar especial, com vantagens de posicionamento, tempo e superioridade material.

Contavam com uma operação tipo polícia de choque, como na Geórgia em 2008 e Donbass em 2014.

Em 1939, a Alemanha bateu a Polónia em cinco semanas; em 2003, a invasão norte-americana do Iraque alcançou a vitória após 40 dias de combate. Esses chefes militares russos nos seus postos há dez anos e supunha-se que conheciam o adversário; mas a cegueira e a tragédia de Putin pode ter-lhes imposto o que a razão recusava.

O que sabemos é que, ao invés da doutrina americana, a doutrina militar russa não exige a conquista da supremacia aérea absoluta antes de fazer avançar as tropas de terra. Assim o exército russo avançou e, em catorze dias, ocupou cerca de 25% de faixas fronteiriças do território ucraniano, que tem 600 mil km2, o tamanho da Península Ibérica. Bloquearam Kyiv a norte, e ocidente e tentou fazer o mesmo a leste. Cercaram Kharkiv com as tropas de assalto do I Exército Blindado das Guardas, uma unidade de elite que liderou a Operação Uranus em 1942 que cercou os alemães em Estalinegrado e defendeu o flanco sul na batalha de Kursk em 1943.

Foi bem-sucedida a invasão a partir da Crimeia na direção leste, com a tomada de Kherson e o avanço para alcançar o rio Bug, tendo Odessa como alvo; e também na direção do Donbass, conquistando Meliutopol e conseguindo cercar Mariupol no que se revelaria uma tragédia humana; avançaram ainda para norte na direção de Zaporozhia, por forma a consolidar a linha do rio Dnipro.

Após cinco dias de operações fulgurantes, tudo mudou a norte. As pequenas unidades móveis ucranianas com poderosos misseis antitanque e drones armados detiveram as forças que iriam conquistar Kiyv. Já no primeiro dia falhara a tomada de assalto da capital após a captura muito disputada do aeroporto de Hostomel. Começaram os bombardeamentos e lançamentos de mísseis de modo a aterrorizar as populações e intimidar os governantes.

Agora, após cinco semanas, e após admitirem publicamente em Istambul o seu falhanço, os russos a Norte retiram-se batidos. Esfumou-se a notória coluna militar que se estendia até 60 km a norte de Kiyv – e que passará à história como prova da estupidez militar de Gerasimov e Shoigu e do crime histórico de Putin. Ao que agora assistimos é à retirada e aos destroços fumegantes dos seus tanques, veículos e meios aéreos, com perdas muito pesadas.

Está à vista o recuo das unidades blindadas do 35º e do 36º Exércitos de Armas Combinadas, que tinham invadido a Ucrânia a partir da Bielorrússia, respetivamente a ocidente e a leste do rio Dnipro.

Deixam para trás algumas forças travão que serão facilmente derrotadas pelos ucranianos. Centros urbanos como Hostamel, Irpin, e Bucha, antes nas trevas geográficas e a demasiado conhecida Chernobyl, conquistados pelos russos nos primeiros dias da ofensiva, estão agora nas mãos ucranianas.

A coragem e a sagacidade das forças ucranianas “ofereceu” o bilhete de regresso à Bielorrússia às forças invasoras a norte.

Esta primeira grande derrota tática vai levar Putin a concentrar os seus esforços na região do Donbas.

Mas o presidente Zelensky já avisou, no dia 31 de março que também as forças ucranianas se deslocarão para essa frente, e que continuará a lutar e a negociar até obter uma paz com honra.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (IX)

31 março  – Mendo Henriques

. Guerra e Quarta vaga da democracia

31 de março

Há um mês atrás quem pensaria que a vitória de Putin não seria rápida e que Kiyv não cairia em 72 horas? A coragem e as capacidades dos Ucranianos confundiram essas suposições e, como escreveu Churchill, a coragem é o valor que possibilita os demais. Com a guerra a entrar na sexta semana, e embora a máquina russa tenha muito potencial de destruição, a Ucrânia mostrou ao mundo as suas primeiras vitórias.

Uma sondagem da agência ucraniana InfoSapiens indica que 91% dos Ucranianos confiam em repelir a invasão de Putin. 31% consideram que a guerra vai durar meses. 70% estão pessimistas sobre as negociações de paz. 82% rejeitam a secessão da Crimeia e Donbas. 45% discordam de uma potencial recusa de adesão à NATO.

O presidente Zelensky e os seus ministros e porta-vozes mostram que o segredo da resistência é o povo. Acredita na vitória e está a lutar pela sua casa, terra e independência. Se quisermos um exemplo antigo, são como as nações em armas que resistiram a Napoleão. Se quisermos um exemplo contemporâneo, são como a tecnologia blockchain, em que todos validam a decisão comum. Existem informações abundantes sobre generais russos, dos quais 6 ou 7 terão já sido abatidos em combate. Não precisamos de ouvir falar de generais ucranianos porque toda a Ucrânia é uma nação em armas.

Heroína condecorada

No campo de batalha, os avanços dos invasores de Putin cessaram temporariamente, e as forças ucranianas começaram a contra-atacar. A 29 de março, a Rússia falou em reduzir a campanha do norte. Admitiu assim que, de momento, não consegue conquistar Kiev. Mas quase toda a faixa de território costeiro permanece nas suas mãos.

