Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância – LXXXL – ” Vuhledar; uma vitória ucraniana

Nota da Direcção: O desdobramento das Crónicas do Professor Mendo Henriques estão agora incluídas num novo bloco, devidamente numeradas para facilitar a leitura.

Crónica da invasão da Ucrânia, 4 de fevereiro de 2023 (LXXXL)

. Vuhledar ; uma vitória ucraniana

A resistência ucraniana continua ao longo da linha de contato e a 2 de fevereiro, o especialista Tom Cooper, historiador militar e analista da guerra aérea, tentou reconstruir a batalha em Vuhledar, mais um símbolo dos desastres de Putin.

Um dos livros de Tom Cooper

Vuhledar é uma vila com cerca de 1km2 de área, muitos edifícios altos e, tal como muitas outras da Ucrânia, situada em uma área completamente plana, cercada por terrenos de alto valor agrícola.

Nos arredores, tem uma ‘área de dachas’ (a sudeste) e a mina de carvão Pivdennodonbaska que deu origem ao povoamento. O exército ucraniano converteu-a em uma ‘fortificação’ pois situa-se a poucos quilómetros a norte da linha ferroviária que liga o Donetsk à Crimeia; alguns trechos da ferrovia estão a menos de 1km das posições ucranianas.

Desde setembro de 2022 que o 58º CAA russo tenta conquistar Vuhledar com os kontraktniki, através da aldeia de Pavlivka, situada a sudoeste. De tal modo Pavlivka foi arrasada que os ucranianos desistiram de a tentar controlar e retiraram-se da aldeia, em dezembro.

Durante dezembro e a primeira quinzena de janeiro, o 58º CAA recebeu grandes reforços para uma nova ofensiva: 40ª e 155ª Brigadas de Infantaria Naval; 136ª Brigada de Fuzileiros Motorizados; 123º Regimento de Infantaria (DNR); Batalhões Vostok (oriente) e Kaskad (catarata) reforçados a nível regimental; um regimento de Spetsnaz e unidades do GRU.

Desde a mobilização de setembro que o exército russo desistiu de operar com os agrupamentos táticos (BTGs) usados ao longo de 2022. Assim, o 58º CAA desdobrou o equivalente a cerca de quatro brigadas ofensivas, mais duas brigadas de artilharia: cerca de 20 mil soldados, 90 tanques, talvez 200 IFVs e cerca de 100 peças de artilharia. Em resumo: foi um ataque em grande e Denis Pushilin, o governador fantoche do Donetsk, exprimiu claramente o objetivo: “a libertação desta cidade resolverá muitos problemas”.

A 24 de janeiro de 2022, os russos procuraram reduzir a pó as posições ucranianas avançadas, entre Pavlivka e Mykilske, e no lado leste de Vuhledar com foguetes TOS-1 MRLS ‘. Um ‘inferno’ para os defensores da área, mas que não parece ter sido eficaz: não há indicação de muitas vítimas na 72ª Brigada Mecanizada Ucraniana, o núcleo da defesa. Uns sustentam que os ataques TOS-1 foram seguidos pelas ‘obrigatórias’ barragens de artilharia; outros dizem que não houve barragens de artilharia, porque os russos tentaram um efeito de surpresa.

O ataque dos russos veio, então, através de Pavlivka até ao sul de Vuhledar. Algumas fontes falam que também tentaram cercar a vila pelo lado oeste. É possível, mas avançar em 1.000 metros de espaço aberto com o flanco a descoberto, das duas uma: ou temeridade ou estupidez dos oficiais; ambas as caraterísticas coexistem nos exércitos do Kremlin.

Cidade de Vuhledar

O certo é que simultaneamente com o ataque no sudoeste, a Infantaria Naval Russa avançou de Mykilske para a área das datchas; nos primeiros dois dias, as redes sociais russas exultavam com os ‘ucranianos presos atrás das linhas russas’.

Até 25 de janeiro, houve forte atividade da aviação de Putin: Su-25s e helicópteros de ataque fizeram dezenas de surtidas, disparando foguetes não guiados. Com a cobertura aérea e o fogo de artilharia, a Infantaria Naval avançou pela ‘área das dachas’ em direção ao norte, aparentemente com o objetivo de contornar Vuhledar e cercá-la.

Após outra rajada de foguetes TOS-1 na noite de 27 de janeiro, os russos chegaram ao posto de gasolina no extremo norte da área das dachas, a 400 metros de Vuhledar. Depois, fosse plano ou fosse erro, viraram para noroeste e atacaram pelo lado sudeste.

Desastre. Os ucranianos no topo de edifícios altos em Vuhledar, comunicaram a posição dos russos que foram esmagados pelo fogo de artilharia ucraniana. Após a infantaria naval ser detida, foi a vez dos T-80 MBTs e BMP-2 IFVs serem eliminados. A artilharia também atingiu a retaguarda. A 28 de janeiro, a 1ª Brigada de Tanques e a 72ª Brigada Mecanizada ucranianas- contra-atacaram na área das dachas, eliminando o que lá restava das tropas russas.

Os russos trouxeram reforços e reagruparam-se, voltando a atacar a parte sul da área das dachas, em 30 de janeiro. Além disso, começaram a atacar as guarnições das aldeias de Zolotay Nyva e Prechystivka, a oeste de Vuhledar. Os ucranianos reivindicaram o derrube de 5–6 helicópteros Ka-52 na batalha entre 24 e 28 de janeiro.

Em 31 de janeiro, os russos voltaram a atacar, com grupos menores, acabando por perder mais outro grupo de T-80 e BMP-2. O que restava das 40ª e 155ª Brigadas da Infantaria Naval refugiou-se de volta da área de Mykilske. A reação rápida do 72ª Brigada – uma unidade notável que já entrou para a história militar mundial – e o fogo da 55ª Brigada de Artilharia e o apoio da 1ª Brigada de Tanques destroçaram o ataque russo.

Foi um desastre total cujos números ainda se desconhecem: segundo os rumores dos canais net (RUMINT) a 155ª BIN perdeu +200 mortos nos primeiros três dias; há rumores de que o conjunto das unidades russas empenhadas sofreu ‘entre 5 a 15.000 baixas’ (mortos, feridos e desaparecidos). Fontes russas confirmam que duas grandes unidades se recusaram a atacar em dado ponto. Certo é que Vuhledar permanece firmemente ucraniana.

O Ministério da Defesa inglês (MOD) alertou que os russos estão a preparar novo “ataque concentrado” na área de Vuhledar. Alguns dos reforços russos “anunciados” pelos britânicos até 1.500 soldados – estavam numa escola da aldeia de Kyryoovka, ao sul da cidade. A 28 de janeiro, a escola foi atingida por M142s ou M270s ucranianos.

O número de vítimas pode chegar a ‘centenas’. Parece que o desastre de Makiivka não foi uma lição para a Rússia.

Amanhã é outro dia!

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Crónicas da Invasão da Ucrânia (LXXXIX

26 de janeiro 2023

. “Tanke, Schön

A 25 de janeiro o Chanceler Olof Scholz anunciou que a Alemanha entregará à Ucrânia uma companhia de 14 carros de combate (tanques) Leopard-2 do modelo mais atual e, com esta decisão, libertou os Leopardos a enviar pela Polónia, Espanha, Finlândia, Grécia, e talvez até mesmo Portugal.

A Alemanha não vai sozinha, como disse Scholz. Simultaneamente o presidente Biden anunciou que os EUA entregarão carros de combate Abrams. Coincidência ou não, tudo sucedeu no aniversário do presidente Zelensky que soube da notícia a meio de uma entrevista de Kay Burley para a Sky news. Obrigado pelos tanques. Danke, Schön “Tanke, Schön”.

Os especialistas e o público estão a debater sobre os prazos em que chegarão os tanques; as quantidades a reunir (100, 200, 300?); o treino aos tripulantes; os apoios logísticos. Proliferam comparações entre as capacidades, sendo certo que são muito superiores aos modelos T-72 e T-80 dos russos, devido às peças estabilizadas (cf. vídeo de um Leopard a entregar cerveja). Os “nossos” tanques têm maior mobilidade, poder de fogo mais letal e blindagem mais forte do que de Putin. Tanto os Leopards, como os Abrams, os Challenger britânicos e os Leclerc franceses. São mais pesados, mas têm sistemas de controle e navegação que lhes permitem operar em manobras combinadas com artilharia e infantaria, inclusive à noite, o que os russos não conseguem igualar. E assim, as forças armadas ucranianas poderão desencadear a contraofensiva que preparam desde Outubro.

O Kremlin encaixou a mensagem de que a comunidade internacional está cada vez mais determinada a ajudar a Ucrânia a resistir à invasão e a vencer a guerra; e o Kremlin nada pôde fazer dado o modo como Scholz apresentou a decisão, após quase dez meses de apelos de Kyiv e muitos lances. Quem joga xadrez sabe que, quanto maior o número de lances e cenários antecipados, maiores são as possibilidades de vencer; no xadrez como na guerra.

