Crónica da invasão da Ucrânia ( LXXXVIII) – A tirania dos imperativos externos

Crónica da invasão da Ucrânia ( LXXXVIII)

. A tirania dos imperativos externos

30 de Outubro de 2023

A terrível repetição diária de mortes, destruição, violência e da Ucrânia confronta-nos com uma das contradições mais chocantes ​e trágicas ​da vida política. Enquanto na vida nacional há um acordo mínimo de que o propósito é a busca da “vida melhor”, uma “casa comum” – embora não haja acordo sobre o que seja – na versão internacional prevalece o propósito de pura sobrevivência, que, com a guerra, se torna a “pior vida” imaginável.

Dentro de portas, as nações têm uma certa capacidade para lidar com vizinhos expansionistas, investidores ávidos, credores sem escrúpulos e potências hegemónicas. Mas essa latitude desaparece na política internacional, dominada por imperativos de segurança, agravados quando o vizinho é poderoso, tem interesses estratégicos no território – e tanto mais perturbador quanto existem invasões passadas e outras queixas históricas.

A Rússia dos 11 fusos horários, tem 28 vezes mais área territorial e 4 vezes mais população do que a Ucrânia;  com a tragédia dos refugiados 5x. Apesar de ser o país mais rico do mundo em recursos naturais, os seus interesses estratégicos no território ucraniano, começam pela Crimeia, cabeça de ponte das suas frotas comerciais e militares para o Mediterrâneo. Em 1991, a Rússia manteve a base naval de Sebastopol, graças a contratos de arrendamento com a Ucrânia independente. Mas no braço ferro com a Europa após o Euromaidan, Putin anexou a península em 2014 e expandiu a invasão da Ucrânia em 2022.

Há essencialmente dois caminhos para reduzir a tirania dos imperativos externos: o reconhecimento mútuo, e o rearmamento unilateral. Desde 2007, com os ministros Serdyukov e Shoigu, e sob a sombra de Putin, a Rússia escolheu o rearmamento e assim conseguiu invadir a Ucrânia com um exército profissional de uns 150 mil homens altamente equipados.

Conhecemos como falhanço da conquista de Kyiv em “três dias” nos trouxe até ao duelo presente. Mas apesar da brutal desproporção entre as duas nações em mais de 600 dias de guerra, a Ucrânia derrotou o núcleo das unidades profissionais (kontratniki) do Exército Russo, equipadas com os mais recentes tanques, VAI’s, sistemas de artilharia, e defesa anti-aérea. Centenas de milhares desses soldados falharam no campo de batalha e muitos foram liquidados.

Para substituir o esgotado exército, o Kremlin tem sido forçado a enviar equipamento antigo e armazenado; já apareceram centenas de tanques T-55 dos anos 60 (e mesmo camiões ZIS-5 dos anos 1930 e 1940 dos quais foram produzidos um milhão). O pessoal é cada vez pior treinado – ou mesmo destreinado. Graças ao apoio maciço dos países da NATO, a Ucrânia está muito à frente da Rússia em treino, doutrina, veículos e táticas modernas.

Até recentemente, a superioridade relativa russa residia nos milhares de sistemas de artilharia, capazes de bombardeamentos de saturação como em Mariupol, Bakhmut e agora Avdiivka. A Ucrânia tem uma artilharia cerca de 10 vezes mais eficaz em infligir danos, mas só agora tem números suficientes para que as missões de fogo comecem a atingir a paridade com os russos: um desastre para os russos.

Os exércitos de Putin estão disseminados em fortes posições defensivas protegidas por extensos campos minados e trincheiras. Sem superioridade aérea, a Ucrânia tem de recorrer a mini ofensivas de desgaste, atacando uma posição defensiva de cada vez. Se a linha russa “quebrar” num ponto como aconteceu em Kharkiv, em Setembro de 2022, a ofensiva acelera. Mas como ainda não quebrou após 5 meses, a tarefa é mais lenta e, salvo surpresa política em Moscovo, terá de ser realizada em 2024.

No início de 2024, a Ucrânia terá uma força aérea mais eficaz para enfrentar as desagastadas forças aéreas russas que têm sofrido grandes perdas especialmente em helicópteros de ataque. Em sistemas de mísseis táticos além dos HIMARS de 2022, contará com os Storm Shadow/Scalp e ATACM’s. Portanto, o ritmo será mais rápido.  Em contrapartida, a Rússia não tem opções de “bala de prata”. Não pode obter equipamento mais moderno nem treinar e equipar um exército mais eficaz com o tempo e os recursos disponíveis. Resta-lhe o palavreado das ameaças nucleares.

Regressando às duas vias para reduzir a tirania dos imperativos externos de segurança – reconhecimento ou rearmamento – vemos a Rússia a perder a segunda via.

Na dramática história europeia, o que contou para a paz pós 1945 foi a reconciliação entre a França e a Alemanha, criada por gigantes políticos como De Gaulle e Adenauer. O que permitiu aos europeus ocidentais permanecerem a salvo da URSS não foi tanto a NATO, mas o acordo dos vencedores da guerra em reconhecerem a hegemonia soviética o “cinturão” do “sistema de segurança russo”, que descia do Mar Báltico em direção ao Mar Negro. Isso é história.

Charles De Gaulle

Desde 1999 e os alargamentos da União Europeia e NATO, a história é outra que a entrada recente da Finlândia e da Suécia na NATO veio sublinhar.

Chegou a altura de a Rússia reconhecer que a Ucrânia entrou definitivamente para a Europa e que a Rússia só ganhará em reencontrar as suas origens europeias em vez de se afundar no euro-asianismo armado.

Amanhã é outro dia!

* Mendo Henriques, Colunista do Jornal de Oleiros

* Imagens, com a devida vénia Getty imagens

 

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