Como na Blitzkieg, o exército ucraniano do Donbas expõe-se a ser cercado por forças russas que avancem em pinça, vindas do norte, Lugansk, e do sul, Donetsk.

Não se pode subestimar o poder de fogo russo, mesmo que se acumulem notícias sobre problemas logísticos, militares esgotados e desmoralizados, mães esposas e namoradas de militares a falar para linha de apoio SOS da Ucrânia. Segundo o jornalista Dmitry Kolezev o “partido de guerra” liderado pelo checheno Ramzan Kadyrov, rejeita qualquer compromisso com a Ucrânia. Há sondagens a dizer que 83% dos russos apoiam a invasão, mas muitos têm medo de ter o nome registado pelos inquéritos.

É devido à ameaça contínua que o presidente Zelensky apela a que se reforcem as sanções económicas à Rússia, e a que a Europa e EUA forneçam mais armas. Aqui defronta-se com o nosso copo meio cheio: as prudências dos dirigentes ocidentais e as fragilidades introduzidas pelos mercados financeiros e interesses sem pátria.

No FMI e em Washington movem-se os interesses poderosos do dólar; há altos funcionários que vêm queixar-se de que as sanções financeiras ameaçam diluir o domínio do dólar americano; há traidores à pátria como Donald Trump que invocou a ajuda de Putin, a 30 de março, para jogos políticos internos.

A coragem do povo ucraniano é um exemplo histórico, mas só uma vitória decisiva traria o fim das ameaças.

Quanto mais vencer, mais capaz será de resistir a uma paz envenenada.  E vitória seria a base para um estado democrático do pós-guerra menos corrompido por oligarcas e infiltração russa e capaz para aderir à Europa. É demasiado cedo para falar do desenlace da guerra. Mas é tempo para pensar que o mundo vai continuar e esta Ucrânia conta mais do qualquer povo na causa da liberdade e da democracia, da Europa e da segurança mundial.

A Rússia esteve várias vezes em guerra com a Europa. Já foi invasora e também já foi vítima de agressão, como quando derrotou a França de Napoleão e a Alemanha de Hitler. Mas o destino de Putin nunca será fácil depois de ter falhado tragicamente a sua ambição de fazer a Rússia de novo grande. Quem confiará de novo num dirigente que rasgou as leis do direito internacional e iniciou uma campanha de bombardeamento de um povo irmão?  Que empresas voltarão a querer investir com este governo, depois do roubo dos aviões em leasing, das nacionalizações, da ameaça de quebrar os contratos do gás e petróleo? O ditador que tanto brincou com o capitalismo está a agir como se não o conhecesse, na sua bolha de desinformação.

Uma Ucrânia democrática consolidada seria um exemplo para o mundo que tem estado em deriva de desigualdade e nacionalismo. E ao desfazer-se do ditador derrotado do Kremlin, a Rússia poderia iniciar reformas internas e regressar ao seu destino europeu e mundial em vez de aposta no eixo Moscovo Pequim que não está a resultar.

A União Europeia tem o imperativo de trabalhar pela adesão da Ucrânia. Toda a gente sabe das burocracias complicadas e morosas para alinhar a governação da Ucrânia com a da UE. Mas este é o momento em que a Europa deve acolher a Ucrânia com entusiasmo, como acolheu a Europa do leste após a queda do domínio soviético. Poderia ser o início da Quarta vaga da democracia.

Mas para já, a guerra. O Ocidente deixou claro que a NATO não intervirá contra as forças russas porque, se o fizessem, a guerra poderia sair do controle, com resultados catastróficos. É a preocupação de Macron de que o pior está para vir. Mas tirando essa linha vermelha os caças da NATO estão prontos a proteger os comboios terrestres que transportam armas para a Ucrânia

Amanhã é outro dia .

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (VIII)

30 março  – Mendo Henriques

. Lutar e Negociar ao mesmo tempo

Parece que muitos comentadores perderam o essencial das negociações ucraniano-russas em Istambul em 29 de março. A grande notícia não foi a Rússia vir dizer que reduziria as operações nos arredores de Kyiv e Chernihiv, o que nem sabemos se vai suceder; a notícia foi a vitória das forças ucranianas sobre as forças russas em Kyiv.

Lutar e negociar ao mesmo tempo é uma das vitórias já alcançadas pelos ucranianos. A Rússia pediu nova reunião na Bielorrússia, mas Kiyv só aceitou realizá-la em Istambul e os resultados começaram a surgir.

Os russos declararam que seu o objetivo é o controle do Donbass. Diminuíram os apelos cínicos à “desnazificação” e desmilitarização.

Putin até aceitou, em princípio, a exigência do presidente Zelensky para uma reunião. Será que, de repente terá visto a luz e percebido que a Ucrânia é um país, ao contrário do que insistiu no seu famoso manifesto de guerra de Julho de 2021?

Tudo o que Putin diz ou faz dizer faz parte da desinformação permanente, e pode ser um dispositivo temporário. Quanto a Zelensky fez uma concessão: a Ucrânia não pede a adesão à NATO. Em troca quer países a garantir a defesa da Ucrânia, se esta for atacada. Esta é a essência do Artigo 5 da Carta da NATO e não é evidente que países aceitariam assumir tal compromisso: EUA? Alemanha? Turquia?