O que vimos suceder foi esse lance há muito antecipado, embora não exatamente na forma em que ocorreu.

Desde março de 2002 que se fala dos Leopards. Em agosto já Espanha oferecia os seus.

No Natal, Zelensky fez o pedido em Washington. A conferência de Ramstein foi  a 20 de janeiro. Em 22 de janeiro, o diretor da CIA, Robert Burns visitou Kyiv. Por tudo isto pouco interessa se o chanceler cedeu à pressão internacional dos pares, como diz a especialista Jessica Berlin; ou se foi uma manobra genial para envolver a todos, como querem alguns spindoctors. Os Leopardos foram soltos, porque a Alemanha mudou.

Ao falarmos de tanques Leopard com cruzes pintadas de branco, que vão atravessar a Polónia para chegar aos campos de batalha do Donetsk, os alemães e todo o mundo imediatamente se lembram dos tanques Panther e Tiger com que o criminoso Hitler combateu a União Soviética. Os próprios ucranianos costumam pintar as cruzes brancas nos veículos militares, porque mais simples que o brasão do estado.

Scholz revelou coragem quando a 27 de fevereiro de 2022, anunciou uma mudança radical na política federal de defesa duplicando para €200 biliões de euros as despesas com armamento, sem sequer avisar o seu gabinete.

Esta inescrutável decisão do chanceler Scholz reflete as indecisões de muitos alemães. A sociedade alemã ganhou força em quase oitenta anos de pós-guerra e tornou-se uma potência económica global, protegida pelo guarda-chuva nuclear da NATO. O conceito de fim da história teve uma popularização norte-americana (  Francis Fukuyama ) mas era uma realidade vivida pelos alemães; consideravam a história encerrada, a paz perpétua atingida; consideravam os EUA um aliado ( à direita) ou uma inconveniência ( à esquerda) fácil de suportar.

O 24 de fevereiro mudou o mundo, mudou a Europa e está a mudar a Alemanha. Até então, as atrocidades russas na Síria, as guerras na Geórgia e Donbass, e os crimes políticos do kremlin passavam ao lado. Os alemães percorreram um longo caminho ao longo de quase um ano. A invasão em grande escala da Ucrânia impôs mudanças, incluindo o credo político do pós-guerra segundo o qual nenhum conflito poderia ser resolvido militarmente. É o fim da paz pelo comércio e “Wandel durch Handel”. O envio de armas para a Ucrânia passou de uma grande rejeição para uns 66% a favor. E a Alemanha forneceu muito mais apoio do que qualquer outro país europeu.

Enviar tanques para a Ucrânia não vai definir o destino desta guerra: mas deixa muito claro ao Kremlin que ou desiste ou é derrotado. Por culpa de Putin, desapareceu a visão quase romântica da Rússia e da paz pelo comércio e os gonzos da história estão a girar até que, nos próximos meses, as elites e a população russa descartem quem os colocou num beco sem saída. O simbolismo dos tanques de 25 de janeiro é que, se forem bem utilizados, poderão colocar Kyiv em posição de ditar o cessar-fogo e os termos de paz aos próximos governantes de Moscovo.

“Tanke schön”

Amanhã é outro dia!

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Crónica da Invasão da Ucrânia ( LXXXVIII)

19 de janeiro de 2023

. O antissemitismo vem ao de cima

A Europa denunciou hoje mais uma alegação do ministro Sergey Lavrov de que a política ocidental em relação à Rússia se assemelhava ao plano de “solução final” dos nazis. Os comentários de Lavrov são desrespeitosos e ofendem a memória dos seis milhões de assassinados no Holocausto, judeus e outras vítimas e somam-se a comentários anteriores do ministro que, meses atrás, teve de pedir desculpas a Israel quando, a propósito do presidente Zelensky, afirmou escandalosamente que os antissemitas mais notórios foram judeus.

Estará o Kremlin à beira de mais uma vaga de antissemitismo, como as que tragicamente assolam há séculos o país que inventou os infames Protocolos dos Sábios de Sião?

A situação da comunidade judaica é complexa; tem de se defender de um Kremlin que, até ao 24 de fevereiro, tinha boas relações genéricas com as principais organizações judaicas, nomeadamente através do rabino chefe Alexander Boroda, amigo pessoal de Putin. Mas desde o início da invasão, o Kremlin aumentou desmesuradamente a repressão geral à sociedade civil e aos direitos humanos e ameaçou extinguir a Agência Judaica para Israel em agosto.

Apesar das repetidas vagas de antissemitismo ao longo dos séculos, e nomeadamente no século XX, os judeus russos têm profundas raízes históricas no país. Atualmente, estão repartidos entre duas filiais do Congresso Judaico Mundial: o Congresso Judaico Russo e a maioritária Federação de Organizações e Comunidades Judaicas da Rússia (Va’ad) que pertence a Chabad-Lubavitch – e com que se identifica Roman Abramovich.

A comunidade de judeus na Rússia conta com perto de 200.000 pessoas, embora cerca de três vezes mais sejam elegíveis para a cidadania israelita. Desde a invasão da Ucrânia, uns 20.000 imigraram para Israel, a fugir de um regime cada vez mais opressivo. As relações com a comunidade judaica deterioraram-se rapidamente desde que começou a invasão, criando uma sensação de medo e isolamento.

Em setembro de 2022, a Federação das Comunidades Judaicas da Rússia organizou uma conferência em Moscovo para debater a guerra e a paz e destacaram-se três posições. Berel Lazar, o rabino-chefe russo da Chabad, teceu críticas moderadas à guerra, enquanto o presidente da federação, o rabino Alexander Boroda, vassalo de Putin, apoiou a guerra. O embaixador de Israel na Rússia, Alexander Ben Zvi, leu uma carta do presidente Isaac Herzog, manifestando o apoio à comunidades ucraniana e russa. Os rabinos-chefe Ashkenazi e Sefardita de Israel, David Lau e Yitzhak Yosef, respetivamente, apresentaram os seus votos de apoio.

A resolução final pede “a paz e o fim do derramamento de sangue”. “Pedimos aos líderes mundiais que façam tudo ao seu alcance para trazer a paz entre as nações. A paz é um valor Divino e é a base para a existência da humanidade no mundo”. A resolução, no entanto, não mencionou a Ucrânia explicitamente ou atribuiu a culpa pela guerra.

Na conferência, disseram os organizadores, os rabinos comprometem-se a não abandonar as comunidades durante estes tempos difíceis. Esta é uma crítica velada ao ex-rabino-chefe de Moscovo Pinchas Goldschmidt, que abandonou a Rússia por oposição à guerra. No exílio, Goldschmidt tem criticado a guerra e o regime de Putin, mas sem julgar aqueles que permaneceram na Rússia ou não se manifestaram contra a guerra.

A declaração refere-se ao conflito como uma “invasão”, termo a meio caminho entre a “guerra” e a expressão oficial “operação militar especial”, mostrando como é forte a rejeição da guerra entre a comunidade, a posição em que tem operado silenciosamente Roman Abramovich.

Os recentes movimentos do Kremlin contra a Agência Judaica evocaram as repressões dos Czares e da União Soviética contra a vida comunitária judaica. A 20 de dezembro um tribunal de Moscovo concordou em adiar o julgamento da Agência Nacional Judaica por mais dois meses.

O ex-primeiro-ministro de Israel alertou que o fechamento da Agência Judaica por Moscovo seria um evento com consequências graves para os laços russo-israelitas, mas Netanyahu diminuiu o tom agreste em favor de uma diplomacia silenciosa.

Uma boa parte do futuro da Federação Russa passa pela atitude da comunidade judaica russa que mantém laços globais com Nova Iorque e Telavive e que está disposta a usar os corredores da diplomacia paralela para fazer cair a tirania do Kremlin que se abateu, também, sobre ela. Como em 1905, após os Protocolos dos Sábios de Sião. E em 1953 com os “médicos de Estaline”. E agora em 2023.

Amanhã é outro dia.

  • Mendo Henriques

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Crónica da Invasão da Ucrânia LXXXVII

11 de janeiro de 2023

. Que fazer?

Nicolau Chernyshevsky (1828-1889) nasceu em Saratov – onde agora se localiza a base aérea Engels – e após a conclusão dos estudos, casa-se e é professor de liceu, até ser nomeado professor da escola de cadetes de São Petersburgo.

Aí colabora desde 1856 até a proibição em 1862 em Sovremennik (Contemporânea) revista democrática radical. A censura da época corta as suas dissertações em que elogia a beleza do efémero: “A vida só é vazia e incolor para as pessoas sem cor… O que amamos acima de todas as coisas é a vida. Mas o amor é muito perigoso para burocratas e burgueses da Rússia czarista de 1855; da Rússia estalinista de 1930; da Rússia de Putin de 2023.

