Crónica da Invasão da Ucrânia ( LXXXLII )
. As guerras asiáticas dos EUA
17 de fevereiro de 2023
Tal como escrito em Crusade in Europe, as memórias da segunda guerra mundial do general Eisenhower, pouco após Pearl Harbour, o general Marshall chamou-o a Washington nesse dezembro de 1941, quando se tratava de decidir sobre a prioridade a dar ao teatro de operações: Europa ou Pacífico.
Os EUA estavam em guerra em duas frentes, contra a Alemanha e o Japão, e era preciso decidir qual dos militaristas derrotar primeiro.
A grande maioria dos generais dava prioridade ao Pacífico, à Ásia.
O orgulho ferido nas ilhas do Haway assim clamava. Mac Arthur gritava nas Filipinas. Até a Califórnia se sentia ameaçada, imaginariamente. Chamado a pronunciar-se numa reunião, Eisenhower discordou de quase todos os seus seniores; com argumentação clausewitziana considerou que o teatro europeu era prioritário sobre o asiático, porque a Alemanha era o adversário predominante e primava a vitória sobre o inimigo mais poderoso e ameaçador.
O general Marshall, o mais próximo que os americanos tiveram de um génio político no século XX, deu-lhe razão, promoveu Eisenhower e nomeou-o para preparar a ida para Inglaterra. Mais tarde, estará ao comando dos desembarques no norte de África, Operação Torch, e da Normandia, e no avanço vitorioso sobre a Alemanha, de onde os US ainda não saíram oitenta anos depois.
Por muito que custasse Pearl Harbour, ficaria em segundo lugar o teatro de operações do Oceano Pacífico, assim chamado pelo português Fernão de Magalhães, o primeiro europeu a atravessá-lo no decurso da sua viagem de circunavegação. A primeira guerra asiática da América culminou no lançamento das bombas em Hiroshima e Nagasaki, um acontecimento de que o mundo ainda não recuperou.
Desde 1945, e com a Guerra Fria, os EUA fizeram do Pacífico a sua praia e travaram uma sucessão de guerras asiáticas.
Na década de 50, veio a guerra da Coreia. Após o vicioso ataque norte-coreano apoiado por chineses e russos, MacArthur desembarcou em Inchon; seguiu até ao rio Yalu e foi empurrado de novo para trás até perto do famoso paralelo 38º.
O presidente Truman, modesto do Missouri conseguiu resistir aos pedidos imperiosos do aristocrático MacArthur para lançar a bomba de novo; demitiu-o e travou a Coreia do Norte.
Depois, a guerra do Vietname na década de 60.
Em meados de 1967, o general Westmoreland tinha 463.000 militares às suas ordens e pedia mais 70.000. 1968 foi um ano de enorme violência nos EUA, com os assassinatos de Robert Kennedy e Martin Luther King, motins raciais, anarquia e reação de selvageria policial. A conquista de Saigão pelo Exército Popular do Vietnam e o Viet Cong veio em 30 de abril de 1975.
A guerra do Golfo, a seguir, teve duas partes.
A Operação Tempestade no Deserto ou a Primeira Guerra do Golfo, começou em 1991 após Saddam Hussein invadir o Kuwait em agosto de 1990. A Desert Storm foi uma brincadeira de crianças. Com 500 mil homens, e mandato limpo da ONU, o general Norman Schwarzkopf libertou em dias o Kuwait em janeiro de 1991. Ficou nalguns a impressão que faltou o avanço sobre Bagdad mas o pior estava para vir.
Quem é que há trinta anos diria que o fundamentalismo islâmico iria substituir a Guerra Fria?
Não sei. Bernard Lewis? O novo milénio parecia começar de modo pacífico e o grande assunto mundial era a descoberta do genoma humano. O presidente Bush estava placidamente a visitar uma escola infantil primária quando na manhã de 11 de setembro lhe vieram comunicar que New York estava a arder, exagerando um pouco.