Os ucranianos sabem, que conforme o Memorando de Budapeste de dezembro de 1994, desistiram das armas nucleares que então possuíam em troca de vagas “garantias de segurança” pelos Estados Unidos e Rússia.  Desta vez, não serão ingénuos. Zelensky insiste que um acordo de paz deve ser submetido a referendo. Como as sondagens mostram que mais de 90% dos ucranianos pensam vencer, só aprovarão um acordo de paz que consagre uma vitória real com garantias de segurança críveis.

Os ucranianos provaram que podem lutar e negociar ao mesmo tempo. E por isso, a par dos debates sobre as “negociações de paz”, devemos estar atentos ao que se irá passar no Donbass, em particular Mariupol.

Essa batalha deverá decidir a guerra, nas próximas semanas. Se os generais e serviços de informação russos convencerem Putin a pôr de lado a sua arrogância, retiram as tropas de Kiev, Chernihiv, Sumy e Kharkiv e concentram-se em vencer no Donbass embora prossigam os bombardeios terroristas de toda a Ucrânia.

É vital que os amplos suprimentos de armas ocidentais continuem em força. Os mísseis antitanque cumprem a missão. Os Stingers, muito úteis, não sobem a grandes altitudes, e por isso a defesa aérea da Ucrânia precisa de caças e mísseis mais potentes.

Lutar e negociar ao mesmo tempo é uma das realidades do conflito humano. Os estudiosos da Guerra dos Trinta Anos sabem que a partir de meados do conflito, por volta de 1630, os adversários lutavam no Verão e negociavam no inverno mas a guerra não acabou logo.

Estamos no último dia de março de 2022. E a cada dia que passa os cidadãos e governantes ucranianos surpreendem o mundo com as capacidades militares e negociais, possibilitadas pela sua coragem e inteligência.

A invasão de Putin é uma guerra contra a humanidade e contra os valores do mundo livre representado pela Europa, Estados Unidos, países do G7 e do G20, estados de todos os continentes. Esta maioria moral eventualmente levará o grande culpado da guerra ao Tribunal Penal Internacional.

Se Putin sobreviver à oposição interna.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (VII)

29 março  – Mendo Henriques

A Rússia ferida pela guerra económica

Após a invasão de 24 de fevereiro, América, União Europeia e Tigres Asiáticos aplicaram sanções pesadas à Rússia com o objetivo de lhe paralisar a economia. Essas sanções visam indivíduos, bancos, empresas, trocas monetárias, transferências bancárias, exportações e importações. Faisal Islam, da BBC News, considera-as uma forma de guerra económica. Empurraram a Rússia para a corrida aos bancos, desvalorização do rublo (mais de 20%) recessão, inflação – já em 25% ao mês.

A sanção mais eficaz e pela primeira vez na história foi o congelamento das reservas do banco central russo. Não é por acaso que Putin recusou na passada semana o pedido de demissão da presidente do Banco, Elvira Naibullina, uma atlantista, e reconduziu-a por mais cinco anos.

Face às consequências brutais da guerra económica, o Kremlin está a regressar às políticas da era soviética, segundo os russos Andrei Soldatov e Irina Bogan, fundadores do Agentura.ru .

Nos tempos soviéticos, desde a Sibéria até Sochi, a economia era centralizada. Fábricas e cooperativas agrícolas produziam conforme os planos quinquenais de Moscovo. A nacionalização das empresas com acionistas estrangeiros começou a ser ditada aos poucos por Lenine após 1917 com medidas ad hoc. Desrespeito dos direitos de propriedade, repressão de gestores privados e, finalmente, economia com gestão centralizada.

Agora, ferido pelas sanções violentas do Ocidente em resposta à invasão, Putin começou referir nacionalizações ao terceiro dia da guerra. Dmitry Medvedev há 10 anos era a esperança dos liberais russos, e ostentava os gadgets da Apple. Agora, vice-presidente do Conselho de Segurança, fala da opção de nacionalizar entidades registadas em “países hostis”.

Em 10 de março, Vladimir Putin admitiu a nacionalização dos ativos de 450 empresas estrangeiras. O Kremlin tem uma lista de 60 empresas prioritárias incluindo Shell, IKEA, McDonald’s, Microsoft e Apple. O decreto será em breve enviado à Duma. Já foram aprovadas emendas ao Código Civil sobre propriedade intelectual, permitindo confiscar direitos de estrangeiros.

Tudo isto é um passo mais no caminho da autarquia após a anexação da Crimeia em 2014. Por causa das sanções europeias e norte americanas em 2015-2016, os oligarcas começaram a perder contratos no Ocidente. Putin ofereceu-lhes contratos para a modernização das forças armadas. Em seis anos, muitas indústrias entraram para o complexo financeiro-militar-industrial. Em vez das lutas entre oligarcas, começou a “aceitação militar” – um termo que significa a presença de militares a supervisionar a produção para o exército.

Este retorno à economia planeada foi assinalado por Putin, no Fórum Valdai. Estaria esgotado o modelo de capitalismo existente. Para chegar a algo novo, é preciso olhar para trás, considerar exemplos de sucesso, a economia planeada não me assusta, declarou então.

Entretanto quem sofre é o povo russo. Os preços no comércio de retalho dispararam. As importações colapsaram. Regressam velhos fantasmas. Um deputado do partido no poder, Rússia Unida, sugeriu reintroduzir o crime de “especulação”, conforme o decreto de Lenine em julho de 1918, que só admite o comércio estatal. Fome não haverá ,mas as prateleiras começam a esvaziar-se.