Nicolau Chernyshesky

 

Em Sovremennik em 1860 indica-se como Stuart Mill escrevia sobre a liberdade em Inglaterra e Lincoln combatia a escravatura nos EUA. A intelligentsia russa sabe pensar, mas não se atreve a atuar. Que fazer? Chernyshevsky compara-a com os EUA sobre os quais exprime um juízo favorável pois conseguiu converter milhões de irlandeses alcoólicos e alemães indesejáveis em pessoas respeitáveis e solventes.

Tem muitas dúvidas Sobre a diversidade dos povos conforme o caráter nacional, título de sua obra de 1860. Há muitos estereótipos, cultiva-se um nacionalismo extremo e ardente: como diz em O princípio antropológico da filosofia as ideias mais correntes e superficiais sobre o caráter dos povos são pré-concebidas e insuficientes e desaparecem quando os povos se chocam com a história universal.

Os sanguinários acabam sempre vencidos e os russos têm de combater na frente interna e na Europeia. Mas então Que fazer?

Que Fazer? é o título da novela que escreve na prisão entre 4 de dezembro 1862 e 4 de abril de 1863. Desde que houve imprensa na Rússia, nenhuma obra teve um êxito comparável.

Como a censura proíbe tratar das questões atuais é preciso falar com imagens alegóricas; mas o apelo é claro, como dizia Emílio Zola: Levantai-vos do sótão, meus amigos; não é assim tão difícil e saí para o mundo livre e claro em que a vida é bela e o caminho é atraente.

Os russos sabem de cor como começa a novela. Na madrugada do dia 2 de julho de 1856 …  estamos perante a situação de Vera Pavlova, uma jovem livre e independente, a protagonista do grande tema de como os jovens irão despertar da letargia, apatia, resignação e fatalismo.

Vera, ou Veroschka, desposa secretamente e contra a vontade da mãe o estudante de medicina Lopuchow e entra em contacto com os que não aceitam a opinião dos mais velhos que o ser humano há de sempre um louco, miserável, parasita, bebedor, fornicador, folgazão e vicioso. Que fazer?

Estes jovens discutem a química, agricultura, a terra e os camponeses a cidade e a educação, aprenderam francês, inglês e alemão, têm na parede a fotografia de Robert Owen, o socialista utópico que fundou as cooperativas e querem que chegue a idade de ouro que exige mudança radical. Quem trará a nova era? Que fazer?

O homem extraordinário Rachmetov será o modelo de milhares de jovens revolucionários e populistas russos. Leu tudo, até mesmo o comentário de Newton às profecias de Daniel e ao Apocalipse de São João. Vem de uma família da nobreza tártara, que não são mongóis como se pensa no Ocidente: é um “rigorista” – ainda não se usava “revolucionário” – um trabalhador de hábitos espartanos que devorou o conhecimento ocidental.

Chernychesky descreve os que são como ele: “São invisíveis para o leitor e para a maioria das pessoas; apenas são percetíveis para olhos honrados e valorosos” “São em escasso número, mas sem eles os outros asfixiariam e a vida se corromper-se-ia.

O primeiro marido de Vera Pawlovna suicida-se.

Rachmetov não tem resposta direta e considera-se “tenebroso”. Que vai fazer Vera? Levantai-vos do vosso sótão, meus amigos.  Até agora, a mulher foi forçada a situações de inferioridade e fecharam-se-lhe os caminhos da vida pública e quase todos os domínios da atividade de cidadão. Ajudada pelo segundo esposo, Kirsanov, Vera vai ser médica. Para este novo matrimónio, o autor tem uma fórmula “Considera sempre a tua mulher como se fosse a tua noiva a quem assiste o direito de dizer-te não estou satisfeita contigo ” E acrescenta “Quem não sabe que o amor desperta todas as energias humanas não conhece o verdadeiro amor” E ainda “Só ama aquele que ajuda a amada a alcançar a sua independência“.

Os sonhos de Vera em Que Fazer? revelam um futuro luminoso, e é evocado com versos de canções primaveris de Goethe e Schiller e o hino da alegria da 9ª sinfonia de Beethoven. Em sonhos aparece Sofia Solovyev a mulher que encarna na Rússia o espírito divino, a sabedoria e a paz, a terra mãe as futuras paisagens paradisíacas de uma natureza reconciliada, uma nova Rússia que das estepes arrancou casas de alumínio em gigantescos complexos urbanos.

Os habitantes do futuro passarão as tardes nos teatros, bibliotecas,  museus, auditórios; ainda não havia internet. Outros vão preferir o remanso do lar; outros brincam com os filhos e outros cultivam o amor. Mas não é para já. Final feliz? Após a prisão em São Pedro e São Paulo ainda restam a Chernyshevsky 20 anos de exílio na Sibéria.

Rachmetov

Que fazer? Em primeiro lugar a juventude que arrisque uma vida nova como reformista, revolucionária, populista.

A partir de 1862, a intelligentsia progressista divide-se entre revolucionários e moderados. Ambos os grupos se movem e ambos irão fracassar nas revoluções de 1905 e de 1917. Os verdadeiros revolucionários são presos, os terroristas executados e os populistas permanecem incompreendido pelos camponeses a quem pertenciam educar.

Lenine escreve o seu Que fazer?  e o triunfo dos bolcheviques é o triunfo de uma doutrina única, uma práxis única, o partido único, o homem único, aceite depois das catástrofes da divisão entre os diversos setores populistas que procuraram a experiência de uma vida nova.

Chernyshevsky regressou da Sibéria em 1886 e morreu a 17 de outubro de 1889 com 61 anos de idade.

Amanhã é outro dia!

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Crónica da Invasão da Ucrânia LXXXVI

7 de janeiro 2023

. Hitler e Putin: um mesmo destino

Desde os primeiros disparos da invasão de 2022 surgiram paralelos populares entre Hitler e Putin. O nome de ambos foi contraído como “Putler”. Viu-se a fusão digital dos dois rostos. As semelhanças entre o símbolo “Z” e a suástica ficaram notórias.

A vox populi acertou. Existem impressionantes paralelos no modo como ambos os dirigentes chegaram ao poder, como o consolidaram e – só falta confirmar – como o perderam.

A política de Hitler nasceu do ressentimento perante a derrota alemã na 1ª Guerra Mundial. A fim de exonerar os militares dessa catástrofe nasceu a lenda da punhalada nas costas (Dolchstoßlegende): o império alemão teria sido derrotado pela sabotagem do esforço de guerra na retaguarda, por socialistas, bolcheviques e judeus alemães. A Punhalada nas Costas foi usada sistemática e doentiamente na ascensão do partido nazi, engrossado pelos veteranos da guerra.

Entra Putin, para quem o desmoronamento da URSS foi a maior tragédia política do séc. XX. Esta perversão da tragédia do regime soviético veio à luz na Conferência de Segurança de Munique, 2007. Foi depois completada aos poucos com o mito do culpado: EUA, NATO, Ocidente Coletivo. Vladislav Surkov teve papel importante em apontar o dedo para a Ucrânia como a ponta de lança do Ocidente desde o EuroMaidan e em colocar o tema da “civilização russa”.

Vladislav Surkov

Hitler referia-se à sua ascensão ao poder ora como “conquista” ora “eleição” legítima. Nenhum dos termos é completamente correto. Na verdade, foi o marechal Hindenburg quem o nomeou chanceler a 30 de janeiro de 1933, apesar da posição minoritária dos Nazis no Parlamento. A sugestão veio dos coveiros da democracia, o grupo conservador de von Papen e Jenner que julgavam poder manipular Hitler. A chegada de Putin ao poder apresenta o mesmo misto de legalidade e manobras de bastidores. Era um quase desconhecido fora de São Petersburgo, quando foi escolhido pela família Yeltsin e por Dobchak para substituir o alcoólico presidente e passar de primeiro-ministro a Presidente em eleições democráticas.

Hitler, com a palavra de ordem “revolução judaica de 1918”, matava vários coelhos de uma cajadada e explorava os fantasmas do anti-semitismo. Atacava a esquerda radical e comunista; lutava abertamente contra a república de Weimar; e unia as direitas alemãs no ódio à república de Weimar.  O “Ocidente global que quer assassinar a Rússia” é a fórmula de conforto de Putin. Consegue unir os descontentes com a democracia russa entre 1991 e 2000, os nacionalistas, os ex-soviéticos, os fundamentalistas de direita.

 

Em que acreditam Hitler e Putin?

