“O Tejo nem sempre passou na Barquinha, 30 mil homens mudaram o curso do rio”
Sabia que o rio Tejo nem sempre passou em Vila Nova da Barquinha e que foram precisos cerca de 30 mil homens para mudar o curso do rio, para o local onde hoje passa?
A mudança artificial do curso natural do rio deu-se numa época em os rios eram estradas e dali seguiam preciosas cargas de alimentos e outros para alimentar e abastecer Lisboa, como nos conta hoje Fernando Freire, autarca e investigador da história local.
No século XVI, o rio Tejo, depois de passar a vila de Tancos, desviava-se para a Carregueira e seguia até perto da actual ponte da Chamusca.
Aconteceu que por ordem do príncipe inicia-se a sua mudança artificial com início na Lagoa Fedorenta situada a este da actual Barquinha. Assim, 20.000 a 30.000 trabalhadores iniciam o desvio do curso do Tejo em mais de 1 km no sentido norte, aproximando-o da nossa Barquinha e da Quinta da Cardiga, ao longo de 10 km de extensão.
Tais obras provocaram alterações significativas no leito do rio (imagem 1). As suas margens eram um ponto de abastecimento e escoamento de diversos produtos, como cereais, peixe, vinho, cerâmica, produtos hortícolas, azeite, madeira, etc.
De 1544 e 1694 surgiriam a jusante da Lagoa Fedorenta novos portos em consequência da alteração do curso do rio. A zona era rica em agricultura e os residentes necessitavam de entregar os seus produtos no porto do rio para serem enviados para a capital do reino. A Barquinha é, na margem direita, um local onde a campina começa, e onde a charneca principia.
Na Revista da Faculdade de Letras, sob o título “Viajar em Portugal nos séculos XV e XVI”, num artigo de José Marques lê-se “ … em relação ao rio Tejo, sabemos que era atravessado também pelas barcas de Almada, Salvaterra (de Magos), Muge, Constância, Santarém, Arraiolos, Azinhaga e outras, a que nem sequer poderemos fazer menção.
Conhecemos um elevado número de barcas de passagem, através da documentação que, pelos mais variados motivos ficou registada nas chancelarias régias. Outras haveria de que não ficaram quaisquer registos.
A travessia dos rios fazia-se em barcas, instituídas preferentemente para a passagem de pessoas, animais e bens móveis, em localidades definidas não só por razões de segurança como ideias para a recolha de produtos.
Na folha 169 desta revista surge um mapa onde consta a Barquinha com sendo detentora de barca de passagem no Séc. XVI mas esta indicação, infelizmente, não vem sustentada em prova documental.
Que poderia ter existido um porto na Barquinha atesta-o o facto histórico ocorrido em 30 de Julho de 1636, a condenação de Pedro Fernandes, com a alcunha “o pisco”, cristão-velho, pescador, de 26 anos, acusado de judaísmo, morador em Barquinha, termo de Atalaia (2).
Ou seja, 92 anos depois do desvio do rio, 1544-1636, há novo indício que a Barquinha poderá ser um produto do Tejo uma vez que há uma povoação com esse nome e das suas gentes faz parte um pescador que mora em tal localidade.
Em 1694 reinava o rei D. Pedro II “O Pacífíco”, quando as águas do Tejo, entravam nas terras da Quinta conforme consta em alvará (3) “ … foram o tempo as correntes das águas mudando o primeiro curso, e entrando pelas terra da Quinta da Cardiga, de tal sorte que até ao presente lhe tinha levado mais de sessenta móis de terra de semeadura e já ia endireitando com casas, em que se temia grande ruína; e não lhe acudindo com reparo, na forma que fosse possível, entrariam as águas pelas terras circunvizinhas, levando as do campo da Golegã, com notável prejuízo, não só da dita Quinta, mas do bem público comum”.
Perante a gravidade dos factos convocaram-se os técnicos nesta matéria, à data designados por “homens práticos e inteligentes”, do termo de Coimbra (os atuais engenheiros), para resolveram a situação. A solução técnica passou pela plantação de estacadas de tachões de salgueiro (algumas visíveis na margem do rio, junto do Parque da Barquinha e outras árvores.
Todavia, os barqueiros e mareantes das Vilas de Tancos, Alcochete e Abrantes, porque a colocação de estacas e tachões lhe prejudicavam a navegação no rio, cortaram-nas e arrancaram-nas com o argumento que sem estas era mais fácil levar os seus barcos à sirga (corda que serve para rebocar embarcações) e assim podiam melhorar as suas viagens no rio.
Perante a erosão contínua e já danos consideráveis na Quinta da Cardiga era necessário agir de imediato.
Assim, não resta outra solução à Coroa do que fazer valer o seu Ius Imperium e com autoridade faz publicar um alvará, com data de 6 de Agosto de 1694, para que se tomem providências para evitar os danos causados pelos pescadores e mareantes. Para além da aplicação de coima, no valor de 2,000 réis, era imposta, também, uma pena de prisão por 20 dias. Em caso de reincidência aplicar-se-ia o dobro da pena, fundamento bastante, para compelir os pescadores dos propósitos dos seus actos.
(1) Mapa da autoria do Prof. José Alves Dias, “Uma grande obra de engenharia em meados do Século XVI: A mudança do Curso do rio Tejo”, Estampa, Lisboa, 1984.
(2) Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 359, cópia microfilmada. Portugal, Torre do Tombo, mf. 1811- A.
(3) Alvará, de 6 de Agosto de 1694. Fonte: Universidade Nova de Lisboa, Ius Lusitaniae – Fontes Históricas do Direito Português. O alvará tinha a vigência temporal de um ano, caso vigorasse ad-eternum, dizia-se alvará com força de Lei.