O principal objetivo soviético era a autarquia, uma economia independente de países estrangeiros considerados inimigos. E, em grande parte, dada a grandeza de recursos da Rússia, conseguiram esse feito até 1991. Com rendimentos medíocres e apesar dos gastos militares.

O isolamento de 2022 não é um objetivo: é o preço a pagar pela invasão da Ucrânia. Com o controle  estatal de volta, os quadros de valor abandonam o país. Pelo menos 70.000 especialistas em tecnologias de informação, já o fizeram e apesar de Putin lhes oferecer residências gratuitas e isenção do serviço militar. Mas o decreto de 2 de março não teve efeito; prevê-se a saída de  mais 70.000 especialistas em abril.

A notícia do dia é que após negociações entre russos e ucranianos em Istambul, o vice-ministro da Defesa da Rússia, Alexander Fomin afirmou que Moscovo vai “reduzir a atividade militar na direção de Kyiv e Chernihiv para criar as condições para um acordo de paz. É um sinal ostensivo e que Moscovo reconheceu uma derrota militar tática. Na realidade, foram as forças militares ucranianas que derrotaram os russos Kyiv e Chernihiv e os invasores continuam apostados na conquista de Mariupol “. A guerra continua dura e ainda não se sabe para onde vai pender a vitória militar estratégica.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (VI)

28 março  – Mendo Henriques

. O homem não pode continuar no poder, por amor de Deus

Na Polónia, a 26 de março o presidente Biden desabafou em modo coloquial que “Putin não pode continuar no poder, por amor de deus”. Já o chamara de “assassino” e de “carniceiro”. Já o definiu como “criminoso de guerra”. E hoje, 28 de março, veio confirmar que não estava nada arrependido do que tem dito e continuará a dizer.

Estas afirmações repetidas são ao mesmo tempo emocionalmente genuínas e também efeitos de palco para mostrar a resolução ocidental. Biden anda nestes palcos há mais de quarenta anos, e como que foi treinado para o lugar que desempenha; felizmente a América livrou-se de Trump. Em contraste, o presidente Macron veio considerar que a Europa devia fazer o seu papel habitual de Vénus enquanto a América faz de Marte. Nada de novo.

O mundo calculista da geopolítica é muito mais duro, mais impiedoso e mais volátil do que as palavras corajosas de Biden.  As tomadas de decisão no Kremlin e os riscos de escalada não dependem de palavras que se dizem, mas da avaliação de factos.

Putin escolheu atacar a Ucrânia, contando com a passividade do Ocidente que considera moralmente decadente em estilos de vida; que considera enfraquecido por dois anos de pandemia; financeiramente corrupto ao ponto de partidos, governos e personalidades da direita radical serem financiados por bancos moscovitas; economicamente dependente do gás e petróleo da Sibéria.

As suas declarações neste sentido são constantes desde a conferência de Segurança de Munique em 2007. Tinha outras opções, mas a Rússia, toda ela, da cultura, à economia, à política, e desde que é governada de Moscovo, sempre oscilou entre uma orientação para a Europa e para Ásia, para Ocidente ou para Oriente. Putin já foi atlantista nos seus dois primeiros mandatos. Em Lisboa em 2008, chegou a falar de uma Europa desde Lisboa a Vladivostok, o que dá traduzido, da princesa do ocidente á princesa do oriente. Era uma época em que jogava com a parceria com a NATO, à espera de reforçar o poder interno.

Mas Putin mudou muito a Rússia a partir de 2012, quando regressou ao poder. Começou a perseguir a oposição interna – mandando assassinar Boris Nemtsov; e começou a planear a agressão externa que, depois, consumou na anexação da Crimeia e de parte do Donbass. O confronto armado com um território ex-russo/soviético é o modo em que os recursos do Kremlin melhor funcionam e que se enquadram com o seu eleitorado nacionalista. Putin aguardou pela saída de Merkel para entrar em modo expansionista e mantém uma ameaça velada de invasão dos países bálticos.

Nada há, de momento que a Ucrânia e o Ocidente possam fazer senão resistir; como diz Alexei Navalny, as negociações são aproveitadas por Putin apenas para avaliar o adversário e mudar de tática, se preciso for; não é para chegar a um acordo. Considera que, do lado do “mundo ocidental” estão líderes fracos que jamais o enfrentariam. As suas ‘condições” para um cessar fogo são draconianas; mas aqui encontrou uma resposta à altura por parte do povo irmão ucraniano. E este conquistou o coração dos amigos da liberdade em todo o mundo.

Não há nada como uma ameaça externa para unir aliados desavindos. Foi o que se confirmou a 24 de março, nas cimeiras da NATO, G7 e União Europeia. A guerra na Ucrânia ressuscitou o Ocidente com a presença do presidente Biden, mas o resultado ficou aquém do desejável. Condenações morais; advertências contra uso de armas químicas e biológicas; apelos à paz. Mas o novo pacote de sanções para contrariar as capacidades de agressão russa foi fraco. Do que se sabe, o envio de armas defensivas para Ucrânia foi reforçado, mas o tabu dos aviões de caça não desapareceu. A prova de apoio à Ucrânia mártir e a unidade ocidental contra Putin é indispensável para a opinião pública ocidental, especialmente a dos Estados Unidos, muito desfasada das realidades externas. E por isso Biden seguiu para a Polónia a 25 e 26 de março e redisse o que disse

Quanto às operações de guerra neste 33º dia seguem a inflexão notada após o fracasso russo em tomar Kiyv de assalto. Bombardeamentos à distância das cidades e concentração do foco no sul. O Schwerpunkt russo mais importante é Mariupol.