A resposta curta é: apenas neles mesmos. Hitler não acreditava no novo paganismo, no mito do século 20, do seu camarada Rosenberg nem nos disparates arianos. O batizado e crismado católico Adolf Hitler não acreditava num Deus pessoal, nem em Jesus Cristo, nem nos Evangelhos. Acreditava nele próprio e sentia-se confirmado pelo sucesso, a vitória. Sieg heil!  e Heil Hitler gritavam as massas que se lhe entregavam. E dizia sigo o caminho que a providência me indica com a certeza de um sonâmbulo.

Ao conquistar a população alemã com a alegria selvagem dos desfiles e o terror das facas longas, ficou convicto de que poderia vencer a guerra com os mesmos meios. As suas conversas à roda da mesa (Tischreden) voltam sempre ao tema que a guerra é uma réplica da luta política, em que a luta entre partidos dá lugar à luta entre Nações.

Ao lançar a invasão da Polónia estava seguro de que o pacto germano-soviético, e a pusilanimidade de França e Inglaterra lhe permitiriam vencer rapidamente uma guerra numa só frente. Foi o seu grande erro político e que lhe custou o poder, o regime, e a vida mas só depois de mais uma das trágicas guerras globais desencadeadas na Europa.

Também Putin acredita sobretudo na vitória (pobieda) a palavra repetida até à exaustão. A invasão reforça o paralelo Hitler-Putin. Hitler teve o Anchluss, a anexação da Áustria e dos Sudetas. Putin teve a Crimeia e o Donbass. O sistema de provocações e as doutrinas para justificar a violência contra as populações civis é idêntico; os povos do leste para os nazis, e os ucranianos para os moscovitas, são considerados inferiores.

O vergonhoso pacto germano-soviético de agosto de 1939 tem equivalente no acordo Sino-Russo aquando das Olimpíadas de Inverno de Pequim de 2022. Ambos deram as costas quentes aos ditadores para iniciar a guerra.

A invasão da Ucrânia em 2002 foi o maior erro e o maior crime de Putin. Falando só da Rússia – e não da grande vítima que é o povo ucraniano – neste final de 2022 acumula-se a mais de um milhão de refugiados russos, uma economia que tenta desesperadamente substituir as importações que caíram em 50%; e uma queda forte nas exportações devido às sanções e aos tetos dos preços do petróleo e do gás.

Que pode Putin apresentar ao seu povo? Restaurou uma parcela da União Soviética, mas destruiu o seu exército profissional e a sua economia.

Na madrugada de 29 de abril de 1945, Adolf Hitler redigiu o testamento no Bunker da chancelaria de Berlim.

Era o Hitler de sempre, sem uma palavra de arrependimento nem uma sugestão de remorsos, escreveu Alan Bullock. A culpa foi sempre dos outros sobretudo aos judeus contra os quais o velho ódio nunca foi apaziguado. Eu não quis esta guerra instigada pelos estadistas internacionais de ascendência judaica ou manipulados por interesses judaicos.

Putin funciona com a mesma projeção da violência no adversário, a que os especialistas chamam o desejo mimético. O outro é que tem a culpa, seja Ucrânia, os nazis, a NATO, a Europa, os EUA e, ultimamente, os judeus, também.

Sabemos o tempo que Putin passa no bunker. Conhecemos o seu testamento político no discurso de 30 de Setembro (ver Crónica 1 de Outubro de 2022 (LXVIII) sobre a anexação de territórios da “nova Rússia”.

Só falta sabermos o passo seguinte na marcha de Putin para a catástrofe.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da invasão da Ucrânia LXXXV

3 de janeiro de 2023

. 2023 – Que a guerra seja presa!

O ano de 2022 mudou tudo para Ucrânia e Rússia, duas nações irmanadas pela religião, história língua e tradições, mas com as divergências e ódios de família que são sempre os mais difíceis de resolver.

Uma vez mais o mundo está em guerra, uma guerra como sempre desencadeada no interesse de um pequeno círculo. São as minorias que desencadeiam a história, embora sejam as maiorias que a vivem e resolvem, as maiorias compostas pela pessoa comum que é cada um de nós.

Desta vez a minoria violenta veio do Kremlin e dos bunkers por onde agora anda. Uma guerra que traz morte, sofrimento e destruição. Uma guerra que tira mulheres, crianças, maridos e pais, e mortifica as frágeis esperanças de futuro de uma geração; uma guerra, cujo sangue e vergonha não serão lavados durante muitos anos, ou décadas.

Os ucranianos não têm como fugir da guerra que lhes foi imposta: ou são soldados ou refugiados e ser refugiado é apenas outra forma de viver a guerra. Para quem está à distância é possível, claro, fugir das notícias, e das reportagens plangentes.

Quem segue estas crónicas está aqui para outra coisa. Está aqui para acompanhar uma visão de como corre e como acabará a guerra; até chegar à paz, não a paz dos cemitérios nem a paz dos anjinhos, mas o conflito açaimado, a guerra posta na prisão e guardada a mil chaves pela justiça e pela liberdade. Até ao dia.

Ao longo de 2022, quase um milhão de ucranianos lutou por nós todos, que amamos a liberdade como dom divino dado à humanidade, enquanto um outro milhão de russos nem sabe bem porque lutou. Uns morreram pela pátria, que continua a ser a maior das divindades manifestas. Outros morreram pela servidão voluntária a obedecer ao chefe, alguns com uma espécie de malvadez mística que usa mísseis, drones e marteladas.

Todos responderam ao apelo da história e seguiram o caminho da luta. Uns fazem-no com dignidade e podem morrer com os arreios postos, como escreveu Shakespeare. Outros roubam frigoríficos e retretes e violam mulheres ucranianas a pedido das esposas russas. Destes, a história registará a figura do falso messias Prygozhin a resgatar gente das prisões para as enviar para a morte.

Prygozhin

Caíram muitas máscaras pelo caminho. Um ex-palhaço chamado Zelensky tornou-se presidente e líder heroico de uma nação: um outro que era presidente tornou-se palhaço e arrasta a nação para o abismo. Só resta saber se Putin vai terminar à maneira de Milošević, à maneira de Hitler ou à maneira de Ceauşescu.

O desempenho de Putin em mais de vinte anos à frente da Rússia parece-se com a fita de Moebius. O país tentou construir uma sociedade democrática, fazer eleições, criar um parlamento e uma república e arranjar um presidente decente; mas este cedeu às tentações agora à vista de todos e desfez a escassa democracia, as eleições, o parlamento e voltou ao início, a querer reconstruir o último império europeu.

A perestroika, os sonhos de europeização da década de 1990, desmoronaram-se. As eleições são uma farsa, o parlamento é literalmente uma grande porcaria, a impressora maluca, como lhe chamam os moscovitas, tantas as leis doidas e inúteis que produz.  Mais uma vez se confirmou que a Rússia é um país maravilhoso para canalhas e para heróis, mas os canalhas têm mais oportunidades e o império não foi projetado para viver normalmente.

Quem não é guerreiro nem canalha na Rússia, e apenas quer viver a vida com dignidade, e pôr o pão na mesa, tem pouca escolha. Não queres ser canalha? Então precisas ser herói e guerreiro, e tragicamente sacrificar tudo, até mesmo a família, a bem do combate. É o que sucede aos cerca de 13 mil prisioneiros políticos russos entre os quais avultam Navalny, Kara-Murza, Yashin, Lobanov, liberais, comunistas e normais. Não queres ser herói e apodrecer na prisão, nem ser espancado até a morte no saguão do prédio? 

Então, alinha com os canalhas. Na era Gutenberg levava-se muito tempo até descobrir estas coisas. Os media digitais da era Zuckerberg estão aí a revelar os que são canalhas todos os dias. São muitos.

Aos comuns que não querem fazer parte da superestrutura criminosa da Rússia e não desejam marchar para a revolução e tudo o que querem é uma vida humana digna, resta-lhes, como no passado, poucas opções: emigração interna silenciosa como fazem centenas de artistas anti Putin e padres ortodoxos anti Cirilo. Os mais fracos usam a migração para o vodka. E os que têm alguma fortuna, têm a emigração real.

O que o bravo povo ucraniano veio mostrar em 2002 é que não quer fazer parte do império moscovita. Escolheu a Europa e o Natal a 25 de dezembro, mas sem perder a alma eslava de cujas profundezas nós europeus, temos muito, mesmo muito, a aprender.

Faço votos de que 2023 seja o ano da paz dos justos e a guerra volte para a prisão.

Amanhã é outro dia!

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância, LXXXIV

13 de dezembro

. A batalha de Bakhmut: Verdun no Donbass

Verdun é uma pequena cidade francesa de fronteira, defendida por muitas fortificações na primeira guerra mundial, e um símbolo da independência nacional. Não tinha particular importância estratégica, mas foi escolhida em 1916 pelo chefe do Estado-Maior alemão, General von Falkenhayn, para uma ofensiva que sangrasse o exército francês. A batalha prolongou-se por 9 meses e terminou com a derrota do invasor alemão, após cada lado ter perdido mais de 150. 000 mortos. O valor dos franceses é agora emulado pelos ucranianos.

