REINVENTAR PORTUGAL 6: Raízes da Cultura Ocidental – (4) Valores intelectuais e significado da cultura helénica
Por Fernando Silva
Propositadamente, não quis desmanchar o prazer de deixar os meus leitores embalados na visão romântica projetada dos nossos antepassados ancestrais da civilização minoica, os cretenses. Mas agora sou obrigado a apresentar outra perspetiva histórica sobre eles. Precisamente por entender que é necessário fazer uma autoanálise crítica à natureza da nossa própria cultura que seja acutilantemente chocante. Por isso temos de referir também outra realidade. Isto porque só a verdade produz os ingredientes propícios à criação duma sociedade madura a que todos almejamos resultante de princípios de liberdade genuína. A outra realidade é que os cretenses minoicos não deixaram na Península Ibérica só os traços culturais mencionados no artigo anterior. Deixaram também indubitavelmente no coração social dos iberos as marcas terríveis e negativas do seu mau caráter descrito por um dos seus profetas e comprovado pelo teólogo romano Saulo de Tarso que afirmou: “Um deles, seu próprio profeta, disse: os cretenses são sempre mentirosos, bestas ruins, ventres preguiçosos. Este testemunho é verdadeiro.”
Bem, respiremos fundo, tiremos as ilações, e avancemos para abordar os valores intelectuais, significado e cultura dos povos helénicos, também precursores da cultura ocidental e em particular da portuguesa.
A influência grega é muito marcante, informativa e formativa da nossa cultura. Como o epicentro da cultura ocidental tivesse passado definitivamente o Mar Mediterrâneo visto que os os helenes conquistaram os minoicos levando-lhes a cultura, a civilização Europeia deu mais um passo rumo à formação do pensamento ocidental e português. Os gregos desenvolveram uma estrutura de padrão de pensamento que se tornou nas linhas mestras da civilização ocidental particularmente relacionadas com a educação, a filosofia, a ética e a política. A religião do Olimpo influenciou a mentalidade popular com as suas idealizações clássicas dos conceitos de humanidade. Um deles é o da “cidade estado” desenvolvido pelo respeito às leis inter-humanas e aos padrões de convivência e comportamento social civilizado até então desconhecido e ainda hoje estranho em muitas partes do mundo.
Este conceito envolvia outros como o da cidadania, o do parlamento, e o da independência da cidade face às outras cidade-estado – a polis – e às colónias como a de Olissipona (atual Lisboa). A cidade era indenpendente, e os cidadãos eram todos os homens livres nela nascidos. Nela existia o templo do deus adorado localmente na parte mais alta – a acrópolis – cercado pelo parlamento, e pelas demais instituições necessárias à organização e ministérios do poder político. Todos os cidadãos tinham assento de pleno direito no parlamento podendo votar e ser votados para cargos de liderança pública. E no parlamento – a ekklesia (que mais tarde veio a ser utilizada por Jesus e pelos cristãos como igreja) – os cidadãos chamados de fora para se assentarem no parlamento participavam da delibaração das leis que governavam a vida social coletiva de todo o estado. Tinham direitos e deveres. Este conceito produziu prosperidade e desenvolvimento social inigualável no passado, permitindo tempo de lazer, pensamento especulativo e filosófico, criações artísticas, e desenvolvimento arquitetónico e de engenharia. Edifícios magníficos foram arquitetados, erigidos e decorados com estruturas e frescos belíssimos, como produtos dos avanços das artes. Os cidadãos iam ao ginásio, ao teatro, e aos locais públicos de debate político. E estes talentosos helenes estabeleceram uma fundação cada vez mais sólida para a era dourada seguinte na construção da civilização ocidental.
O que os gregos aprenderam da cultura minoica aplicaram na sociedade como pensamentos e ideais a governar a vida social coletiva. E o desenvolvimento da sociedade do tipo cidade-estado através de programas educacionais bem pensados produziram rápida atividade intelectual e literária, particularmente no ramo da filosofia. Assim, abundavam os filósofos entre os gregos antigos, e a sua contribuição para o entendimento do que deviam ser o bom comportamento e a ação nos assuntos citadinos era marcada por uma vida intelectual cheia de ideais carregados de ética e de moral.