Se as tropas de Putin conseguirem tomar a cidade, Putin pode declarar alcançado um objetivo estratégico que é o de unir os territórios anexados da Crimeia e do Donbass e dominar o mar de Azov.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância (V)

27 março  – Mendo Henriques

A tragédia de Putin

A tragédia grega caracteriza-se por um enredo em que os acontecimentos se desenrolam com altos e baixos, sem sabermos onde vão parar. Mais perto do fim, é revelado ao protagonista o seu destino fatal: ousou desafiar o destino e os deuses; cometeu um crime de que podia ter ou não consciência. Chama-se isso a hybris; é mais do que arrogância, orgulho, insensatez. A 24 de fevereiro revelou-se o destino trágico de Vladimir Putin.

Durante mais de 20 anos, foi um dirigente poderoso, incontestado e com relativo sucesso, segundo os padrões russos. Nos dois primeiros mandatos, até 2008, a Rússia prosperou com a alta do petróleo, teve uma indústria empreendedora, foi relativamente livre, e tentou aproximar-se da Europa. Putin ganhou confiança com os sucessos.

Mas a partir de 2012, em que se tornou de

Putin

novo presidente em eleições manipuladas nos números, as coisas começaram a degradar-se. O assassinato em pleno dia, do seu opositor Boris Nemtsov, numa ponte em Moscovo, foi o sinal da caça à oposição. Seguiram-se prisões e tentativas de envenenamento de outros.

Mudou a equipa económica afastando Anatoly Chubais, agora exilado; e mudou de ministro da Defesa, chamando Sergei Shoigu, que pactuou com interesses instalados e corrupção nas forças armadas russas. Entrou em funções a equipa do complexo financeiro, militar e industrial que se mantém em funções em 2022.

Desde 2014 com a crise de Maidan na Ucrânia, Putin começou a aplicar a ideia fixa que conduziu à tragédia de 24 de fevereiro; reconquistar a Ucrânia, começando pela Crimeia e Donbass. O seu legado histórico, de acordo com a missão da terceira Roma seria o retorno da Ucrânia ao controle da Rússia. É um prémio pelo qual vale a pena lutar e dar a vida.

A obsessão de Putin com a Ucrânia que considera parte da Rússia tem de ser enquadrada nos movimentos profundos da história; não é apenas uma questão de segurança nacional e de conspirações do Ocidente. Putin sempre pensou assim, tal como muitos russos e ucranianos da geração soviética. Dois anos de confinamento COVID-19 levaram a leituras que afinaram este sentimento e que redundaram no seu já famoso artigo- declaração do verão de 2021 em que anunciava a tragédia: a Ucrânia não é uma nação; deve ser neutralizada.

Para planear a invasão, Putin não quis pensar cenários nem debater custos económicos. Segundo Alexander Gabuev, no The Octavian Report, escondeu o plano.

A Operação militar especial não era exatamente uma guerra e foi planeada de modo quase clandestino com um punhado de militares e siloviki. Como ex-KGB, Putin não queria que os detalhes vazassem para o exterior, e ainda está por apurar como os serviços de informação americanos receberam planos tão detalhados, possivelmente do interior do Kremlin. Os custos loucos não lhe interessaram.

Tudo isto ajuda a explicar por que razão o plano de operações era um ataque cirúrgico que eliminaria as defesas aéreas da Ucrânia, destruiria os sistemas de comando e controle, alvos de depósitos de armas e concentrações de tropas e Volodymyr Zelensky fugiria para Washington.

O exército ucraniano ficaria desmoralizado; parte do país saudaria a Rússia com flores e a outra parte não resistiria. Não houve generais do estado maior russo  para perguntar: “Ok, e se isso não acontecer? Estamos prontos para conquistar as grandes cidades e para ocupar o país?” Não havia plano B.

Para lidar com a China e o mundo árabe, Putin escuta os profissionais. Mas quando se trata dos Estados Unidos e Europa, dispensa-os: “Somos europeus, conhecemo-los” é o que pensa. Com a Ucrânia, é ainda pior. Entregou as informações sobre o país irmão ao 5ª departamento dos assuntos internos da FSB, Serviço Federal de Segurança russo. Nunca ouviu os diplomatas. Euromaidan, a resistência dos ucranianos em que o Donbass seja russo desde 2014, isso não lhe interessa: “Eu conheço a Ucrânia. A Ucrânia é como nós. São os europeus e os americanos que nos estão a provocar   é estranho, algo que lhes impuseram.”. É certo que pela Ucrânia combatem os neo nazis do regimento de Azov e o seu partido teve 2ª nas eleições; o numero de forças de extrema direita russa é incomensuravelmente maior. Putin usou este fragmento para falar de desnazificação e passou esta mensagem à desinformatsya que a espalha pelos putinistas ocidentais.