Salvo as devidas proporções, Bakhmut é a Verdun do Donbass.

Cidade de 75 mil habitantes sem importância estratégica, os invasores estão a bombardeá-la desde maio e a atacar sem cessar desde 1 de agosto de 2022. De um lado, the motley armies russo, incluem forças do 1º corpo de Donetsk e do 2º corpo do Lughansk, mercenários do Wagner Group, reforçados por prisioneiros, Khadyrovites, mobiks e algumas unidades vindas de Kherson.

Wagner grupo

No seu conjunto uns 60 mil russos passaram por esta frente. O núcleo das forças ucranianas é a 93ª Brigada Mecanizada e a 58ª Brigada Motorizada, reforçadas por forças especiais e unidades de defesa territorial, além dos batalhão Chechenos Dudayev e Sheikh Mansur e da Legião Russa livre e em rotação com tropas das brigadas 53ª, 24ª 57ª  e 10ª, cerca de  uns 30 mil homens.

O bombardeamento de Bakhmut começou em maio de 2022, e o ataque principal à cidade começou em 1º de agosto na área de Popasna. Desde então é a única linha de frente onde os invasores conseguiram permanecer na ofensiva. Um dos principais objetivos da invasão, senão mesmo o principal, é capturar a região de Donbass. As cidades de Sievierodonetsk e Lysychansk e todo o oblast de Luhansk, foram arrasadas e conquistadas no início de julho, após imensas perdas de homens e equipamento que obrigaram Putin a mudar os seus medíocres comandantes em chefe. As forças separatistas passaram então ao ataque a Sloviansk, Bakhmut e Soledar, com superioridade de até cinco para um sobre as forças ucranianas, o que em breve mudou.

Bakhmut já era bombardeada desde 17 de maio. Após a queda de Popasna em 22 de maio, as forças ucranianas começaram a construir entrincheiramentos enquanto as forças russas avançavam lentamente na estrada Bakhmut-Lysychansk. O bombardeamento da cidade continuou durante os meses de junho e julho. Mas enquanto a artilharia ucraniana tem  sistemas/munições especiais como Excalibur ou Ukr/German, a artilharia russa só tem bombas cegas que servem para arrasar posições mas não aniquilar com precisão e desalojar tropas.

Em 1º de agosto, as forças russas iniciaram ataques maciços aos assentamentos ao sul e sudeste da cidade, seguidos de ataques aéreos. Em 4 de agosto, os mercenários do Grupo Wagner conseguiram alcançar a periferia leste, tendo perdido o comandante Leksey Nagin. Em 10 de agosto, começou a evacuação geral da cidade.

Perante o insucesso no avanço frontal, a mescla de tropas russas começou a explorar os flancos. Em 4 de outubro, as forças russas avançaram na periferia sul e sudeste de Bakhmut, sendo muitas pequenas aldeias tomadas e Opytne, Andriivka, Klischiivka.

No flanco norte de Bakhmut não tiveram sucesso até agora. Se percorrermos canais Telegram de combatentes russos que dão notícias reais – Dva Majora, Gray Zone ( grupo Wagner).

Igor Girkin, e Alexander Kodakovsky, observamos a mescla de obstinação, coragem e estupidez – mais tipicamente dos russos donestksianos, que se queixam da incompetência dos comandos e dos esforços desperdiçados.

A partir de novembro, o rosto da batalha mudou. Em 10 de novembro, os ucranianos afirmaram que o grupo Wagner sofreu 140 baixas em 24 horas, incluindo 40 mortos, em combates perto de Bakhmut. Em 27 de novembro, o The New York Times falou de 290 ucranianos feridos nas 36 horas anteriores. Após perdas brutais, o inimigo mudou de tática, concentrando pequenos grupos de infantaria – de apenas 10 a 12 homens – para romper as linhas de defesa. Os assaltos são acompanhados de tiro de artilharia, lançadores de foguetes e aviação. Em vez de ataques de companhia em linha, os grupos de assalto são divididos em subgrupos, uns que atacam diretamente, os outros a fazer a cobertura de fogo. Do lado ucraniano, como afirmou Serhiy Cherevaty, “para cada veneno temos um antídoto“.

Serhiy Cherevaty

Os drones identificam o inimigo e permitem atingi-lo com artilharia e morteiros, e com armas ligeiras quando se aproximam demasiado.

Enquanto não começar a ofensiva de Inverno das Forças Ucranianas o #Donbass é a principal frente de luta pela independência da Ucrânia. “É o foco principal dos esforços do inimigo tentar chegar pela retaguarda ao Donbass na posse dos ucranianos: – é esse o plano principal“. Bakhmut é um buraco negro que engole os militares russos, como Verdun aos alemães. Em quatro meses as tropas de Donetsk/Lugansk, Wagner, prisioneiros e mobiks  avançaram dez quilómetros em terreno plano. Só agora, a 10 de dezembro, atingiram a área industrial e casas numa das margens da cidade que é separada pelo rio Bakhmutka. Quando cerca de 60 mil homens levam 120 dias a avançar 10 km em campo aberto para conquistarem da na quadruula de prediso e edifícios arruinados é porque já perderam. Tal como os alemães em Verdun, a obstinação, a coragem e a estupidez poderão fazer continuar o ataque. Em geral, kapputt.

O cenário mais provável é que a batalha de Bakhmut termine com o início da ofensiva ucraniana de inverno sobre Meliutopol que irá cindir em dois grupos as forças invasoras e que deverá libertar a região da Zaporyzhia. Podemos contar com o general Zaluzhnie e com o major general Yurii Bereza para saber o que estão a fazer; quanto ao general russo Surovikin deverá recomendar a suspensão dos ataques a Bakhmut enquanto retira para linhas previamente preparadas de defesa na península da Crimeia.

A imensa tragédia e estupidez do polícia secreto de São Petersburgo que tomou conta do último império europeu também se revela em Bakhmut, a Verdun do Donbass, uma batalha planeada para fazer sangrar os ucranianos, mas em que a obsessão putinista se afunda.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, LXXXIII

9 de dezembro

. As palavras de Ilya Yashin

 

Ilya Yashin, nascido em 1983 e autarca de Krasnoselsky, um dos bairros centrais de Moscovo, foi condenado a 8 anos e meio de cadeia; uma “ternura” do juiz após os procuradores pedirem uma pena de 9 anos por espalhar “informações falsas” sobre o exército.

A Novaya Gazeta publicou uma versão editada do seu discurso final em tribunal. São palavras que vão pesar na terra que um dia cobrirá o cadáver de Vladimir Putin mas que ajudam a prever as futuras liberdades dos russos.

 

Senhoras e senhores,

Concordai que a frase “a última palavra do réu” soa de modo sombrio, como se depois de eu falar, me cosessem a boca e me proibissem de falar de novo. Todos entendem que é isso que está em causa. Estou isolado e preso porque querem que eu fique calado; o nosso parlamento já não é um lugar de debates e a Rússia é obrigada a concordar silenciosamente com seja que medidas for do governo.

Prometo-vos que enquanto viver, não farei as pazes com o silêncio. A minha missão é falar verdade. Já falei nas praças, na televisão, no parlamento, e não deixarei de falar atrás das grades. Como disse um clássico: “A mentira é a religião dos escravos e dos senhores. A verdade é o deus do homem livre.”

Meritíssimo, tenho um princípio que sigo há muitos anos: faça o que for preciso, aconteça o que acontecer. Quando as hostilidades começaram, não duvidei nem por um segundo do que deveria fazer. Devo permanecer na Rússia, e falar verdade em voz alta e impedir o derramamento de sangue a todo o custo. Dói-me fisicamente pensar quantas pessoas foram mortas nesta guerra, quantas vidas foram arruinadas e quantas famílias perderam as casas. Ninguém pode ficar indiferente. E juro que não me arrependo de nada. É melhor passar 10 anos atrás das grades como um homem honesto do que arder silenciosamente com a vergonha do sangue derramado pelo seu governo.

Claro que não espero um milagre, Meritíssimo. Sabeis que não sou culpado, e que sois pressionado pelo sistema. É óbvio que tereis de emitir um veredicto de culpado. Mas não tenho nenhuma má vontade em relação a vós nem vos desejo mal. Tentai fazer tudo o que estiver ao vosso alcance para evitar injustiças. Lembrai-vos que não é apenas o meu destino pessoal que depende do vosso veredicto; o veredicto é contra a parte da nossa sociedade que deseja uma vida pacífica e civilizada. A parte da sociedade a que, talvez, pertenceis, Meritíssimo.

Também gostaria de usar esta plataforma para me dirigir ao presidente russo, Vladimir Putin, o homem responsável por este banho de sangue que assinou a lei da “censura militar” e devido ao qual estou preso.