O ataque das Duas Torres e do Pentágono – construído entre 1941-1943 para substituir dezassete departamentos espalhados pela capital – está na origem da Guerra do Iraque, ou segunda guerra do Golfo, ou quarta guerra asiática dos EUA.
Ao invés da primeira, foi uma operação do partido da guerra, os hawks, manchada pelo episódio de invenção da existência de armas de destruição maciça de que se veio a envergonhar o general Colin Powell; uma operação de peace-enforcing, nos argumentos retorcidos do partido da guerra.
Sadam Hussein foi eliminado sem dificuldades de maior, mas a ocupação anglo-americana do Iraque entre 2003 e 2011 foi um longo martírio para os iraquianos envolvidos. A guerra contra o fundamentalismo islâmico lançou metástases para a Síria e prossegue em 2023.
Seguiu-se a guerra do Afeganistão entre 2003 e 2021, a inaptamente designada Operação Liberdade Duradoura; se há coisa que o Afeganistão presente não tem é liberdade.
Não sei avaliar quem ganhou a guerra. Sei, como todos, que foi alcançado o alvo de eliminar Bin Laden, o dirigente da Al Qaeda que se afirmou responsável do 11 de setembro.
A quinta guerra asiática dos EUA terminou formalmente com os acordos entre os Taliban e o presidente Trump, nos acordos de Doha, em Fevereiro de 2020, onde se destaca o representante especial Zalmay Khalilzad, que durante mais de trinta anos tem sido a eminência parda sobre o que os US devem fazer nesse pobre mas orgulhoso país da Ásia Central.
Em agosto de 2021, já com o presidente Biden, o mundo assistiu ao fim de uma guerra que começou com uma explosão e terminou com um sussurro. O relógio da civilização andou para trás, a opressão das mulheres aumentou em flecha, o mercado do ópio continuou, e o governo fundamentalista islâmico é altamente subsidiado por Putin.
A retirada decidida pelo partido americano da paz e negócios deu ideias a Putin, e terá sido dos acontecimentos que o convenceu a lançar a invasão da Ucrânia, e a guerra contra a Europa, na suposição de que os EUA não se moveriam. Deve-se aos ucranianos e ao presidente Zelensky terem mudado o curso da história ao pedir “deem-me munições e não uma boleia “.
Acho importante chamar a atenção para os cinco conflitos asiáticos dos US, porque o partido da guerra já está a imaginar o sexto conflito; desta vez com a China.
O complexo militar industrial digital, congressistas e militaristas, encomendam cenários de guerra a centenas de think-tanks e indústrias de consultoria; hoje mesmo, fevereiro 17, Peter Zeihan, autor do livro com o título não particularmente otimista The End of the World Is Just the Beginning tinha um webinar com custo de $750 para fazer previsões sobre a guerra. Considero patéticas essas declarações de inevitabilidade.
As tropas de ocupação americanas permanecem no Japão, Coreia, países do Golfo no que se chama de defesa avançada (fortgeschrittene Verteidigung ou Exércitos de Observação no tempo de Clausewitz); os US dispõem em todo o globo de uma série de lilypad bases para reforço rápido.
O dispositivo americano, aliás, faz lembrar o dispositivo militar português, o primeiro império global que em 1640, tinha mais de 200 fortalezas no Oceano Atlântico, América do Sul, África, e Oceano Índico. “If you go global, you must have a global presence”.
De novo, acho importante chamar a atenção para as cinco guerras asiáticas dos EUA porque, como no tempo de Marshall, é preciso remar contra essa propaganda de que existe um conflito inevitável com a China, uma efabulação do complexo militar-industrial-digital.
O grande papel dos EUA nestes tempos mais ou menos apocalípticos é segurar o Ocidente global e ajudar a libertar a Rússia do poder anti-europeu que dela se apoderou.
Tal como no tempo de Eisenhower, é preciso afirmar que a prioridade está na Europa e não na Ásia.
Amanhã é outro dia