O resultado foi a loucura da Operação Militar Especial, a hybris. Putin julgou que conquistaria a Kiev em três dias; as tropas seriam recebidas com rosas; o presidente Zelensky fugiria para Washington, como a criatura do Afeganistão.  Não tinha plano B. E por estar convencido que o Plano A foi mal executado e inciou as purgas dos maus executantes. O general  Sergey Beseda, chefe do 5º departamento do FSB, e o seu vice Anatoly Bolyukh, responsáveis pela informação estrangeira e especializados na Ucrânia, estão em prisão domiciliar, segundo o jornalista Andrei Soldatov.

Sabe-se agora que, com um dia de antecedência, quando os generais tomaram conhecimento da missão, vários deles ficaram abalados. Dizer a um militar russo que a missão é bombardear Kiev para libertá-la dos nazis, é coisa de louco. O moral das tropas é baixo. Ninguém estava preparado, e o desempenho da tropa russa está a ser mau.

A tragédia de Putin foi revelada. Começam a surgir declarações que os objetivos de guerra se devem restringir ao controlo do Donbass. O desenlace aguarda-se.

Mapa da “nova guerra”

 

 

 

 

 

Amanhã é outro dia.

Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (IV)

26 março  – Mendo Henriques

. A “operação militar especial”

Estamos habituados a ouvir o Kremlin afirmar que na Ucrânia está a decorrer uma operação militar especial, “OME”, e não uma guerra. Esse é o discurso oficial, acolhido pela maioria do povo russo que só pode seguir os canais e a imprensa do regime.

No Ocidente, a maior parte das televisões e muitos especialistas tomam isto por mentira pura. Enganam-se e, ao enganarem-se, esquecem dimensões decisivas que, só elas, explicam a derrota crescente da invasão de Putin.

Em primeiro lugar, discurso oficial é discurso.

Após a Segunda Guerra Mundial entendeu-se que os Estados não tinham o direito de travar guerras ofensivas. Todos os Ministérios “da Guerra” passaram a ser designados “de Defesa” no final da década de 1940. Todos defendem, ninguém ataca.

O conflito só surge contra “criminosos“, “terroristas“, “jihadistas“, “nazis“. Abolimos a distinção do Direito Romano entre inimigo e criminoso.

Os Estados apenas admitem que travam guerras contra culpados de crime, fazendo “pacificações“, “contraterrorismo“. As potências fazem guerras, mas primeiro criminalizam e desumanizam os inimigos. Donde o discurso sobre “terrorismo” real, “armas de destruição maciça” que não existiam e agora o delírio de Putin sobre a “desnazificação” da Ucrânia.

A Rússia não planeou uma guerra, mas sim uma operação militar especial. Uma guerra é organizada por escalões. Após o primeiro ataque, vem o segundo escalão, depois o terceiro, a liquidar defensores, ocupar território, controlar linhas de abastecimento. Nada disso sucedeu. Após o falhanço da tomada de Kyiv nos três primeiros dias, graças à corajosa e eficaz defesa ucraniana, os invasores começaram a ficar sem combustível, sem alimentos e sem munições, e não sabem organizar os suprimentos. A Rússia tem muitas máquinas de guerra, mas revelou-se fraca em estruturas de apoio e controlo e comando.

A Rússia não preparou uma guerra e muito menos uma Blitzkrieg. E nisto, Putin está correto. A declaração sobre a OME é genuína, porque não esperava resistência. É isto que os media não sabem destacar. Em rigor, Putin não sabe fazer guerras. Durante toda a vida, organizou e lançou operações especiais contra opositores muito mais fracos. E acostumou-se a consolidar o poder com essas OPE’s. Assim iniciou conflitos na Chechénia, Geórgia, e Síria com objetivos políticos. A coragem e eficácia dos Ucranianos estão a provar que, pela primeira vez na vida, Putin pode ser derrotado. O que o torna um dirigente encurralado e perigoso.

LVIV, bombardeamento nas proximidades

Esta impressão cada vez mais cavada de derrota no terreno levou o Kremlin a mudar de discurso no dia de ontem, restringindo os objetivos da OME à ocupação do Donbass.

Chocantes foram as declarações de Dmitry Medvedev, ex-presidente russo, sobre o espectro do uso de armas nucleares.  Em suma, ameaçou que a doutrina nuclear do Kremlin não exigia que um Estado inimigo usasse essas armas em primeiro lugar. O ministro da Defesa afirmou que a “prontidão” nuclear era uma prioridade.

Mapa da nova fase da guerra

O dia foi ainda marcado por contra ataques ucranianos em várias frentes, nomeadamente na grande cidade de Kherson.

Mapa da Guerra inicial

 

 

 

 

 

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância. (III)

25 março  – Mendo Henriques

Como tudo começou

A queda do Muro de Berlim em 1989 foi um marco histórico que permitiu a reunificação alemã em 1990. EUA, França, Inglaterra e Rússia eram as quatro potências com forças militares ocupantes da Alemanha, conforme os tratados de Potsdam.

As potências ocidentais contactaram Gorbachev para debater os termos da reunificação alemã. Gorbachev terá aceitado a retirada das tropas com a condição de que não haveria extensão da NATO até às fronteiras russas. Para garantir a aprovação soviética da Alemanha unida, foi acordado que tropas estrangeiras e armas nucleares não seriam estacionadas na Europa do leste. Contudo, nenhum tratado foi celebrado, e o teor das conversações é muito debatido; segundo historiadores, parece ter havido alguma ingenuidade de Gorbachev, centrado na evolução interna da URSS.