Sr. Putin: quando olha para as consequências desta terrível guerra, provavelmente já percebeu a gravidade do erro que cometeu em 24 de fevereiro. Ninguém recebeu o nosso exército com flores. Chamam-nos invasores e ocupantes. O seu nome tornou-se sinónimo de “morte” e “destruição”. Provocou uma tragédia no povo ucraniano, que provavelmente nunca nos perdoará. Mas a sua guerra não é apenas contra os ucranianos: o sr. também está em guerra contra os seus cidadãos.

Está a enviar centenas de milhares de russos para a guerra. Muitos retornarão incapacitados ou traumatizados pelo que viram e passaram. Para si isso, são apenas números, números de mortos numa coluna de papel. Mas para muitas famílias isso significa a dor insuportável de perder um marido, um pai ou um filho. E centenas de milhares dos nossos cidadãos deixaram o nosso país porque não querem matar ou ser mortos. As pessoas estão a fugir de si, Sr. Presidente.  Consegue ver?

Está a minar a nossa segurança económica. A mudança para uma economia de guerra está a fazer retroceder o nosso país. Já esqueceu que essa política levou o nosso país à ruína no passado?

Posso ser uma voz clamando no deserto, mas estou a chamá-lo, Sr. Putin, para parar com esta loucura. Precisamos reconhecer que a nossa política na Ucrânia foi um erro, precisamos retirar as nossas tropas do território e chegar a uma solução diplomática do conflito. Lembre-se que cada novo dia de guerra traz novas vítimas. Já basta.

Por fim, quero dirigir-me às pessoas que acompanharam nestes processos judiciais, e que me apoiaram durante todos estes meses e que aguardam ansiosamente o veredicto.

Meus amigos! Não importa o veredicto que o tribunal der, não importa o quão difícil seja esse veredicto, isso não vos deve quebrar. Eu percebo o quão difícil é tudo, e percebo que se sintam sem esperança e impotentes. Mas não desistam.

Por favor, não desesperem e não esqueçam que este é o nosso país. Vale a pena lutar. Sejam corajosos, não recuem diante do mal. Resistir. Fiquem firmes na sua rua, na sua cidade. E mais importante – apoiem-se. Há muito mais de nós do que cada um pensa, e juntos temos um poder enorme.

Não se preocupem comigo. Prometo suportar as minhas tribulações sem reclamar e que não perderei minha integridade. Por sua vez, prometam-me que não perdereis o otimismo e não esquecereis como sorrir. No momento em que perdemos a nossa capacidade de encontrar alegria na vida é o momento em que eles nos vencem.

Acreditem em mim: a Rússia um dia será livre e feliz.

Amanhã é outro dia!

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Crónicas da Guerra da Ucrânia – LXXXII

2 de dezembro de 2022

, Heróis da Ucrânia

 

A guerra cria o estado” sabem-no bem os ucranianos; nas mais pequenas vilas existem monumentos dedicados aos soldados soviéticos que derrotaram Hitler mas a Ucrânia de hoje não precisa deles; criou os seus heróis nos que lutam contra os invasores ex-soviéticos.

O país está a lutar pela sua sobrevivência e mais unido do que nunca, afirmou o presidente Volodymyr Zelenskiy e os militares são o espelho desta sociedade justamente orgulhosa de resistir ao ataque brutal de uma superpotência.

Tempos atrás, a vice-ministra da Defesa Hanna Maliar, ao comunicar como o heroísmo está presente em todos os escalões na guerra de libertação, destacou como símbolos quatro generais que se tornaram heróis da Ucrânia: Valeriy Zaluzhny, Comandante-em-Chefe das Forças Armadas; Oleksandr Syrskyi, comandante das Forças Terrestres; Serhiy Shaptala, Chefe do Estado-Maior; e Andriy Kovalchuk, que comandou a contra-ofensiva na frente de Kherson.

Hanna Maliar

Major – General Andriy Kovalchuk

General Oleksandr Syrskyi com Zelensky com a devida homenagem a Gettyimages

A todos se deve a defesa de Kyiv em Fevereiro e Março e os contra-ataques bem-sucedidos que levaram à retirada russa nas frentes de Kharkiv e Kherson.

Quando os especialistas de debruçam sobre o segredo destas vitórias encontram a mesma receita: os generais foram formados na doutrina russa de vencer ou morrer; estudaram como a NATO privilegia a autonomia dos escalões intermédios de comando e formaram um corpo profissional de furriéis  e sargentos: Mas o que os torna realmente comandantes são oito anos de combate no Donbass, assim diz Oleksiy Melnyk, do International and Security Policy Analysis Center e o George C. O Marshall European Center for Security Studies.

Começaram por ser oficiais soviéticos em uniforme ucraniano mas o legado soviético foi modificado pela formação NATO e a guerra no Donbass. “Oito anos nas linhas de frente”, observa Mark Savchuk, do Gabinete Nacional de Anticorrupção da Ucrânia.

O processo de modernização das Forças Armadas da Ucrânia começou em 2014 após a anexação ilegal da Crimeia e os levantamentos no Donbass e foi liderado por Zaluzhny e Shaptala. Estes generais não descobriram a pólvora; souberam apropriar-se do que havia de melhor em cada doutrina. Em setembro, entrevistado pela Time, Zaluzhny elogiou o seu homólogo, o chefe do Estado-Maior russo Valery Gerasimov, de um modo que só surpreende quem não sabe o que é um exército profissional. “Formei-me na doutrina militar russa e a ciência da guerra ainda está lá”. “Aprendi muito com Gerasimov. Li tudo o que escreveu….”

A estratégia ucraniana combina a doutrina NATO e doutrina Gerasimov e acrescenta qualquer coisa de próprio no que leva alguns a chamar-lhe o “exército McGyver”. Gerasimov é conhecido pela doutrina da guerra híbrida, o que cobre quase tudo além da guerra clássica, desde bombardeamentos de alvos civis a operações de hackers, destabilização política, operações de sabotagem até ao limiar da guerra nuclear. “A luta frente a frente em grandes formações faz parte do passado, do ponto de vista estratégico e operacional”, escreveu Gerasimov; sucede que os ucranianos aplicam muito melhor este preceito.

A falha brutal russa é a estrutura estritamente vertical de comando. Pelo contrário, nas forças ucranianas tal como na NATO, os comandantes intermédios dispõem de autonomia para agir por iniciativa própria. Os ataques são conduzidos por pequenas seções de uns 12 homens que começam por sondar as defesas inimigas; onde houver falhas, são chamadas novas tropas até ao colapso do adversário. Nada disto é novo: o que é difícil é ser aplicado contra uma superpotência e com sucessos à vista, apesar da enorme desproporção de meios.

Em julho de 2021 Zelenskiy nomeou Zaluzhny como comandante-chefe. Sabe-se agora como o estado maior se preparou para a invasão meses antes do 24 de fevereiro, ao identificar as principais rotas de invasão, a norte, a leste e no sul.  Sem fornecer demasiados detalhes ao Ministério da Defesa, movimentou discretamente unidades para o norte e instalou baterias de artilharia e sistemas de defesa aérea em torno de Kyiv.

Na ofensiva do norte a partir do país de Lukashenko – “o ditador da batata” – os ucranianos deixaram o invasor penetrar até à linha defensiva de Kyiv e, em seguida, lançaram ataques rápidos e acutilantes à retaguarda e às cadeias de abastecimento.

No leste, os russos progrediram muito lentamente durante meses. O general Syrskyi, um dos mais admirados da Ucrânia, dirigiu a defesa de Kyiv e, com Kovalchuk, planeou a contra-ofensiva relâmpago de Kharkiv que obrigou os russos a retirarem.

No sul começou por correr mal. Os invasores chegaram até Kherson em poucos dias e parece ter havido traição por parte de algumas autoridades locais ucranianas. Ficou cortado o acesso a grande parte da costa do Mar Negro e a travessia do rio Dnieper levou os russos até perto de Mikholaiv. Foi preciso chegar o outono para a contra-ofensiva forçar os invasores à retirada para a margem oriental. Foi comandada por Kovalchuk, um herói da guerra de Donbass durante a qual libertou Sloviansk e, apesar de ferido, manteve durante seis semanas o aeroporto de Luhansk com a 80ª Brigada Aerotransportada. Em Kherson foi recebido como um herói.

A representação da vitória precisa de nomes e de ícones, mas num país de livre opinião, a criação de heróis só funciona quando a imagem corresponde à realidade. Os generais que estão a restituir à Ucrânia os territórios invadidos têm um imenso prestígio entre a população mas a lista de Maliar tem uma falha: o major-general Kyrylo Budanov, de 36 anos, o chefe das Informações e que supervisiona a campanha de sabotagem na retaguarda.

