Crónica da invasão da Ucrânia ( LXXXLI)
. 14 de fevereiro de 2023
. As três ameaças à Rússia
A Ucrânia resiste com coragem e sucesso desde Outubro a uma prolongada ofensiva russa de inverno no Donbass, ao longo de mais 500 km de frente. É uma ofensiva semelhante aos ataques lançados pelos alemães a Verdun na primeira grande guerra.
Em alguns locais da frente têm feito avanços pontuais de poucos quilómetros, como na cidade de Bakhmut e em Kreminna. Noutros locais tem sido rechaçados, como em Vuhledar. Em todos os casos, segundo as fontes do Ministério da Defesa Britânico, têm sustentado perdas semanais ainda mais graves do que nas primeiras semanas do conflito, com várias centenas de mortos por dia. Calcula-se que as perdas ucranianas sejam cerca de um terço ou menos do que dos invasores.
A guerra criou na Rússia a tempestade perfeita com três pacotes de ameaças que evocam a situação de 1917: interferência estrangeira, colapso econômico e guerra civil.
O primeiro pacote é a ameaça externa representada pelo Ocidente global. Estamos a falar de que a Ucrânia tem sido armada por uma coligação informal de mais 50 nações que inclui toda a Europa, os EUA e parte do Commonwealth, e países significativos como Japão e Paquistão. Todos eles estão a enviar armamentos em ritmo crescente. A história dos últimos 11 meses de guerra no que diz respeito ao envio de armas pelo Ocidente e NATO pode resumir-se em vagas sucessivas de apoio. Enviamos munição, mas artilharia, não. Enviamos artilharia, mas HIMARS, não. Enviamos HIMARS, mas blindados, não. Enviamos veículos blindados, mas tanques, não. Enviamos Leopard-2, mas F-16s, não. Vamos ver! Em brave deverão chegar os F-16 ou F-18, até porque o Congresso dos EUA já destinou US$ 200 milhões no verão passado para treinar pilotos ucranianos.
Veja-se o apoio de Portugal à Ucrânia. Não contamos muito em termos de PIB, de facto, mas somos capazes de gerar personalidades de grande capacidade de negociação internacional, como António Guterres, secretário-geral da ONU que possibilitou o acordo dos cereais. Portugal conseguiu enviar helicópteros Leopards-2, M-113 APV’s e Kamov-32A, entre outras remessas militares. O Eurobarómetro mostra que 82% dos portugueses apoiam a Ucrânia, o segundo país europeu mais apoiante, após a Polónia. Mais significativamente, Portugal doou 200 milhões de euros para a reconstrução de instalações escolares na Ucrânia.
O segundo pacote de ameaças à Rússia cesta é o desequilíbrio das contas públicas de que os media ainda não falaram muito. Os resultados em janeiro de 2023 apresentados pelo Ministério das Finanças da Federação Russa anunciaram um déficit de 1,76 trilião de rublos, ou seja uns 26 biliões de euros. Os gastos em janeiro totalizaram 3,117 triliões de rublos, ou seja 40 biliões de euros, um agravamento de 59% em relação a 2022, devido às despesas da guerra. De acordo com as estimativas, o volume de receitas em janeiro de 2023 foi de 1,356 trilião de rublos, 35% menor que em janeiro de 2022. A razão é a queda das receitas de petróleo e gás em 46%. O Ocidente cortou muito nessas importações e Putin vê-se forçado a vender gás e petróleo à China e Índia por metade dos preços anteriores. Em 2022 o déficit anual russo foi de 3,3 triliões de rublos, 2,3% do PIB do país. Agora num só mês de Janeiro o défice é de 1,2% do PIB. A manter-se este ritmo, a Rússia entra em bancarrota no Verão. As medidas de “nacionalização” têm aguentado a economia interna, mas com perdas de qualidade e gerando alguma escassez.
O terceiro pacote de ameaças é uma crise de estado que já se perfila no confronto entre os dois blocos que Putin ainda consegue manipular: os blocos do poder e militar mais cautelosos, e o bloco dos “populistas” e “ainda mais duros”, com Prighozin, Kadhyrov e talvez Surovikin. As medidas repressivas crescentes tomadas pelo Kremlin e planeadas para manter a estabilidade a qualquer preço podem funcionar no imediato numa população habituada à passividade. Contudo, a médio prazo, a repressão aos chamados “agentes estrangeiros” que mais não são do que personalidades ou órgãos que discordam do regime – provoca ressentimento. O caminho para o totalitarismo gera perdas de capital humano, cada vez mais evidentes com a fuga de cérebros e técnicos para o estrangeiro. Os estudos e as sondagens apontam para que na sociedade russa deve haver uns 15% a 20% de população muito favorável à guerra , uns 15% anti guerra, cada vez mais silenciados e uns 60% a 65% que seguem o poder dominante; estarão onde sentirem que está a força dominante que ainda continua a ser Putin. A Igreja ortodoxa russa, muito paganizada e comprada pelo Kremlin, apenas mostra pequenos pontos de fratura. E o cancelamento da cultura russa no Ocidente pode beneficiar a Rússia, pois o lar torna-se o único porto seguro, embora tudo dependa de como o Kremlin alavanca esta oportunidade.
Em conjunto, a Rússia está em riscos de enfrentar uma repetição da experiência de 1917-20 de caos económico, intervenção estrangeira e guerra civil.
A ordem anterior à guerra, embora imperfeita, teria levado à coexistência Rússia-Ocidente. A Ucrânia era uma prioridade baixa, a violência no Donbass era baixa e a Rússia tinha amplo espaço para manobrar mesmo que não tivesse respostas às questões centrais de segurança.
A violência criminosa de Putin criou a tempestade perfeita no interior do seu país. A coragem e capacidade do Ucranianos desde a primeira hora, fez o resto.
Amanhã é outro dia!