Entre os russos que evacuaram estava o coronel Putin, do KGB em Dresden. Um ano depois, após o golpe falhado em Moscovo dos militares soviéticos, Gorbachev cedeu o governo a Boris Yeltsin e este chamou Putin em 1999 para primeiro-ministro e, depois, presidente em 2000.

Putin

A história continuou.  Entre 1999 e 2017 a NATO incorporou países da Europa central e de leste, muitos deles antigos países soviéticos: Chéquia, Hungria, Polónia, Eslováquia, Bulgária, Estónia, Letónia, Lituânia, Roménia,  Albânia, Croácia e Montenegro.

Em particular com a declaração de Bucareste, 2008, houve um apoio à adesão à NATO da Geórgia e a Ucrânia. A França voltou à NATO militar em 2009.

O povo ucraniano surpreendeu o mundo com as manifestações da Praça de Maidan.

Estas foram iniciadas a 21 de novembro de 2013 em protesto contra a imposição de Putin ao presidente Yanukovich de repudiar um acordo de associação à União Europeia.

A revolta de Euromaidan alargou-se durante meses e com a Revolução da Dignidade em fevereiro de 2014 desencadeou a queda de Yanukovich; os novos governantes, entre os quais o presidente Poroshenko não conseguiram fazer a Ucrânia descolar economicamente.

Em fins de fevereiro de 2014 Putin invade a Crimeia que considera “terra santa russa” com “os homenzinhos verdes” – militares russos sem insígnias – apanhando desprevenida a Ucrânia.

Parte dos territórios de Donetz e Lugansk foram também ocupados por milícias russas. Nasce um conflito armado que, segundo relatórios de observadores da OSCE, causou cerca de 800 mortos em sete anos; 3/4 separatistas e ¼ ucranianos; não é um genocídio como diz a propaganda de Putin.

O conflito continuou, mas parecia localizado e debatia-se de quem era a “culpa”; se da Rússia que queria regressar à sua república ex-soviética e tinha meios e apoios no terreno, em particular no Donbass e Crimeia; se do Ocidente que queria a Ucrânia na sua esfera de influência.

Em Julho de 2021, Putin publicou um artigo oficial em que nega a Ucrânia como nação e se queixa do alargamento da NATO e do cerco à Federação russa. A partir de Novembro, forças militares russas deslocam-se para as fronteiras da Ucrânia, até atingirem entre 150 a 200 mil homens no inicio de 2002. Destes, 40 mil vão em manobras para a Bielorrússia, alguns colocados a 70 km de Kiyv.

Ambientalistas não eram com certeza. Na semana de 16 a 23 de fevereiro cresceram exponencialmente incidentes e explosões no Donbas.

Foi então que em 24 de fevereiro veio a invasão de “surpresa”. Os serviços de informação americanos e o presidente Biden tinham divulgado avisos prévios que a invasão seria a partir de 16 de fevereiro. Terão recebido informação das estruturas russas de segurança e defesa, que podem estar agora na mira das purgas anunciadas por Putin a 17 de março, tanto quanto o “nevoeiro da guerra” e a “diplomacia secreta” permitem ver. Mas a resistência do povo ucraniano foi a outra grande surpresa que fez a diferença e conquistou o coração dos amigos da liberdade em todo o mundo.

No dia de hoje, confirma-se que as forças ucranianas continuam a contra-atacar na frente de Kyiv, no que já se chama a batalha de Irpin, libertando núcleos suburbanos e aliviando a pressão sobre a capital. O potencial russo de ataque continua a ser reforçado, sendo que a proporção de forças continua pesadamente em seu favor.

No porto de Berdiansk, no mar de Azov, mísseis balísticos ucranianos afundaram um navio russo com armas e suprimentos para os sitiantes de Mariupol e o fogo alastrou a outras embarcações, depósito de munição e terminal de combustível.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância (II)

24 março  – Mendo Henriques

O mês mais longo

Faz hoje um mês que começou a guerra da Ucrânia. Mês mais curto porque começou a 24 de fevereiro. Mês mais longo, porque desde 1989 a história da Europa não mudava assim. O autocrata do Kremlin – que até agora só contava vitórias – encontrou pela frente um povo determinado a resistir-lhe e que comunica ao mundo a sua resistência.

A unidade da Ucrânia na defesa das suas gentes e terra é a grande realidade desta invasão. Os habitantes cercados em Mariupol, Sumy, Chernichev, e Kharkiv vivem em situação trágica, sob bombardeamentos diários de mísseis e artilharia. Exceto os que conseguem escapar por corredores humanitários e algumas dezenas de milhar deportados para a Rússia, não desistem.

Mais de 4 ou 5 milhões de refugiados vieram para Ocidente. 70 a 75% deles são mulheres e crianças. Pais, maridos, filhos, irmãos, avós, namorados ficaram para trás a lutar.

O porta-voz do UNICEF, James Elder, afirmou à CNN que Desde o início da guerra, há um mês, uma em cada duas crianças teve de fugir de casa. Cada dia é um dia de preocupação para os familiares.