Quanto menos soubermos do passo seguinte da ofensiva ucraniana de inverno, melhor; é sinal que os serviços de contra-informação estão a funcionar bem.

Querem-se generais para vencer e não para se pronunciarem publicamente. Mas quando o fazem o efeito é grande. Quando Putin ordenou em Setembro a mobilização de 300 mil homens, Zaluzhny foi taxativo: “Já derrotámos o exército profissional russo; faremos o mesmo ao exército amador “.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância – LXXXI

28 de novembro 2022

. O único modo de o povo russo ganhar a guerra é Putin perdê-la.

Ao fim de mais de nove meses da invasão da Ucrânia, acumulam-se os acontecimentos da guerra por entre os pavorosos ecos e ruídos da comunicação de massas e das redes digitais; mas por detrás deles estão a agir as forças profundas da história e as causas políticas, sociais e económicas que são estruturais e não se desfazem com o passar dos dias.

A aventura iniciada a 24 de fevereiro por Putin e alimentada pela rede de poderes que ele herdou e apurou, de há muito degenerou em tragédia sofrida pelo povo ucraniano e cada vez mais chega em richochete à Rússia. Como todos os dramas, cria uma oportunidade: o povo russo vai poder libertar-se, mas o único modo de ganhar a guerra é Putin perdê-la.

Enquanto existir o regime putinista os russos continuarão privados das capacidades contra os quais o Kremlin combate: um sistema de instituições democráticas com separação de poderes, um poder judicial independente, um parlamento eleito pelo povo, a supremacia do estado de direito, a liberdade de expressão.

Estas privações estão a ser brutalmente agravadas pelas medidas tomadas pelo pânico que alastra no Kremlin guerra, mas não são de agora; vêm de trás e de longe.

O passo mais fatal que as precipitou foi a privatização criminosa dos monopólios estatais no tempo do presidente Yeltsin. Conhecemos esse processo através de várias descrições, como a do grande economista e estadista russo Gregory Yavlinsky que chegou a ter 5,5 milhões nas eleições de 1996; ou pelo grande investidor e agora ativista de direitos humanos, William Browder. E convém tê-las presentes.

Gregory Yalinsky

Os ministros de Yeltsin nos anos 90 criaram um esquema de vouchers anónimos e os chamados leilões de “empréstimos por ações”. Este esquema fraudulento foi criado para transferir quase toda a propriedade do Estado para um pequeno círculo de indivíduos escolhidos a dedo pelos laços com o poder; nasceram os oligarcas. O resultado foi a fusão entre o poder político, a propriedade privada e os negócios, em todos os níveis – desde o Kremlin à administração local. Os meios de comunicação de massa independentes foram sendo eliminados por Putin a partir do ano 2000 pois representavam um grave ameaça de contestação da legalidade dos bens apreendidos através de ações criminosas. Regrediu a criação de estruturas democráticas e de uma sociedade civil que tem dificuldades em afirmar-se.

Foram essas as bases de um estado corporativo oligárquico-mafioso que Putin herdou e que refinou ao longo de vinte anos de poder, transformando a Federação Russa num petro-estado; é a nação com mais recurso naturais no mundo, gigantescos aliás, mas com uma economia anã, com uns 1,5% do PIB mundial ( igual a Itália cujos recursos são incomparavelmente menores) e manchada pelas desigualdades.

A instituição mais importante da democracia- a propriedade privada – não foi respeitada na Rússia pós-soviética: o seu simulacro é a acumulação de riqueza pelos oligarcas, uma riqueza que sempre dependeu dos caprichos do regime e que pode ser redistribuída em qualquer momento.  Assim o demonstrou a prisão do grande oligarca Mikhail Khodorkovsky, o homem que em pouco mais de um mês passou de maior bilionário do regime para uma prisão que durou dez anos. Atualmente Khodorkovsky agita do exterior uma das correntes da oposição ao Putinismo.

Ao longo destes terríveis meses já se viu que a guerra na Ucrânia não terá uma solução geopolítica; os apoios ocidentais são calculados para impedir uma escalada; se o Ocidente quisesse mesmo a paz, aumentava em quantidade e qualidade os apoios de ajuda armada a Puti; assim o faz a Inglaterra, o país que mais memória tem na Europa ocidental do que é resistir a bombardeamentos.

Em contrapartida, as debilidades e contradições económicas e sociais acumuladas em vinte anos de putinismo vieram ao de cima com a aventura iniciada a 24 de fevereiro. Os sinais de degradação acumulam-se: isolamento internacional; incapacidade ofensiva das forças; mobilização seletiva de habitantes que não são russos étnicos; gripagem de sucessivos setores económicos; e aprisonamento de opositores como Alexei Navalny e Vladimir KaraMurza e mais alguns milhares; ou envenenamento como o ministro bielorusso Vladimir Makei, designado sucessor do ditador Lukashenko que morreu “repentinamente” no passado sábado.

Não vai ser fácil mudar que povo russo desperte nem vai lá com entusiasmos, nem petições e nem os apelos à paz funcionam como causas. As estruturas sociais e económicas estão desequilibradas e a gerar desigualdades há mais de vinte anos. Mas do interior do conflito civil já implantado na Federação Russa hão-se emergir líderes semelhantes aos que se ergueram em outubro de 1905, fevereiro de 1917 e agosto de 1991.

Eles saberão que único modo de o povo russo ganhar a guerra é Putin perdê-la e fazer desaparecer um regime que os privou de propriedade, liberdade e paz.

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância – LXXX

22 de novembro

. Até quando, Putin?

Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Deverá ser a mais conhecida frase dos célebres discursos de Cícero contra Catilina, o estadista romano que deixou um rasto de morte atrás de si.

Até quando, Putin? É a pergunta que parece começar a passar dos opositores do Kremlin para as massas.

Segundo especialistas (Meduza, SOTO) haverá cerca de 15% de oposicionistas na Rússia, uns 60 a 70% que seguem o poder e outros 15% a 20% de nacionalistas fanáticos; mas os hesitantes estão a aumentar e os media do regime, com a missão de propaganda e contra-informação, têm de se ajustar às dúvidas crescentes sobre a guerra. Em particular a televisão.

Os talk shows da televisão russa são uma experiência alucinatória, uma espécie de pesadelo filmado em cenários que parecem uma mistura sombria de game show e filme de terror.

Os operadores de câmara são mesmo bons em induzir a vertigem nos planos de imagem em que passam os discursos aparentemente enlouquecidos dos anfitriões e convidados. E, no entanto, no meio desse ninho de cucos, a contra-informação tem de responder a novas preocupações porque a guerra está a correr mal. De mal a pior, aliás.

Os talk shows seguem um roteiro em que um dos participantes é escolhido para fazer a contra-argumentação, colocar perguntas difíceis, ter uma opinião diferente e mesmo contradizer o anfitrião. Depois torna-se no saco de pancadas do talk show, o homem de palha a abater. Num regime de pós-verdade, muito semelhante ao que Trump tentou instalar na América, nada é verdadeiro, tudo é possível, como explica Peter Pomantsarev. O público adora.

Vladimir Solovyov, a “voz de Putin”, já disse de tudo no seu programa.

Notícias em que dia sim, dia não, afirma que é inevitável a guerra nuclear com o Ocidente. Neste domingo com o seu habitual sorriso de malvado afirmou que é preciso varrer Kyiv e Kharkiv da face da terra. Um dos convidados, Yaakov Kedmi veio confrontá-lo. “É obsceno; não é construtivo; é criminoso bombardear cidades pacíficas”, interveio. “Essas coisas nem deveriam ser ditas – ‘varrer uma cidade da face da Terra’ é obsceno.Solovyov opôs-se mas Kedmi insistiu. “Existem 1.001 maneiras de lutar sem tocar em civis.”

Vladimir Solovyoy

Outro episódio passou-se nos 60 minutos, o talk-show conduzido pelo casal maravilha Eugene Popov e Olga Skabeeva, conhecida como “a dama de ferro do putinismo”. Desde há anos que zurzem a oposição democrática e desde fevereiro, a Ucrânia. No último sábado, Popov começou a interrogar-se. Mas todos os produtos russos dependem de peças do Ocidente. Os aviões. Os automóveis. Os medicamentos. E continuou nisto um minuto. Foi interrompido várias vezes. Mas voltou ao discurso. Os convidados entreolharam-se do que + é russo, é Os membros do show 

Um outro episódio do fim de semana foi no talk-show de jovem Ivan Trushkin, (herdeiro de Solyvyov se este tiver morte prematura).

A certa altura o especialista Viktor Olevich começou a questionar a capacidade das forças militares russas em Kherson. Perdeu o som do microfone. Trouxeram-lhe um microfone portátil e ele continuou. E mesmo assim, os participantes pareceram não ouvir. Trushkin informou Viktor das “más notícias” sobre o mau funcionamento do microfone e passou a outro.