No nosso caso, com cerca de um milénio de história, depois de termos sido colonizados por essas gentes progressistas e educadas, como provam as reminiscências desses tempos áureos em Lisboa e em Évora, ainda não aprendemos a cuidar de nós própios. Como diz o povo: “Nem nos governamos, nem nos deixamos governar”. Assim que tivemos oportunidade na nossa história fugimos para o mar à procura da felicidade em outro lado qualquer porque aqui não se encontra. Para vergonha portuguesa, os nossos níveis de cidadania são baixíssimos, falta-nos a tolerância e desrespeitamos o pensamento e a individualidade dos outros, ignoramos a importância da lei da diversidade social e religiosa, e desconhecemos a importância da educação e da promoção do debate filosófico sério. Desconfiamos do saber dos outros, mas nivelamos a fasquia educacional por baixo permitindo sermos tratados por doutor ou doutora com apenas uma licenciatura, muito aquém do verdadeiro doutoramento filosófico (PhD) com que as sociedades modernas e desenvolvidas se nivelam. Na nossa história magnífica com os descobrimentos apropriamo-nos da glória que aos judeus portugueses pertence por terem sido os grandes mentores e sérios financiadores das descobertas portuguesas, dirigindo com mestria os polos de educação por detrás desse empreendimento maior de Portugal. Claro que seria injusto e incorreto esquecer a liderança do processo que coube aos políticos e nobres portugueses dessa época áurea ou esquecer os que embarcaram nessa enorme aventura pelos mares desconhecidos e povoados de mistério e de lenda terrível.
No entanto, pouco aprendemos nessas viagens. Quem viaja pelo mundo percebe que nós portugueses somos mesquinhos relativamente aos outros, pateticamente provincianos e tradicionalistas, arrogantemente iliterados na filosofia essencial da vida, desrespeitadores da decência do pensamento verdadeiro, e voluntariamente medrosos relativamente às outras classes sociais que delimitamos com impossibilidades de ultrapassar. Bebemos das outras culturas desenvolvidas até ao ponto de conseguirmos equilibrar a nossa balança de pagamentos e paramos aí com medo de perder a compostura cultural tradicionaista que me atrevo a chamar de perversa e deprimente.
Portugal precisa de enxergar com clareza a história dos seus vizinhos europeus. Ou seja, precisa de compreender de facto o que fez com que outros países europeus e do mundo ocidental se desenvolvessem tanto, para assim reformar o seu coração social coletivo e preparar-se para tempos áureos de prosperidade e de desenvolvimento. E este desenvolvimento deve abranger todos os seus filhos e não apenas a classe alta da sociedade. Porque ninguém progride amarrado mentalmente ao passado, nem é feliz ao ver os outros pobres. Ao passado tira-se o chapéu, ao presente e ao futuro arregassam-se as mangas e trabalha-se arduamente com inteligência e de acordo com linhas mestras e bons propósitos preestabelecidos.
Talvez se questione porque hei-de mergulhar tanto nas nossas raízes históricas. Simplesmente para nos entendermos e percebermos quem realmente somos e o que podemos vir a ser se aprendermos dos avós dos nossos avós a quem mencionamos no nosso hino nacional. A história é a testemunha que atesta o passar dos tempos; ilumina a realidade, revitaliza a memória coletiva, providencia direção para a vida diária e para o futuro, e traz-nos as marés dos pensamentos, das intenções, dos propósitos, e dos feitos da antiguidade para nos ensinar como meninos o que fazer da vida atual. E se realmente queremos o progresso coletivo e o bem estar social de todos, então faremos bem em prestar atenção a Vico sobre o progresso e as suas leis. É que segundo ele, viver no passado é desperdiçar a vida. Mas o passado deve ser avaliado, e dele serem extraídos os elementos que regenerem e refresquem as leis do progresso em operação no presente e com visão de futuro. O retrossesso é sempre possível a qualquer momento mas o progresso não, e errar os alvos – pecar – é sempre o obstáculo que devemos eliminar. Mas como acertar em alvos que ainda não foram propriamente determinados na sociedade? Ralhamos, ralhamos, mas não temos pão e não fazemos o que devemos para tê-lo, e que é: preparar o chão, semeá-lo, cuidar dele, colhê-lo, moelo, amassá-lo, cozê-lo, e colocá-lo na mesa. Vamos agir mais e falar menos porque “mais valem atos do que atas” como dizia José de Oliveira Pessoa, amigo sério dos oleirenses.
(Continua no próximo artigo)
Por Fernando Silva