Os Ucranianos dispõem-se a sacrifícios que, no Ocidente consumista, há muito não imaginávamos. Os protestos de civis sucedem-se em territórios temporariamente ocupados; os colaboracionistas são mal vistos, como em Meliutopol; um colaboracionista local foi morto há dias. E estas populações partilham língua, cultura e ortodoxia com a Rússia.

Uma das grandes razões para a resiliência da Ucrânia é estar a reagir como um ser vivo, um organismo atacado que não depende só de iniciativas individuais. A guerra uniu os Ucranianos aos dirigentes.

Antes da invasão, Zelensky contava 23% de popularidade. Não é que não tivesse apoio popular; o seu partido Servos do Povo, ganhou folgadamente em eleições democráticas Mas ele e seus ministros e comandantes são a face de um povo unido.

Volodymyr_Zelensky

A invasão de Putin criou uma unanimidade decisiva em operações militares. Os moradores de pequenas cidades e vilas formam milícias que são absorvidas pelas unidades de defesa territorial. Equipam-se com os numerosos armamentos que chegam dos aliados europeus e dos Estados Unidos. As unidades armadas tomam iniciativas e adaptam-se à situação no campo de batalha.

Os ucranianos estão a travar uma guerra 2.0. ou 3.0.  São tantas as microiniciativas tomadas que seriam impossíveis, ou nunca aconteceriam, se fossem ordenadas do centro do poder. Pelo contrário, os invasores russos estão cada vez mais imobilizados com uma crise de logística e de controlo e comando, sendo que já 5 ou 6 dos seus generais foram liquidados.

Foi assim o EuroMaidan em 2013-2014.

Foi um movimento que começou e se aguentou sem liderança central. Surgiram muitas teorias da conspiração sobre quem alimentava Maidan precisamente porque faltava um poder central. Esforços semelhantes ajudaram a Ucrânia quando a Rússia invadiu o Donbas em 2014.

Os laços na sociedade ucraniana alimentam o esforço de guerra e levam a quebrar os dentes a Putin e em breve, esperemos, a redimir o povo russo. Окупанти геть! Слава Україні!  Glória à Ucrãnia

O acontecimento do dia é a cimeira da União Europeia, NATO e G7. Aguarda-se que dela venham mais apoios em armas defensivas e mais um pacote de sanções. A presença do presidente Biden na Europa é muito importante.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância (I)

O Jornal de Oleiros tem o gosto e a honra de publicar diariamente a partir de hoje, a Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância do nosso distinto Colunista a quem agradecemos a deferência.

  • Professor Doutor Mendo Henriques

. 23 de Março

O que me ligava à Ucrânia antes de 24 de fevereiro de 2002? Pouco.

Visitei Kiyv – chamávamos-lhe ainda Kiev. Fiquei a admirar as pessoas afáveis com que lidámos. Apreciámos as longas caminhadas na avenida Khreschatyk, a porta Dourada, as cúpulas sonhadoras das igrejas, o bairro de Podilsky, os parques e as vistas sobre o Dnipro. Visitámos de noite, Baby Yar, o memorial anti nazi. Sendo o alojamento na Praça Maidan, tivemos ocasião de refletir nos eventos pró europeus da Ucrânia de 2014. Em Lisboa, participei na eucaristia da comunidade ucraniana da Igreja de Nossa Senhora da Nazaré em Lisboa. Valeram os cânticos porque russo/ucraniano quase que só através dos algoritmos de tradução google.

O que me liga à Rússia? Muitas coisa, desde a leitura assídua enquanto miúdo e, depois, algum ensino na universidade sobre Alexandre Solhjenitsyne e Leo Tolstoi; o visonamento de muitos filmes e séries; e visitas de estudo a Moscovo e São Petersburgo.

O estudo ao longo dos anos de uma das culturas mais profundas da Europa que começa com a Rus’ de Kiev precisamente e cuja modernidade está cheia dos hiatos e convulsões que todos conhecemos. Tolstoi, um dos poucos autores que consigo reler ou rever nos vários livros e filmes. Tem lá quase tudo com que a ficção multiplica a realidade: povo sofredor, destino desconhecido, estado despótico, invasores à porta, procura da felicidade pessoal, empenhamento cívico, e, claro, a guerra e paz.

Foi essa guerra que, a 24 de fevereiro, mexeu comigo e com todo o mundo. Acontecimento global, como a COVID-19. E que vai deixar ondas no mar da história com um desenlace desconhecido Fora do cálculo racional dos interesses, e do jogo de xadrez purament

Mendo  Henriques

e racional do equilíbrio de poderes, após um passado de vitórias políticas, Putin lançou a criminosa invasão da Ucrânia. A população está a sofrer, refugiados, bombardeados, fora os que já morreram, civis e militares. A tropa russa também está a morrer em números trágicos e a guerra segue segue o seu.

Hoje a 23 de março as atenções centram-se em Mariupol. Putin jamais mudará de trajetória antes de conquistar essa cidade que une os territórios ucranianos que invadiu entre a Crimeia e o Donbass.

Amanhã é outro dia.

 

Sobre Jornal de Oleiros

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2 Responses to Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância (I) a (LXXVIII) – (*) Mendo Henriques, Professor da Universidade Católica-

  1. Edite diz:

    Muitos Parabéns pela continuação das crónicas “Amanhã é outro Dia “…
    Tanta luta… um dia de cada vez!

Os comentários estão fechados.