..debates !!!

Aa audiências russas de TV estão sedadas por vinte anos de propaganda e parece engolir tudo. Então por que motivo Solovyov, Skabeskaya e Trushkin têm de seguir roteiros cada vez mais difíceis? Porque a guerra da Ucrânia deixou de ser percebida como operação especial. Em vez disso, é agora uma operação contínua de assassinato em massa. Aos russos chegam mais depressa as notícias dos seus mais de 100.000 mortos e feridos na frente militar.

A receita da hiper normalização na informação é conhecida. Semeie confusões em todos as direções para que ninguém mais saiba a verdade; quando as pessoas já não sabem distinguir entre factos e ficção, preferem seguir os autocratas. Mas se o autocrata traz a o desastre, que fazer?

Na Rússia, “o vento está a mudar de direção”.

Até quando Putin continuará a ser útil? Quando começará a ser visto como um perdedor?

Até quando, Putin?

Amanhã é outro dia.

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Crónica da Invasão da Ucrânia, à distância – LXXIX

17 de novembro

. Onde está Surkov?

 

Eminência parda, grande encenador, Rasputine 2.0.

Durante vinte anos, de 1999 a 2020, Vladislav Surkov foi considerado a sombra de Vladimir Putin (Ver Crónica de 7 de abril). Era o homem que instruía o ponto de vista ideológico e que concebeu o plano de propaganda nas televisões oficiais; uma mente brilhante e maquiavélica ao serviço de grandes poderes, com vários lemas conhecidos entre eles diga sempre o que pensa; nunca diga o que sabe.

Em Abril deste ano, o Newsweek noticiou que Surkov foi colocado em prisão domiciliar, por alegado desvio de fundos destinados aos separatistas do Donbass. O advogado russo Feigin e o conselheiro ucraniano Arestovich acreditam que sim.

Que se passou então, e entretanto?

Quem é Surkov e onde está? Não é fácil responder …

  • O vice-primeiro-ministro Sergey Ivanov, o primeiro vice-chefe de gabinete da administração presidencial da Rússia Vladislav Surkov e o CEO da ROSNANO, Anatoly Chubais,// Dmitry Astakhov / RIA Novosti

Nascido em 1962 ou 1964, conforme as biografias, de pai checheno e mãe russa étnica, ambos professores em Duba-yurt, na Chechénia, chamava-se de origem Aslambek Dudayev. É possível que tenha escrito livros de ficção política como pseudónimo de Natan Dubovitsky, influenciado por autores como Allen Ginsberg.

Após passar pelo setor privado até aos 35 anos, veio a ocupar diversos cargos governativos de topo e foi conselheiro principal de Putin entre 2013 e 2020.  Mas qualquer que fosse o cargo no governo, Surkov marcava as políticas, enfant terrible da política russa.

Durante dez anos, entre 1988 e 2006, Surkov operou no setor privado, em particular nas relações públicas e publicidade nos negócios de Mikhail Khodorkovsky; nos bancos de Mikhail Fridman; na empresa de petróleo Transnefteproduct; e no canal de televisão ORT. Segundo Sergei Ivanov, ex-ministro da Defesa, Surkov serviu na Diretoria Principal de Inteligência do Estado-Maior (GRU) quando cumpriu serviço militar na Hungria. Mas foi sempre mais um homem do bloco de Poder (vlast) do que do bloco de Segurança (Siloviki).

Em 1999 iniciou a carreira política, sendo nomeado vice-chefe do gabinete presidencial e muito rapidamente emergiu como o Rasputine 2.0. Debatia-se na época no círculo íntimo do presidente, nas elites governamentais e mais tarde no partido Rússia Unida que marca deveria o presidente imprimir na vida política. Bastaria glorificar a sua pessoa ou seria preciso uma fórmula ideológica? Em 2006, quando Aleksei Chadaev publica Putin: a sua ideologia provocou um rebuliço. Houve quem apoiasse a necessidade de reconhecer uma ideologia, outros mostraram notória falta de entusiasmo.

Foi então que Surkov emergiu como o grande arquiteto dos conteúdos ideológicos e da embalagem mediática.

Lançou o conceito de “democracia soberana ou gerida” (suverennaia demokratiia) para definir a natureza do regime e a posição da Rússia no cenário mundial (Okara 2007). Segue-se daqui uma série de perversões: a concentração de poderes no Presidente; a eliminação gradual da influência da Duma do Estado e do Conselho da Federação; a importância adquirida pelo Conselho de Segurança e o bloco dos Siloviki; a dissolução dos meios de comunicação independentes; as eleições passam a ser um teatro com resultados decididos antecipadamente, mesmo que haja votação real; o reforço da componente nacionalista na ideologia oficial; a transformação do poder judicial em órgão político punitivo dos opositores ao regime. O resultado foi a castração das instituições democráticas.

Como um dos criadores da ditadura pós-moderna, Surkov despreza a cidadania; não considera os russos prontos a participar na gestão do país por meios democráticos; precisam do patrocínio de um regime autoritário e o país precisa de um teatro político permanente. Com o teatro de massas de Surkov, a política russa começou a tornar-se uma operação militar especial. “É muito provável que a política oficial seja uma operação especial, onde as pessoas dizem uma coisa, pensam outra, fazem uma terceira, mas querem uma quarta. Aliás, o resultado, é uma quinta” –escreveu Surkov no artigo “Tempo ao invés”, em fevereiro de 2001.

Peter Pomerantsev, um dos grandes conhecedores e críticos de Surkov escrevia em 2011: Na Rússia contemporânea, diferentemente da antiga URSS ou da atual Coreia do Norte, o cenário está sempre a mudar: o país é uma ditadura pela manhã, uma democracia na hora do almoço, uma oligarquia na hora do jantar, enquanto, nos bastidores, empresas petrolíferas são expropriadas, jornalistas mortos, biliões desviados. Surkov está no centro do espectáculo, a patrocinar skinheads nacionalistas num momento, a apoiar grupos de direitos humanos a seguir. É uma estratégia de poder baseada em manter a oposição em estado de confusão, uma mudança de forma incessante que é imparável porque é indefinível.

A doutrina da “democracia soberana” entregou ao Estado o controlo dos meios de comunicação de massa, sobretudo todos os canais de televisão. Seguindo o exemplo de Gleb Pavlovskii, Surkov lançou ainda plataformas de media, portais online e uma agência de notícias. Organizou a juventude pró-presidencial (Nashi), e o movimento Rússia Justa (Spravedlivaia Rossiia). A Rússia iria liderar a globalização com uma “marca” ou “voz” específicas: iria ser uma grande potência atraente, com um novo nacionalismo, uma economia moderna, e ferramentas de softpower.

Surkov era contra qualquer regresso à experiência soviética e ao destino euro-asiático.

Em vez disso, a identidade nacional deveria identificar-se como “Europa alternativa” e apoiar todos os movimentos da direita e extrema-direita, como efetivamente sucedeu e sucede nos apoios a Trump, Brexit, Le Pen, Salvini e outros (Surkov 2010; ver também Sakwa 2011b).

A reforçar esta orientação eurocêntrica, Surkov foi o inventor da narrativa A Ucrânia não existe, adotada por Putin.

E como organizador de consensos e diretivas desempenhou um papel primordial na estrutura ideológica que abriu o caminho à invasão da Ucrânia em 2014. Como a Ucrânia não existe, a imposição de relações fraternas pela força é o único método com eficácia provada. Após 2014, recomendava cortar as negociações com Kyiv e a anexação pura e dura do Donbass.

Em 2019, Kyiv tornara-se uma dor de cabeça para todos: a chantagem falhada de Donald Trump sobre o presidente Volodymyr Zelensky foi a causa do primeiro impeachment do “homem laranja”.

No Kremlin, debatia-se o que fazer da guerra em câmara lenta no Donbass. Vladislav Surkov envolveu-se em discussões com Dmitry Kozak. Muito está por apurar nos dossiers da DPR e LPR em que existe a habitual mistura tóxica de manipulação polpitica e corrupção económica:

Certo é que em fevereiro de 2020 Surkov pediu a demissão do cargo, o que foi aceite. Em entrevistas a Vladimir Solovyev e Alexei Venediktov afirmou que renunciava porque o “contexto” mudou. Kozak manteve-se como vice-chefe da casa civil de Putin e homem forte do Bloco do Poder e Putin foi evoluindo para a invasão armada de toda a Ucrânia.

Surkov mergulhou na vida privada até ser, alegadamente, colocado em prisão domiciliar .

  • Surkov e Putin ALEXEI NIKOLSKY /AFP VIA GETTY IMAGES

Não sabemos quando, nem como, nem se, irá reemergir na vida pública russa.

Amanhã é outro dia.

 

 

 

 

 

 

 

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